segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Vem




A língua viaja vagarosa o mapa da memória do teu corpo como se o lugar do sagrado fosse a fenda lúcida do desejo, o refúgio das mãos em busca da luz cintilante das estrelas. Quando os dedos de tão leves na seda das coxas são uma trégua na noite dos prodígios, uma pausa na água das nascentes, uma lua vaga na desordem dos lençóis, então, sabes, o tempo não é tempo, é o arfar secreto do silêncio, um frémito de pássaros em suspenso, o mistério da brisa suave do levante. E a vaga navega lenta, e o mar é tanto, e o olhar tão limpo que o azul exultante da palavra é como a sílaba breve do despertar da pele no segredo do instante.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

em santiago, no campo das estrelas



santiago é um cidade antiga de pedra trabalhada, uma cidade de corpos em busca da luz concedida aos artesãos cujas mãos, por certo tocadas pela graça dos amantes, ergueram catedrais de espanto e palácios de maravilha e desenharam ruas de misteriosa geometria, à medida, talvez, dos passos de caminhantes fascinados ou de um beijo sagrado de bocas aturdidas no voo de um pássaro em lençóis brancos, ao cair do dia. milagre é este rumor nómada de gente devota não do ritual do santo mas da ode dos braços abertos à música dos anjos lá onde a lua se anuncia descaída sobre o lado esquerdo do peito e o coração bate a descompasso no sobressalto de um olhar apaziguado e limpo de tão intensamente arder. peregrino de mim mesmo, agora que a noite cai na memória do tempo e do seu labirinto, sigo o doce flanco da linha do horizonte, o seio súbito desperto no umbral do silêncio e lento aconteço sem tempo entre o campo das estrelas indizíveis e o insondável mistério dos lábios onde a pedra dos séculos respira.


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

em amesterdão, na rua nos




no conforto do discreto átrio art nouveau do hotel rho, na nua nos, circulam silhuetas esquivas por entre arabescos de uma música de espelhos, enquanto eu, sentado, aguardo, meio perdido e meio achado, de copo de vinho na mão, a hora provável de uma estrela pintada na vertigem da noite de amesterdão. stela passa pela luz difusa como um vulto de seda branca parecendo, de tão leve, desafiar a gravidade do meu rosto refém do punhal a prumo que fere a luz precária do tempo. por uma vez, porque assim será, ambos seremos viajantes ou não dos mistérios da rua nos, aí onde se declinam tempos de verbos improváveis em lugares de amáveis sortilégios. stela sai. eu fico. enfim, eu saio. está uma noite fria com uma pálida lua distante na bruma em cujo seio, sei, há passos de anjos embriagados pela memória de uma outra noite quando o meu rosto exultava na vertigem de um outro rosto, aqui, nesta mesma rua nos, era o verão de 1994. passaram quinze anos. caminho agora lado a lado com jovens de mãos dados onde por certo sobram os dedos. é o inverno e revejo no labirinto da memória esse rosto imprevisto e o seu sorriso, os olhos de súbito desmaiados, os lábios entreabertos de palavras indizíveis que ouço, ainda, no silêncio apressado dos meus passos sobre a película de neve fina e branca. viajo de lugar em lugar entre copos de vinho e encontros fortuitos, mais achado que perdido num corpo de lua vaga e gosto de ouvir línguas estranhas nas suas amenas falas e de assim enganar as horas onde se perfilam já os secretos rumores da madrugada. súbito, o rosto esculpido pelos vapores da noite, stela passa, os olhos líquidos em vagaroso desafio e passa tão perto e tão lenta, que sinto os seus seios duros de mamilos erectos ferindo como punhais os meus lábios perdidos no verão de 1994. um raio de sol rompe por uma fresta da janela do meu quarto e queima o último instante do meu sono como um cometa de cauda incandescente. estou só, achado e não perdido, na minha cama do hotel rho. quando descer ao átrio para o café da manhã encontrarei stela, dir-lhe-ei good morning, e ela nada saberá do que eu dela soube na minha noite imaginada na rua dos sortilégios de nome nos.


