cinema, cultura e comunicação





















MEMÓRIA E ESQUECIMENTO

Time present and time past
Are both perhaps present in time  future,
And time future contained in time past.

                                          T. S. Eliot

A memória é o espelho onde observamos os ausentes. A frase é de Joubert e ocorreu-me diante de uma plateia de 30 estudantes do ensino superior no dia seguinte ao da morte do ditador chileno Augusto Pinochet. Nesse dia, numa das minhas aulas de cinema, era suposto tratar da encenação do poder em Ivan, o Terrível de Sergei Eisenstein, mas pareceu-me oportuno falar de Salvador Allende de quem a maioria dos estudantes desconhecia o nome e de Augusto Pinochet de quem tinham um conhecimento sincrético proporcionado por informações avulsas obtidas através da televisão. 

Conheço bem o mundo dos telejornais. Sei bem como se faz televisão. Estou a par dos argumentos segundo os quais as coisas têm de ser como são ou não fosse a “especificidade” da televisão uma espécie de guarda-chuva debaixo do qual cabe tudo quanto possa ser legitimado ou proscrito por uma tabela de audiências. Na televisão pública ou na privada? Em ambas. Perdi a conta aos responsáveis pela tutela do serviço público ao longo dos anos. De um ouvi defender uma mistura de serviço público e televisão comercial, consoante a oportunidade e a hora do dia. A um outro ouvi um argumento de peso em sua defesa: não ia tão longe no abuso quanto a televisão privada. Pública ou privada, a televisão é o que é: angaria eleitores oferecendo produtos; programa consumidores alienando cidadãos. É o espectáculo pós-moderno por excelência, cujo paradigma reside na emancipação do significado face ao real. É o reino do efémero a troco da ilusão da ubiquidade. É o mundo da rarefacção simbólica a coberto da dramatização sem espessura, do simulacro festivo equivalente da celebração ritual do aforismo de McLuhan: a mensagem é massagem. Naturalmente, para ser o que é a televisão necessita de parecer outra coisa. Não é a preto e branco. É a cores. 

Também já vou conhecendo por dentro o mundo do ensino. Trabalhei numa excelente equipa na reconversão e criação de cursos ajustados ao horizonte de Bolonha, meses a fio, numa tentativa de encontrar soluções para problemas agravados, ano após ano, apesar da solene e reiterada proclamação de princípio da ligação da escola à sociedade e ao mercado de trabalho numa lógica de educação para a cidadania. Tecnologia: o novo deus ex machina. De acordo. Avaliação, competitividade, investigação, internacionalização. Quem poderá discordar? O único pequeno problema reside na resistência do dia a dia, no somatório de práticas acumuladas que deram lugar a uma cultura escolar que penaliza mais do que gratifica, num ensino que obrigando a memorizar mais do que a pensar atribui ao sentido prospectivo da memória histórica, que é plural, um papel meramente residual. Qual a margem de possibilidades de uma pedagogia para a cidadania, socialmente útil, no espaço que sobra entre a reserva de interesses acomodados e a exigência pragmática da obtenção de resultados com carácter de urgência? Ou de emergência? 

Troquei, portanto, o filme de Eisenstein por um outro de Patrício Guzmán, um documentário ainda não estreado em Portugal intitulado Salvador Allende. Guzmán tem uma curiosa definição do documentário. Chama-lhe o álbum de família dos povos. O filme que o tornou famoso, A Batalha do Chile, foi parcialmente rodado durante o golpe militar de Pinochet. Se não tivesse conseguido fazer sair do país essas imagens, certamente saberíamos hoje menos sobre o que então aconteceu e o mundo, ou melhor, parte dele, não se teria indignado como então se indignou. A Batalha do Chile converteu-se, assim, para uns numa peça de resistência ao fascismo e numa alavanca para a restauração da democracia, para outros num filme maldito por atentar contra a ordem negra, ritual e paramentada, imposta pela força bruta das baionetas. Quando após muitos anos de exílio Patrício Guzmán regressou ao Chile para fazer Salvador Allende deparou com uma situação dolorosa, mas previsível: a dificuldade dos chilenos acertarem as contas com o seu próprio passado. Digo previsível, porque o apagamento da memória, no Chile ou em qualquer lugar, parece ser um sinal dos tempos.


