sexta-feira, 30 de setembro de 2011

em viagem, no esplendor dos dias


parti sem destino em busca de um lugar incerto porventura habitado por sortilégios, prodígios e segredos, cujos súbitos fulgores pudessem libertar ainda o rosto fatigado do compasso inexorável do tempo. tal como o marinheiro errante tocado pela graça do mar e levado pela asa variável do vento, ousei sulcar o azul vibrante levando comigo o saber do viajante antigo de olhos maravilhados de tanto amar a perenidade dos instantes. encontrei não sei se pedras de água se seixos rolados através das idades do sol incidente, pouco importa, pois eram praias de areias tão finas com marcas de passos tão presentes que a água se fazia pedra, a pedra, brisa e os passos por certo seriam marcas de amantes clandestinos no lume deslumbrado das manhãs. mergulhei na aventura das águas profundas e em braçadas largas fui tão fundo quanto a vertigem do olhar que antecede o espanto das dunas quando a onda se desfaz em espuma e no horizonte se perfilam as cores pacíficas do corpo apaziguado do entardecer. tendo a lua por companhia e vénus um tudo nada mais distante, naveguei sem bússola nem quadrante em noites de palavras proíbidas, sendo o dito o silêncio do brilho das estrelas e o silêncio a pele dos meus dias correndo ao encontro de mim mesmo. no rumor das marés, nas madrugadas anunciadas, nas largas enseadas entre línguas de areia e delicadas hastes de plantas bravias ondulando ao sabor do vento, na ampla curva do horizonte, no limite do olhar e no fundo do dizer-me, sob o voo de uma gaivota suspensa no esplendor dos dias, soube, assim, no encontro do outro em mim, o sentido do saber antigo das praias viajantes onde os deuses guardam em segredo o mistério da plenitude dos instantes.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011


Disseste




Disseste: hoje sinto-me cinzenta

e logo inventei

uma nesga de sol

como se investido de plenos poderes permitido me fosse

redimir o silêncio das árvores despidas

e convocar a presença dos deuses,

esses que emergem das águas profundas

para apaziguar margens de sombras impuras

e operar a metamorfose do cinza em cor.


sábado, 24 de setembro de 2011

em viagem, diante do mar




Faz calor. Caminho como se a luz do dia, indiferente à volta dos passos, mergulhasse a prumo no horizonte dos meus dias. Respiro nas dunas o murmúrio do vento, memórias de um rosto de marinheiro tão atento aos desafios e mistérios do mar. Sob o sol de azul intenso, uma gaivota. E uma casa desabitada de paredes brancas, corroída pelo sal do tempo, que um dia foi minha. Aí nasci de mãos errantes, de um rumor de lua nova, sob o imponderável signo de perder-me, talvez, felino de mim mesmo. Aí soube das águas do rio ainda os dedos tocavam estrelas em florestas densas de pássaros cumprindo noites de insónia e dias felizes. Aí aprendi o côncavo dos seios e o convexo do sexo como quem no corpo declina a palavra maravilha. Sendo muitos, tive por companhia o medo sombrio da loucura, a loucura luminosa da paixão, a paixão indomável da procura, a procura sonhada dos meus sonhos. Agora, estou só, diante do mar. Caminho ainda. Pode o calor atenuar a erosão da pele, iludir o declínio do rosto e ocultar o abandono das mãos, mas já o crepúsculo cai sobre a casa dos meus dias, e a gaivota, ferida de azul, alonga o seu voo na distância e o silencioso tigre no seu labirinto, pondera: em breve mal distinguirei as silhuetas do amor e da morte. Assim é o tempo, absoluto e final.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Aurora




para a minha filha

olá aurora, vou contar-te um segredo. tu és como a lua redondinha cheia dos gatos dos teus desenhos num céu cheio de estrelas e eu vejo-te andar leve como quem dança por entre bolas de sabão coloridas à descoberta da casa das surpresas. tantas coisas me intrigam na maravilha desse teu jeito natural de soltar peixes voadores dos dedos do mar imenso dos teus sonhos e, por isso, quando me pegas na mão eu sei que me levas para um lugar onde a noite se esquece de anoitecer, onde os anjos ficam suspensos de te ver passar embalada na brisa do tempo e tu, então, perante o espanto do silêncio dos meus olhos dir-me-ás, apenas, de olhos limpos, olha pai, vê o mundo a acontecer. por isso te chamas aurora. é esse o meu segredo. hoje fazes dez anos, mas isso já tu sabias.