sábado, 8 de outubro de 2011

em amesterdão, na praça dam




na praça dam, amesterdão, com seus elegantes edifícios anunciando os mistérios do crepúsculo, ouço o rumor distante do silêncio e sinto a brisa gélida deste inverno onde tudo, porém, está certo, salvo, talvez, a tua ausência. penso na amável conjugação dos verbos mais secretos, num alvoroço de pássaros em lençóis desfeitos, mas esse estar presente diluído na ausência é apenas uma lua vaga nos sulcos do meu rosto. saberei, contudo, adivinhar-te, seja um relâmpago o bastante, e penso nisso, agora, na brasserie majestic, quando no outro lado da praça, no museu de madame tussau, vejo figuras de cera alinhadas no desconcerto do tempo espreitando os rigores do frio e procurando, quem sabe, iludir os ponteiros de um relógio quebrado ou ensaiar os passos de uma improvável valsa lenta. pouso, então, a luva da minha mão direita sobre o tampo da uma mesa, testemunha silenciosa de enigmas antigos que habitam as estações. lá fora há luzes que se acendem, flocos de neve soprados pelo vento, agasalhos quentes de cores diferentes, gentes caminhando seguras por entre bicicletas em rodopio desenhando sobre o gelo arriscados desenhos fulgurantes. gosto de amesterdão assim, desta neve e desta névoa, da espuma espessa da cerveja nos meus lábios, da surdina do trompete de chet baker, destas vozes ciciadas, da jovem de cabelo louro curto da mesa ao lado na serena expectativa de um amante anunciado. assim estou, apaziguado ou nem tanto, resguardado na bruma de mim mesmo, olhando aquela indecifrável luva como se um súbito calor, talvez relâmpago, me pudesse trazer a memória de um rosto iluminado por um sorriso ou o sobressalto dessa minha mão direita fascinada e interdita pelo sorriso desse rosto.


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

numa cidade de passagem, a caligrafia do chão




como um náufrago procuro os cristais da palavra, os seus lábios húmidos de dizer, as suas longas pernas de ventos e florestas, mas é tarde, e ao dobrar da esquina de uma oblíqua rua dos arredores de mim mesmo descubro uma fuligem de chuva, um cheiro intenso a óleo queimado que alastra no fluxo nervoso desta cidade de passagem anunciando, porventura, a vertigem da solidão. para tanto bastará apenas o medo soltar a alavanca da noite e deixar-me entregue à minha memória registadora de nomes e atrocidades. não, não sei nomear a cartografia vulnerável do meu rosto. um denso, líquido pavor escorre do flanco de facas suspensas e o tempo presente passa implacável por entre as ruínas do tempo passado, já tempo futuro. como habitar esta cidade de passagem se o aqui estar ausente é o refúgio que me sobra da água um dia bebida na harmonia das fontes? em nome de indecifráveis desígnios partirei breve rumo às estações suspensas da respiração da pedra. não voltarei a saber do tempo em que por desencontro de ti a fileira de dentes brancos e ferozes não soube nem da boca sangrenta do teu rosto que doendo me deixou. sou agora uma folha de papel de incontidas palavras nesta cidade do descampado onde me espera no peito o impacto absurdo de uma flor fulminante. vejo cachorros e guardas vindos do fundo da noite para apagar o sopro das estrelas, vejo exércitos no seu ritual sombrio de passada lenta e ouço o espanto das vozes suspensas na luz coagulada do silêncio. tropeça um corpo interdito em clarão, súbita silhueta da queda de um amor em câmara lenta, multiplicando, aflitas, as mãos. jaz o rosto em seu rigor absoluto na fria caligrafia do chão.