O mundo, mais do que a coisa em si é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é desconstruir. O mundo, pelas melhores razões, é a cores, não é a preto e branco. Por isso, uma das formas mais eficazes de fazer pedagogia na escola talvez corresponda a uma escolha estratégica de sobressaltos de modo a colocar os estudantes perante a evidência lúdica da sua própria ignorância. O método é duplamente vantajoso. Rejeita o estigma e propõe o prazer. E assim sendo permite estruturar novos desafios numa lógica de fruição e de confrontação criativa de cada um consigo mesmo e com os outros, o professor incluído. Ensinar é, aliás, aprender duas vezes. Mas, tal como sucede com a programação cultural, cujo maior equívoco pode resultar da aceitação acrítica de um saber institucional avesso à mudança, o ensino não deve enjeitar o risco da transgressão. Como em tudo, o risco tem sempre algum grau de imprevisibilidade, mas não ser capaz de o assumir é como olhar o mundo pelo retrovisor. 

Pois bem, cinematograficamente Salvador Allende não terá o fôlego de outros filmes que igualmente interpelam a memória como Nuit et Brouillard de Alain Resnais, sobre os campos de concentração nazis, ou Le Chagrin et la Pitié de Marcel Ophuls, sobre o colaboracionismo na França de Vichy. Mas é uma narrativa construída a partir de argumentos coerentes, interroga-se mais do que afirma, pondo em evidência a singularidade do homem que acossado pela barbárie no palácio de La Moneda preferiu o suicídio à rendição. Se confrontado com a informação incoerente e fragmentada de um telejornal e se a informação do telejornal constituir o paradigma do que toda a gente deve saber, então Salvador Allende é transgressor porque assumindo um ponto de vista, mas não o impondo, está, afinal a dizer: vejo as coisas desta maneira, e vocês?

Dizia Godard que o cinema é a memória, a televisão o esquecimento. Tratando-se de um aforismo a prova fica dispensada. Observemos então atentamente os ausentes.   

Jorge Campos
Jornalista, Professor do Ensino Superior Politécnico, Programador da Odisseia nas Imagens (Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura) onde através do olhar de centenas de documentários se tratou de interpelar o tempo passado, presente e futuro.
Publicado em Lura, Jornal Educativo do Centro Cultural de Vila Flor, nº.3 Abril – Junho 2007



Em Defesa de um Serviço Público de Televisão Descentralizado: O Caso Português

por  Jorge Campos
ligada a televisão





























Dentro de alguns dias vou pronunciar-me sobre o serviço público de televisão. Não me apetecia. Ver televisão exige de mim um grande sacrifício. Sinto o incómodo de estar perante uma entidade absurdamente despótica, uma espécie de máquina censurante operando o prodígio de confiscar a palavra aparentando pluralidade, vendendo ilusões e tendo a ousadia de se dar a ver como se de dar a ver o mundo se tratasse. Mas, enfim, tendo por lá passado, percebo não dever excluir-me de um debate no qual vão discutir-se alternativas ao admirável mundo novo que à velocidade do relâmpago nos está a abrir as portas da regressão ao passado do buraco negro da incerteza por inteiro. Sendo o universo simbólico fulcral para o entendimento das representações que supostamente nos representam, decidi recuperar alguns textos antigos no pressuposto de que, mesmo lidos à distância, alguma utilidade terão para o debate que se aproxima. Este que se segue é o resultado de uma conferência feita há alguns anos no Conselho da Cultura de Santiago de Compostela.

Quando no início dos anos 60 se começou a utilizar a expressão Aldeia Global pretendia-se, fundamentalmente, dar conta de uma particular realidade resultante da explosão das tecnologias da comunicação e da informação, em função das quais o mundo se tornava mais pequeno, posto que, pelo menos no campo das hipóteses, os povos da Terra estariam em vias de recuperar a tradição oral da tribo primitiva. Numa perspectiva optimista, essa oralidade instantânea, bem com a visão em permanência a ela associada do que acontecia nos quatro cantos do mundo, pareciam exprimir um universo de comunicação capaz de promover encontros e consensos à escala planetária. Não foi isso o que aconteceu.

