sexta-feira, 21 de outubro de 2011

em amesterdão, na rua nos




no conforto do discreto átrio art nouveau do hotel rho, na nua nos, circulam silhuetas esquivas por entre arabescos de uma música de espelhos, enquanto eu, sentado, aguardo, meio perdido e meio achado, de copo de vinho na mão, a hora provável de uma estrela pintada na vertigem da noite de amesterdão. stela passa pela luz difusa como um vulto de seda branca parecendo, de tão leve, desafiar a gravidade do meu rosto refém do punhal a prumo que fere a luz precária do tempo. por uma vez, porque assim será, ambos seremos viajantes ou não dos mistérios da rua nos, aí onde se declinam tempos de verbos improváveis em lugares de amáveis sortilégios. stela sai. eu fico. enfim, eu saio. está uma noite fria com uma pálida lua distante na bruma em cujo seio, sei, há passos de anjos embriagados pela memória de uma outra noite quando o meu rosto exultava na vertigem de um outro rosto, aqui, nesta mesma rua nos, era o verão de 1994. passaram quinze anos. caminho agora lado a lado com jovens de mãos dados onde por certo sobram os dedos. é o inverno e revejo no labirinto da memória esse rosto imprevisto e o seu sorriso, os olhos de súbito desmaiados, os lábios entreabertos de palavras indizíveis que ouço, ainda, no silêncio apressado dos meus passos sobre a película de neve fina e branca. viajo de lugar em lugar entre copos de vinho e encontros fortuitos, mais achado que perdido num corpo de lua vaga e gosto de ouvir línguas estranhas nas suas amenas falas e de assim enganar as horas onde se perfilam já os secretos rumores da madrugada. súbito, o rosto esculpido pelos vapores da noite, stela passa, os olhos líquidos em vagaroso desafio e passa tão perto e tão lenta, que sinto os seus seios duros de mamilos erectos ferindo como punhais os meus lábios perdidos no verão de 1994. um raio de sol rompe por uma fresta da janela do meu quarto e queima o último instante do meu sono como um cometa de cauda incandescente. estou só, achado e não perdido, na minha cama do hotel rho. quando descer ao átrio para o café da manhã encontrarei stela, dir-lhe-ei good morning, e ela nada saberá do que eu dela soube na minha noite imaginada na rua dos sortilégios de nome nos.


sábado, 8 de outubro de 2011

em amesterdão, na praça dam




na praça dam, amesterdão, com seus elegantes edifícios anunciando os mistérios do crepúsculo, ouço o rumor distante do silêncio e sinto a brisa gélida deste inverno onde tudo, porém, está certo, salvo, talvez, a tua ausência. penso na amável conjugação dos verbos mais secretos, num alvoroço de pássaros em lençóis desfeitos, mas esse estar presente diluído na ausência é apenas uma lua vaga nos sulcos do meu rosto. saberei, contudo, adivinhar-te, seja um relâmpago o bastante, e penso nisso, agora, na brasserie majestic, quando no outro lado da praça, no museu de madame tussau, vejo figuras de cera alinhadas no desconcerto do tempo espreitando os rigores do frio e procurando, quem sabe, iludir os ponteiros de um relógio quebrado ou ensaiar os passos de uma improvável valsa lenta. pouso, então, a luva da minha mão direita sobre o tampo da uma mesa, testemunha silenciosa de enigmas antigos que habitam as estações. lá fora há luzes que se acendem, flocos de neve soprados pelo vento, agasalhos quentes de cores diferentes, gentes caminhando seguras por entre bicicletas em rodopio desenhando sobre o gelo arriscados desenhos fulgurantes. gosto de amesterdão assim, desta neve e desta névoa, da espuma espessa da cerveja nos meus lábios, da surdina do trompete de chet baker, destas vozes ciciadas, da jovem de cabelo louro curto da mesa ao lado na serena expectativa de um amante anunciado. assim estou, apaziguado ou nem tanto, resguardado na bruma de mim mesmo, olhando aquela indecifrável luva como se um súbito calor, talvez relâmpago, me pudesse trazer a memória de um rosto iluminado por um sorriso ou o sobressalto dessa minha mão direita fascinada e interdita pelo sorriso desse rosto.


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

numa cidade de passagem, a caligrafia do chão




como um náufrago procuro os cristais da palavra, os seus lábios húmidos de dizer, as suas longas pernas de ventos e florestas, mas é tarde, e ao dobrar da esquina de uma oblíqua rua dos arredores de mim mesmo descubro uma fuligem de chuva, um cheiro intenso a óleo queimado que alastra no fluxo nervoso desta cidade de passagem anunciando, porventura, a vertigem da solidão. para tanto bastará apenas o medo soltar a alavanca da noite e deixar-me entregue à minha memória registadora de nomes e atrocidades. não, não sei nomear a cartografia vulnerável do meu rosto. um denso, líquido pavor escorre do flanco de facas suspensas e o tempo presente passa implacável por entre as ruínas do tempo passado, já tempo futuro. como habitar esta cidade de passagem se o aqui estar ausente é o refúgio que me sobra da água um dia bebida na harmonia das fontes? em nome de indecifráveis desígnios partirei breve rumo às estações suspensas da respiração da pedra. não voltarei a saber do tempo em que por desencontro de ti a fileira de dentes brancos e ferozes não soube nem da boca sangrenta do teu rosto que doendo me deixou. sou agora uma folha de papel de incontidas palavras nesta cidade do descampado onde me espera no peito o impacto absurdo de uma flor fulminante. vejo cachorros e guardas vindos do fundo da noite para apagar o sopro das estrelas, vejo exércitos no seu ritual sombrio de passada lenta e ouço o espanto das vozes suspensas na luz coagulada do silêncio. tropeça um corpo interdito em clarão, súbita silhueta da queda de um amor em câmara lenta, multiplicando, aflitas, as mãos. jaz o rosto em seu rigor absoluto na fria caligrafia do chão.