sexta-feira, 30 de setembro de 2011

em viagem, no esplendor dos dias


parti sem destino em busca de um lugar incerto porventura habitado por sortilégios, prodígios e segredos, cujos súbitos fulgores pudessem libertar ainda o rosto fatigado do compasso inexorável do tempo. tal como o marinheiro errante tocado pela graça do mar e levado pela asa variável do vento, ousei sulcar o azul vibrante levando comigo o saber do viajante antigo de olhos maravilhados de tanto amar a perenidade dos instantes. encontrei não sei se pedras de água se seixos rolados através das idades do sol incidente, pouco importa, pois eram praias de areias tão finas com marcas de passos tão presentes que a água se fazia pedra, a pedra, brisa e os passos por certo seriam marcas de amantes clandestinos no lume deslumbrado das manhãs. mergulhei na aventura das águas profundas e em braçadas largas fui tão fundo quanto a vertigem do olhar que antecede o espanto das dunas quando a onda se desfaz em espuma e no horizonte se perfilam as cores pacíficas do corpo apaziguado do entardecer. tendo a lua por companhia e vénus um tudo nada mais distante, naveguei sem bússola nem quadrante em noites de palavras proíbidas, sendo o dito o silêncio do brilho das estrelas e o silêncio a pele dos meus dias correndo ao encontro de mim mesmo. no rumor das marés, nas madrugadas anunciadas, nas largas enseadas entre línguas de areia e delicadas hastes de plantas bravias ondulando ao sabor do vento, na ampla curva do horizonte, no limite do olhar e no fundo do dizer-me, sob o voo de uma gaivota suspensa no esplendor dos dias, soube, assim, no encontro do outro em mim, o sentido do saber antigo das praias viajantes onde os deuses guardam em segredo o mistério da plenitude dos instantes.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011


Disseste




Disseste: hoje sinto-me cinzenta

e logo inventei

uma nesga de sol

como se investido de plenos poderes permitido me fosse

redimir o silêncio das árvores despidas

e convocar a presença dos deuses,

esses que emergem das águas profundas

para apaziguar margens de sombras impuras

e operar a metamorfose do cinza em cor.


sábado, 24 de setembro de 2011

em viagem, diante do mar




Faz calor. Caminho como se a luz do dia, indiferente à volta dos passos, mergulhasse a prumo no horizonte dos meus dias. Respiro nas dunas o murmúrio do vento, memórias de um rosto de marinheiro tão atento aos desafios e mistérios do mar. Sob o sol de azul intenso, uma gaivota. E uma casa desabitada de paredes brancas, corroída pelo sal do tempo, que um dia foi minha. Aí nasci de mãos errantes, de um rumor de lua nova, sob o imponderável signo de perder-me, talvez, felino de mim mesmo. Aí soube das águas do rio ainda os dedos tocavam estrelas em florestas densas de pássaros cumprindo noites de insónia e dias felizes. Aí aprendi o côncavo dos seios e o convexo do sexo como quem no corpo declina a palavra maravilha. Sendo muitos, tive por companhia o medo sombrio da loucura, a loucura luminosa da paixão, a paixão indomável da procura, a procura sonhada dos meus sonhos. Agora, estou só, diante do mar. Caminho ainda. Pode o calor atenuar a erosão da pele, iludir o declínio do rosto e ocultar o abandono das mãos, mas já o crepúsculo cai sobre a casa dos meus dias, e a gaivota, ferida de azul, alonga o seu voo na distância e o silencioso tigre no seu labirinto, pondera: em breve mal distinguirei as silhuetas do amor e da morte. Assim é o tempo, absoluto e final.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Aurora




para a minha filha

olá aurora, vou contar-te um segredo. tu és como a lua redondinha cheia dos gatos dos teus desenhos num céu cheio de estrelas e eu vejo-te andar leve como quem dança por entre bolas de sabão coloridas à descoberta da casa das surpresas. tantas coisas me intrigam na maravilha desse teu jeito natural de soltar peixes voadores dos dedos do mar imenso dos teus sonhos e, por isso, quando me pegas na mão eu sei que me levas para um lugar onde a noite se esquece de anoitecer, onde os anjos ficam suspensos de te ver passar embalada na brisa do tempo e tu, então, perante o espanto do silêncio dos meus olhos dir-me-ás, apenas, de olhos limpos, olha pai, vê o mundo a acontecer. por isso te chamas aurora. é esse o meu segredo. hoje fazes dez anos, mas isso já tu sabias.