McLuhan, a quem a noção de Aldeia Global está imediatamente associada, avançou de forma pertinente a hipótese das tecnologias da comunicação promoverem mutações civilizacionais em profundidade e não se enganou ao proclamar novas modalidades de percepção induzidas pelos media electrónicos. Os seus famosos aforismos o meio é a mensagem ou a mensagem é massagem tiveram acolhimento universal e contribuíram para estruturar as modalidades de representação ainda hoje dominantes nos meios audiovisuais. Um aforismo, porém, é algo que surgindo com a evidência da verdade escapa à evidência da prova. Por isso, ao pensamento de McLuhan, intuitivamente brilhante, sobra em ressonância mágica o que lhe falta em rigor prospectivo. Não lhe ocorreu, porque não quis ou lhe pareceu acessório, que os media são portadores de discursos construídos em função de estratégias de persuasão e que, por isso, a lógica da comunicação é, em si mesma, uma lógica de dominação.

Pouco menos de 20 anos depois de The Guttenberg Galaxy e Understanding Media, as obras onde melhor se expressa o mcluhanismo, no relatório McBride elaborado para a Unesco, em 1979, afirmava-se:

“No campo da comunicação, o problema de hoje e do futuro imediato é utilizar as possibilidades realmente existentes, mas que, todavia, são negadas à maioria da população do mundo. Os sectores produtivos da sociedade dependerão cada vez mais de uma organização do trabalho inteligentemente programada, da compreensão, da experiência e da utilização da informação, onde e quando for necessária. Se a penúria dos recursos alimentares, da energia e das numerosas matérias primas é um tema que suscita inquietação, já os recursos da informação aumentam constantemente; à escassez que caracterizou a história precedente, sucede a abundância. O mundo dos anos 80 em diante será o da oportunidade de apreendê-los”.

O relatório, devido à controvérsia que suscitou e à oposição de alguns países, sobretudo dos Estados Unidos, contribuiu para agitar as consciências, deixando claro que forjar um futuro melhor para os homens e mulheres do planeta não depende essencialmente do progresso técnico, mas sim das respostas que cada sociedade for capaz de dar sobre o que política e conceptualmente fundamenta o desenvolvimento. Nesse sentido, é decisivo saber utilizar a informação a partir do universo de entropia, entretanto generalizado. Essa a razão pela qual se tem vindo a prestar maior atenção às políticas da comunicação associadas à produção simbólica.

Na Europa, o desenvolvimento, encarado como um percurso para formas mais avançadas de democracia, passa por aí. Não haverá progresso económico e social sem uma matriz que seja simultaneamente expressão do mosaico cultural europeu e pólo aglutinador de vontades tendo em vista a proposta de parâmetros de referência e a construção de modelos de atracção universal. Neste percurso – sinuoso e contraditório – colocam-se múltiplos desafios. O primeiro e mais difícil de assumir é a destruição das evidências, na medida em que paradigmas longamente interiorizados resistem ao sobressalto da inovação e determinam a manutenção de políticas e estruturas de caducidade evidente, como acontece, de um modo geral, no conjunto dos serviços públicos de televisão da Europa. Esses paradigmas radicam na ideologia da televisão generalista, ainda dominante, à qual é associada uma função reguladora pensada fundamentalmente nos aspectos relacionados com o preenchimento dos tempos de antena, sem cuidar de uma estratégia integrada que passa pelos territórios a montante e a jusante dessa mesma antena e sem os quais não é possível definir políticas audiovisuais coerentes.