domingo, 18 de setembro de 2011

em viagem, viajante de mim mesmo




quando forem oito horas da manhã de segunda feira dia 9 de Agosto de 2010 parto em viagem de rumo incerto para lugares mais a sul, isso é certo, onde o sol bate a prumo e só tarde se esvai no horizonte em cores de sábios desafios, deixando adivinhar no lento movimento das marés um halo de sal, uma marca na pele, talvez uma deslumbrada flor de espuma branca na fenda do corpo dos meus dias. quando forem oito horas da manhã seguirei pela estrada sobre um rápido asfalto negro desferindo uma seta de luz na memória do intangível futuro e levarei comigo uma mochila e alguns parcos pertences, mais os velhos companheiros de viagem, o persa que me fala do amor e do vinho e o alexandrino que me canta o prazer de um lenço de seda e me ensina os mistérios da minha condição contingente e masculina. quando forem oito horas da manhã, serei apenas eu, os meu olhos, as minhas mãos, o meu corpo sabendo do abraço das algas molhadas, do voo dos ventos de direcção variável, das luas de noites quentes e improváveis e tudo será tão certo quanto a maravilha do minúsculo grão de areia fina ou da delicada gota de água de azul transparente ou do nada que em mim tudo acolhe com a serena alegria de assim ser viajante de mim mesmo.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

em dublin, na cinza da noite



dublin, temple bar


Think you're escaping and run into yourself. Longest way round is the shortest way home." James Joyce (Ulysses)

enfrento os vagares do tempo nas ruas de dublin como se um anjo em nome dos aflitos me tivesse dito é tarde e de mãos nos bolsos se afastasse súbito numa poeira de estrelas deixando um rasto de cinza e bruma esparsa, talvez um sinal da luz esvaída do princípio da incerteza. anoitece cedo aqui no inverno da irlanda, não será por isso assim tão tarde, não sei. mas faz frio e levanto a gola do casaco, enrolo o cachecol à volta do rosto e nesse voo incerto dos meus braços cabe a memória imprevista de um rumor de palavras ciciadas, do fulgor bravio de marés antigas, do frémito dos pequenos peixes rápidos como as tuas mãos errantes sobre o lado vulnerável do meu corpo em arco na frágil lua do teu ventre. as luzes de dublin acendem arabescos furtivos nos espelhos da água e como pincéis de chuva intermitente desenham aguarelas imprecisas à passagem dos meus passos por estas ruas molhadas onde, numa delas, deslumbrado, por certo verei o clarão do temple bar na noite de estreia do messias de handel, 13 de Abril de 1742. tal como no cinema também tudo aqui é espaço e tempo, em campo ou fora dele, imagem e movimento. mas olha, ouve, eu apenas quisera adivinhar a direcção do vento para nela saber do rumo dos teus flancos desferindo golpes doces e violentos ou fazer-me pedreiro dos segredos da pedra para nela perpetuar a luz do sol do teu sorriso e assim, artífice de mim mesmo, dizer-te sou outro agora, no entanto, ainda o mesmo. já da noite se escapam os farrapos dos primeiros alvores do dia e em norht earl street vejo um outro apressado de mãos aflitas enterradas nos bolsos do casaco dobrando a esquina do tempo num rasto de cinza e melancolia sem saber que eu, tendo um joyce de pedra por companhia, dele ouço estas palavras que bem conheces. toca-me. suaves olhos. suave, suave, suave mão.



quarta-feira, 7 de setembro de 2011

em viagem, na lâmina do tempo





deixo o hotel de circunstância por uma porta lateral. azul é o céu onde por vezes pássaros de cores improváveis me levam em voo vertical ascendente. vou sem destino. o automóvel desliza pela manhã junto ao mar. no convés de um navio de vidro transparente, ao som de músicos em traje de rigor, atores de semblante grave conversam como se mudar de personagem fosse questão primordial e transcendente. acelero. a meu lado, jimmy dean, de cigarro no canto da boca, chapéu de cowboy descaído sobre os olhos e postura negligente, olha-me de soslaio. jimmy e eu partilhamos o silêncio dos interditos. pouco falamos. ele viaja na indiferença do labirinto do mito, eu na contingência do labirinto do ser. pela tarde dentro, de quando em vez, vislumbro pelo espelho retrovisor fragmentos de cenas afiadas como um bailado de navalhas de ponta e mola. é uma imagem recorrente, tal como a do navio, agora longe, navegando a lenta declinação das águas, lá onde sobra o fio da música do ocaso e a bruma processa a metamorfose da memória em esquecimento. os faróis varrem a noite, vertigem de um feixe de luz intenso, clarão de cometa errante. olho a estrada. mal consigo vê-la. penso na razão, ou falta dela, de algumas coisas me serem o que são nunca o sendo ou quase nunca. desprendido na insolência do seu destino fatal, jimmy dean esboça o enigma de um sorriso. travo a fundo. faz-se negro. acordo em sobressalto. temo o primeiro confronto com o espelho como se diante dele pudesse confirmar-se um estado febril ou, por excesso, o fio da lâmina do tempo. com a barba por fazer, o rosto em desalinho, deixo a água do chuveiro escorrer abundante pelo corpo. mergulho num longo plano sequência. não tarda voltarei a sair pela porta lateral de um hotel de circunstância.