domingo, 18 de setembro de 2011

em viagem, viajante de mim mesmo




quando forem oito horas da manhã de segunda feira dia 9 de Agosto de 2010 parto em viagem de rumo incerto para lugares mais a sul, isso é certo, onde o sol bate a prumo e só tarde se esvai no horizonte em cores de sábios desafios, deixando adivinhar no lento movimento das marés um halo de sal, uma marca na pele, talvez uma deslumbrada flor de espuma branca na fenda do corpo dos meus dias. quando forem oito horas da manhã seguirei pela estrada sobre um rápido asfalto negro desferindo uma seta de luz na memória do intangível futuro e levarei comigo uma mochila e alguns parcos pertences, mais os velhos companheiros de viagem, o persa que me fala do amor e do vinho e o alexandrino que me canta o prazer de um lenço de seda e me ensina os mistérios da minha condição contingente e masculina. quando forem oito horas da manhã, serei apenas eu, os meu olhos, as minhas mãos, o meu corpo sabendo do abraço das algas molhadas, do voo dos ventos de direcção variável, das luas de noites quentes e improváveis e tudo será tão certo quanto a maravilha do minúsculo grão de areia fina ou da delicada gota de água de azul transparente ou do nada que em mim tudo acolhe com a serena alegria de assim ser viajante de mim mesmo.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

em dublin, na cinza da noite



dublin, temple bar


Think you're escaping and run into yourself. Longest way round is the shortest way home." James Joyce (Ulysses)

enfrento os vagares do tempo nas ruas de dublin como se um anjo em nome dos aflitos me tivesse dito é tarde e de mãos nos bolsos se afastasse súbito numa poeira de estrelas deixando um rasto de cinza e bruma esparsa, talvez um sinal da luz esvaída do princípio da incerteza. anoitece cedo aqui no inverno da irlanda, não será por isso assim tão tarde, não sei. mas faz frio e levanto a gola do casaco, enrolo o cachecol à volta do rosto e nesse voo incerto dos meus braços cabe a memória imprevista de um rumor de palavras ciciadas, do fulgor bravio de marés antigas, do frémito dos pequenos peixes rápidos como as tuas mãos errantes sobre o lado vulnerável do meu corpo em arco na frágil lua do teu ventre. as luzes de dublin acendem arabescos furtivos nos espelhos da água e como pincéis de chuva intermitente desenham aguarelas imprecisas à passagem dos meus passos por estas ruas molhadas onde, numa delas, deslumbrado, por certo verei o clarão do temple bar na noite de estreia do messias de handel, 13 de Abril de 1742. tal como no cinema também tudo aqui é espaço e tempo, em campo ou fora dele, imagem e movimento. mas olha, ouve, eu apenas quisera adivinhar a direcção do vento para nela saber do rumo dos teus flancos desferindo golpes doces e violentos ou fazer-me pedreiro dos segredos da pedra para nela perpetuar a luz do sol do teu sorriso e assim, artífice de mim mesmo, dizer-te sou outro agora, no entanto, ainda o mesmo. já da noite se escapam os farrapos dos primeiros alvores do dia e em norht earl street vejo um outro apressado de mãos aflitas enterradas nos bolsos do casaco dobrando a esquina do tempo num rasto de cinza e melancolia sem saber que eu, tendo um joyce de pedra por companhia, dele ouço estas palavras que bem conheces. toca-me. suaves olhos. suave, suave, suave mão.