Para se compreender esta afirmação importa recuperar alguns dados que são, aliás, do conhecimento geral. Nos anos 80, a Europa viveu um período de desregulamentação e de abertura da televisão aos operadores privados. Mas, foi também por essa altura que começaram a fazer-se sentir os efeitos de uma nova revolução, cujos primeiros sinais chegavam dos Estados Unidos. Em 1979 – o ano da divulgação do relatório McBride – as três majors americanas (CBS, ABC e NBC) concentravam 91% do total da audiência televisiva. Dois anos mais tarde, esse indicador caiu para 85% e em 1983 para 81%. Em 1990, CBS, ABC e NBC, em conjunto, estavam abaixo da fasquia dos 60% de audiência. Ou seja, em pouco mais de dez anos, devido à segmentação do panorama televisivo, verificou-se uma significativa mudança de hábitos do público americano.

Os efeitos deste fenómeno, o qual viria a acentuar-se nos anos subsequentes, são de ordem cultural e tecnológica. Do ponto de vista tecnológico, a disseminação do cabo interagindo com os satélites geoestacionários e com as plataformas digitais fez crescer exponencialmente uma oferta televisiva segmentada, temática, especializada e interactiva. Um primeiro exemplo de sucesso desta tendência foi a CNN. Do ponto de vista cultural, a segmentação veio dar visibilidade a uma multiplicidade de discursos e de representações muitas vezes ausentes ou proscritos da televisão generalista de grande público e veio dar voz a quem a não tinha, constituindo-se como um poderoso elemento de regeneração da paisagem audiovisual. Em Espanha, por exemplo, temos notícia da existência de cerca de 200 estações que operam a nível regional. Em suma, a aldeia global, que parecia ter tornado o mundo mais pequeno, promoveu dentro de si própria uma inversão de rumo. O mundo está cada vez maior porque há cada vez mais para dizer e cada vez mais gente a reclamar fazer-se ouvir.

Esta multiplicação da oferta televisiva, a sua diversidade e crescente especialização produzem efeitos imediatamente relacionados com a qualidade da democracia. Desde logo, assinala-se o aparecimento de um novo tipo de espectador que se distingue do heavy-viewer da televisão generalista pelo facto de ser mais selectivo e, como tal, mais exigente, sendo que esta exigência se exprime a dois níveis complementares: a escolha do que ver e do modo como se dá a ver. Ao promover a diversificação do discurso televisivo, por outro lado, a segmentação abre portas não apenas aos canais temáticos e especializados, mas também a uma muito maior visibilidade do local e regional. Nesta matéria, infelizmente, a tradição portuguesa que transita da televisão generalista hertziana, e sobretudo do serviço público, é a de exportar a matriz organizacional e o discurso do centro para as periferias, ainda que pretextando a descentralização. Dito de outro modo, o que tem prevalecido é uma lógica tutelar inibidora do desenvolvimento de pontos de vista autónomos, cujas consequências estão à vista na multiplicação de estereótipos nos quais, por vezes, aqueles que deveriam ser os primeiros a recusar a imposição dos modelos exportados, por razões de uma suposta eficácia junto do público, acabam por se projectar através deles.

Sejamos claros: em Portugal, não haverá nem melhor democracia nem melhor cidadania sem televisão pública segmentada comprometida com a realidade local e regional, desde que, evidentemente, não se perca de vista, antes se estabeleça como desígnio, encarar o local e o regional como base do universal. Não quer isto dizer que a televisão generalista esteja em vias de extinção. Não está e tem ainda um importante papel a cumprir. Mas, num mundo em mutação acelerada, quer no plano tecnológico, quer no plano simbólico, é necessário criar mecanismos capazes de promover políticas integradoras dessa lógica de mudança. Para tanto, será de elementar prudência evitar transferir procedimentos e figurinos das televisões de broadcast para as novas modalidades segmentadas.

Neste domínio, a RTP tem dado a sensação de olhar o mundo pelo retrovisor – a expressão é, mais uma vez, de McLhuan e pretende evidenciar a incompatibilidade dos critérios da Galáxia de Guttemberg para efeito de uma avaliação prospectiva da Galáxia de Marconi. Amarrado, em maior ou menor grau, à tradição dos primeiros 40 anos da televisão hertziana, durante os quais foi transformado numa espécie de aparelho ideológico do estado, e incapaz de se libertar de uma cultura interna modelada pela dependência política que foi responsável pelo esvaziamento da massa crítica que lhe permitiria responder aos novos desafios, o serviço público reagiu sempre de modo conservador. As suas respostas inscrevem-se, regra geral, numa perspectiva de mais do mesmo.