quarta-feira, 7 de setembro de 2011

em viagem, na lâmina do tempo





deixo o hotel de circunstância por uma porta lateral. azul é o céu onde por vezes pássaros de cores improváveis me levam em voo vertical ascendente. vou sem destino. o automóvel desliza pela manhã junto ao mar. no convés de um navio de vidro transparente, ao som de músicos em traje de rigor, atores de semblante grave conversam como se mudar de personagem fosse questão primordial e transcendente. acelero. a meu lado, jimmy dean, de cigarro no canto da boca, chapéu de cowboy descaído sobre os olhos e postura negligente, olha-me de soslaio. jimmy e eu partilhamos o silêncio dos interditos. pouco falamos. ele viaja na indiferença do labirinto do mito, eu na contingência do labirinto do ser. pela tarde dentro, de quando em vez, vislumbro pelo espelho retrovisor fragmentos de cenas afiadas como um bailado de navalhas de ponta e mola. é uma imagem recorrente, tal como a do navio, agora longe, navegando a lenta declinação das águas, lá onde sobra o fio da música do ocaso e a bruma processa a metamorfose da memória em esquecimento. os faróis varrem a noite, vertigem de um feixe de luz intenso, clarão de cometa errante. olho a estrada. mal consigo vê-la. penso na razão, ou falta dela, de algumas coisas me serem o que são nunca o sendo ou quase nunca. desprendido na insolência do seu destino fatal, jimmy dean esboça o enigma de um sorriso. travo a fundo. faz-se negro. acordo em sobressalto. temo o primeiro confronto com o espelho como se diante dele pudesse confirmar-se um estado febril ou, por excesso, o fio da lâmina do tempo. com a barba por fazer, o rosto em desalinho, deixo a água do chuveiro escorrer abundante pelo corpo. mergulho num longo plano sequência. não tarda voltarei a sair pela porta lateral de um hotel de circunstância.


terça-feira, 30 de agosto de 2011

em viagem, na pele de setembro




em setembro, observa sem temor o deslizar das primeiras nuvens, a silhueta das cidades vivas na respiração da pedra, a brisa onde amanheceste tocado pela graça do mar como se um veleiro te levasse marinheiro nas asas de um azul intenso. não temas as águas agitadas, nem a variável inclinação do poente, tão pouco a palavra suspensa sob o vazio súbito do silêncio. olha as mãos onde guardas os segredos do vento: elas dir-te-ão sobre os labirintos da memória e as declinações do tempo. navegante de tantos sortilégios, em breve sentirás na pele o fulgor das águas correndo na direcção da nascente. saberás, então, o sentido de setembro.



segunda-feira, 29 de agosto de 2011

em viagem, sobre o lado esquerdo





sobre o lado esquerdo o silêncio prossegue sua longa viagem de sal e espuma, de sol e penumbra, rente ao limiar do enigma que é murmúrio de fonte ou sopro de algas, sulco do rosto ou cicatriz do tempo. sobre o lado esquerdo há um lugar secreto, a noite irrevogável de uma poeira de estrelas, uma mão precária de luar fulgente, a areia fina que foge por entre os dedos da vertigem do azul intenso. sobre o lado esquerdo respira o sinuoso traço da memória, o eco da erosão da pedra, o cristal puro da água, o tigre vigilante do mistério do anoitecer na sua irredutível condição de ser tendo sido e, de novo, ser. sob a luz vertical da manhã, entre o descampado da ausência e o sortilégio da pele, nesse instante de tudo ser nada e de nada ser tudo, súbito bate descompassado o relógio dos passos, tanto quanto um mar de espanto ou uma flor do vento, um alvoroço de pássaros ou um coração ardente, sobre o lado esquerdo.