De uma forma muito sumária, porque importa fazer um pouco de história, dir-se-ia que após a abertura da televisão à iniciativa privada, o operador de serviço público sucumbiu, numa primeira fase, à tentação da luta pelas audiências e reagiu mimeticamente, ou seja, imitando a televisão privada. Os géneros esgotaram-se em meia dúzia de receitas importadas. A Informação teve altos e baixos, mas enveredou, muitas vezes, pelo espectáculo e dramatização gratuitos. O nivelamento fez-se por baixo e o serviço público, embora reivindicando, aqui e além, um papel de referência, nunca, na verdade, o desempenhou. Pelo meio ficaram tentativas esparsas de adopção de medidas inspiradas no chamado modelo de serviço público europeu, na melhor das hipóteses vagamente inspiradas pelas teses associadas ao elogio do grande público de Dominique Wolton. Numa segunda fase, cujo início coincidiu com a mudança de ciclo político no ano de 2002, os partidos de direita coligados, sem qualquer pensamento sobre a matéria e reclamando medidas economicistas baseadas em cálculos supostamente de produtividade e rentabilidade, chegaram ao governo com um programa que reduzia o serviço público de televisão a um único canal. O protesto dos sindicatos, de associações culturais e de personalidades de todos os quadrantes políticos, bem como a luta dos trabalhadores da RTP, resultou num debate que se prolongou por meses e obstou à concretização desse desígnio. Entre outras virtudes, o debate teve o mérito de gerar um consenso alargado quanto à indispensabilidade da existência de um serviço público. Subsistiram, no entanto, indefinições e marcas de uma evidente crise de identidade.

Como ultrapassar esta situação? A resposta é relativamente simples se encarada no âmbito de um conjunto de princípios indiscutíveis. Por exemplo, o serviço público passa pela substituição de uma pedagogia dos consumos por uma pedagogia da cidadania e pela observância de um clausulado universal que respeita a liberdade de expressão, promove a diversidade das escolhas e disponibiliza um conjunto de programas que vai ao encontro de públicos diversos, nomeadamente das minorias, e se reclama de referência. Procedendo desse modo, o serviço público, combinando a acção de dois canais generalistas, estaria a exercer, ao menos, parte da função reguladora que o legitima. O problema é que, mesmo nessa perspectiva, essa função, sempre invocada, nunca foi cabalmente esclarecida e, portanto, nunca foi cabalmente praticada.

Qualquer regulação, sendo embora condicionada por razões de conjuntura, requer opções estratégicas. Hoje em dia, todos os países desenvolvidos reconhecem, por exemplo, a importância do papel da televisão nas suas relações com a indústria electrónica, bem como o papel decisivo desta última na evolução tecnológica. De igual modo, a produção simbólica da indústria audiovisual é encarada como potencial factor de coesão interna e de afirmação e visibilidade de um país à escala global. Ora é do levantamento de questões como estas e das combinações delas resultantes que se deve partir para a definição da função reguladora do serviço público. Não se trata já, ou apenas, de proclamar o primado de uma informação isenta, da defesa da língua e identidade nacionais e de defender a realização de programas exemplares – propósito que habitualmente se esgota na retórica – mas, sobretudo de cuidar destas matérias em articulação com aquelas outras que, estando aquém e além da antena, permitem pensar o serviço público como a entidade à qual compete a estruturação do conjunto da paisagem audiovisual.

Encarado nesta perspectiva, o exercício da função reguladora é tanto mais urgente quanto é certo que acompanhando, embora com algum atraso, o que se tem passado noutros países europeus, o panorama televisivo em Portugal alterou-se significativamente nos últimos 15 anos. A par da abertura ao sector privado, a emergência do cabo trouxe novas experiências, traduzidas, infelizmente, na sua esmagadora maioria, na importação de canais temáticos ou canais generalistas internacionais. E digo infelizmente não porque não seja importante dispor de muitos desses canais, mas porque tem havido uma notória falta de imaginação na exploração das potencialidades do cabo. É verdade que um operador privado, a SIC, de Pinto Balsemão, lançou canais temáticos relativamente bem sucedidos e que a RTP esteve envolvida em parcerias com dois canais, um de desporto e outro local. Mas, no caso da RTP, as experiências viriam a revelar-se um desastre e a SIC não tem nenhum plano, tanto quanto se vai sabendo, de investir naquilo que em Espanha, por exemplo, está a ter reflexos importantes em termos de representação simbólica e da produção a ela associada e que é a televisão local e regional.

O mundo televisivo, pela sua natureza tecnológica, é um mundo de mudança. O paradoxo que nele reside resulta dos paradigmas das televisões generalistas serem predominantemente conservadores e, portanto, avessos à experimentação. A televisão generalista, tal como hoje existe, pouco arrisca. Quando muito, explora fórmulas de sucesso, exigindo a formatação dos conteúdos. Cristaliza, mesmo que a parafernália da técnica pareça desmenti-lo. Pelo contrário, a televisão segmentada requer ousadia, imaginação, risco e pode ser essencialmente experimental. Propõe modalidades organizativas mais flexíveis, impõe a inovação no plano das linguagens e abre as portas a nichos de mercado. Tem, em suma, um carácter prospectivo. Por isso, o investimento ponderado em televisão segmentada e descentralizada deveria ser uma componente estratégica de qualquer serviço público que pretenda exercer uma função reguladora justificativa da sua existência.

Que fez a RTP ao primeiro canal local com sede no Porto, a NTV? O costume, ou seja, incapaz de definir um percurso no âmbito de um processo de regulação estruturante, procurando criar nomeadamente condições que permitissem o aparecimento de embriões de uma indústria audiovisual com alguma relevância no norte do país por forma a investir no decisivo factor de uma visiblidade associada à inovação, tratou de olhar pelo retrovisor. Que viu? Naturalmente, um canal de notícias ou não fossem os decisores, na sua maioria, ou jornalistas ou gestores fascinados pela nororiedade de alguns jornalistas. Resultado, a NTV transformou-se na RTPN, uma espécie de canal informativo sem o ser inteiramente, obviamente sem qualquer identidade, e por onde passam até à exaustão as notícias transmitidas em todos os canais da RTP. Não quer isto dizer que tudo o que lá está seja mau, porque não é. O problema é que não traz nada de novo nem ao serviço público nem à sua função de regulação.

Como vimos, o relatório McBride, ao interrogar-se sobre o significado do desenvolvimento, adiantava que a partir dos anos 80 o mundo teria oportunidade de se apropriar das novas tecnologias da comunicação e da informação para as usar em benefício próprio. A hipótese permanece em aberto e a segmentação televisiva – bem como a rede multimédia – é uma das vias possíveis. Seria, no entanto, imprudente alimentar, agora, no século XXI, um optimismo excessivo. Para a generalidade dos partidos politicos em Portugal, na prática, o problema da segmentação e descentralização audiovisual será previsívelmente encarado num contexto de conquista de mais um palco electrónico onde os representantes partidários, neste caso do Porto, possam dizer com regularidade exactamente as mesmas coisas que diriam os politicos de Lisboa ou de qualquer outro ponto do país. Certo, alguns aparecerão mais na televisão, outros menos. Por isso, surgirão algumas queixas. Essa será, porém, uma questão meramente protocolar. No fundo, no espírito dos diferentes protagonistas parece prevalecer a mesma visão instrumental que preside a qualquer estratégia de propaganda. E, como tal, a tão apregoada pedagogia da cidadania continuará interdita face a uma lógica dominante que identifica consumidores com eleitores, uma declinação pós-moderna da velha máxima do pão e do circo. Enfim, possa eu enganar-me.