domingo, 28 de agosto de 2011

em witebsk, sabendo amar por inteiro





se em sorte um dia o amor me coube e amei sabendo amar por inteiro, foi por um instante ter sabido o segredo do mensageiro da luz, das cores vibrantes da paleta dos meus sonhos, ó esse azul abraçando a tela como um fulgor de águas límpidas numa carícia de cabelos e véus desfeitos. nunca assim soubera poder amar. nem imaginar podia, nessa minha longínqua aldeia de witebsk, de que um dia os meus pincéis haveriam de subir ao céu dos sóis ardentes, dos peixes prateados cintilantes, das silenciosas luas adolescentes, levando consigo camponeses de vestes de linho branco e animais de porte tão improvável quanto a tua leve silhueta célere a caminho do imprevisto encontro na ponte anichkov, em são petersburgo, sobre o neva. eras tu o mensageiro, bella. de ti recebi a dádiva do olhar como se para além da aparência dos dias o mundo fosse, afinal, o lugar de prodígios tantos como os meus dedos ao de leve acordando delicados o despertar dos teus mamilos, como se o teu sorriso suave vindo fosse a perene poeira das estrelas caindo lenta na aldeia maravilhada da tela dos meus dias. na minha aldeia de witebsk um cavalo vermelho voou de asas abertas, passageiro do vento, como se o destino fosse o tempo e o tempo ficasse suspenso no puro espanto do sopro amarelo e ocre das sementes inadiáveis da manhã. e, assim, levitando de mãos dadas nas estrelas da minha pátria ucraniana ou olhando o mundo da janela aberta do nosso quarto alugado de paris, cada quadro por mim pintado foi teu também, porque cor a cor amorosamente nomeavas o rigor da cor certa do dizer do meu olhar. de tão frágil o teu coração quebrou, bella, e eu fiquei interdito nesse longínquo instante imprevisto da ponte anichkov, em são peterburgo, sobre o neva, erguendo uma mão infantil desconsolada, segurando a outra a dádiva da paleta vibrante dos meus sonhos. não, nunca assim soubera poder amar e, contudo, amei, grato do teu sorriso, agora brisa, no halo inocente do arco-íris do meu tempo.


em viagem, pelo signo de assim ser





vivi o medo sombrio da loucura e a loucura luminosa da paixão, respirei nas dunas o murmúrio do vento, memórias de um corpo, de um rosto atento ao desafio do tempo. fui água e fui pedra, talvez ave de voo nómada pairando no azul de uma luz primitiva entre a delicada haste da seara ao vento e o raio de sol livre de ser casa, árvore, clarão de espanto de mim mesmo. soube de tudo sabendo de nada, nessa condição do mosto em levedura ou da mão errante do pedreiro em busca da forma definitiva e perfeita. em noites de lua cheia abri os braços à poeira das estrelas e espalhei os dedos pelos cabelos desfeitos dos mistérios dos amantes. naveguei o lume do instante e fui feliz de tanto arder reencontrado nesse fogo feito terra, chuva, semente, espiga. grato, conheci o erro e os seus enganos e errando levantei a taça de vinho fazendo votos de errar de novo como se um deus benigno me devolvesse a graça perdida da fonte do leite e do mel. de tanto ouvir o ladrar do cão da consciência também atravessei o túnel da escuridão e não era um filme de kurosawa, era o silêncio branco dos meus olhos alongados na irreparável distância de quem sendo, fui. diante do espelho, entre o branco e o negro, imaginei a linha sinuosa dos meus passos e o o espelho, alheio ao enigma das estações, talvez signo do zodíaco, talvez sábio das veredas onde perdido me achei, disse nada. e, contudo, disse. sou livre. centauro. anoitece. aconteço.


em viagem, na viagem de outro corpo




a tua língua lenta nos lábios húmidos da minha fenda voa súbito até à

agonia da minha boca e vagarosa como a saliva encontra os meus seios

impacientes do despudor das tuas mãos, duros de serem presa dos teus

dentes, ó sentir-me assim prestes abusada no veludo da pele, ceder

ao toque dos teus dedos, sucumbir à tormenta dos teus flancos, ouve,

quero soltar-me no grito obsceno da garganta, quero ser festim do teu

corpo a prumo na gruta que doendo rompe a penumbra do meu ser,

ó, sim, dá-me a claridade dos sentidos como se a luz incandescente

de um cometa rasgasse a brancura dos lençóis e me fizesse fêmea

contigo no galope da cama, exultante do estertor do teu relâmpago,

inteira de saber-me na alma fulgor do teu banquete .