MacLuhan, apesar da argúcia dos seus aforismos, também se enganou a respeito da Aldeia Global. Muitas vezes se invocou o seu nome para sob a capa da modernidade impor a desresponsabilização no campo dos media, como se estes fossem obrigados a impor uma retórica da futilidade devido à sua natureza tecnológica. O meio, portanto, não é necessariamente a mensagem. Onde fica então o serviço público? Umberto Eco disse uma vez que a sobrevivência da sociedade democrática depende da capacidade de transformar a imagem não num convite à hipnose, mas num espaço de reflexão sobre o mundo. O serviço público de televisão fica algures por aí. Quanto à descentralização ficam algumas evidências:

- Faz algum sentido ter uma capacidade de produção instalada como aquela que existe no Porto sem uma autonomia que lhe permita, por exemplo, empreender co-produções com a televisão galega e beneficiar das sinergias de distribuição em antena à escala global da RTP e da TV-Galiza?
- Faz sentido que o Monte da Virgem, apesar dos saberes existentes na cidade do Porto, seja incapaz de produzir o que quer que seja para além de telejornais e outras rubricas informativas, jogos de futebol e talk-shows?
- Faz algum sentido um país ter a totalidade da sua produção audiovisual num único centro urbano, Lisboa, claro, para mais parcialmente dependente e a preços exorbitantes de influentes conglomerados multinacionais?
Concluo. Aceditem, um país que não sabe imaginar-se não tem sequer a possibilidade de ter consciência de si mesmo.

Santiago de Compostela, 5 de Novembro de 2004
Jorge Campos

desligada a televisão




O Douro no Cinema
por Jorge Campos


"Num Filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação."
Charles Chaplin


Aconteceu pouco antes da sua morte. Sabendo-se o seu estado de saúde e dado o interesse em perpetuar a sua memória junto de um público mais vasto, coube-me fazer um documentário para a televisão sobre Miguel Torga, aliás, sempre avesso a mostrar-se a não ser através da sua obra, a qual li então integralmente e, verdade se diga, quanto mais a lia mais a queria ler, mesmo apreciando desigualmente os diferentes modos da sua diversificada expressão. O filme foi feito em condições peculiares dada a urgência da tarefa e de Torga apenas me foi permitida uma única imagem final, a última que dele há ainda em vida, feita à distância de modo a evitar mostrar as irreversíveis marcas da doença que o haveria de levar. Dele ficou também um último registo de um fio de voz lendo um poema por ele escolhido, Súplica, se a memória não me atraiçoa. Contei, nomeadamente, com a colaboração de David Mourão Ferreira e de Manuel Alegre. O filme, de magro orçamento, fez-se correndo contra o tempo, editando ao ritmo do que se ia sendo filmado, sem a clara noção daquilo que viria a ser uma vez terminado. Mas, uma vez terminado, bem ou mal, além de Torga havia o Douro. Não sei se haveria Torga sem o Douro nem o Douro sem Torga. Nem Torga sem Trás-os Montes. Estou em crer que não. O filme chama-se Torga.






















Claro que sobre a região duriense o mesmo poderia aplicar-se numa outra escala e de maneira diversa a numerosas páginas de Guerra Junqueiro, Aquilino Ribeiro, Trindade Coelho, João de Araújo Correia, Pina de Morais e Domingos Monteiro, de resto, todos eles, posteriormente, ligados a um outro projecto de documentários para televisão em torno do Douro e da Literatura e, por isso, pela sua circunstancial relação com as imagens, aqui referenciados. Outros, ainda, poderiam ser lembrados, em todos se encontrando momentos de perfeita sinestesia entre a ordem deslumbrante da paisagem natural e a imensa dignidade da paisagem humana num labor no limiar do desfalecimento temperado por festividades pagãs ligadas à água, ao canto, ao mosto e ao vinho. Os socalcos do Douro são, portanto, um palco extraordinário para a encenação da condição humana e o rio, no lento fluir das suas águas, remete para tempos ancestrais, para uma sabedoria antiga da qual não está ausente a transcendência, como sucede nestes versos do autor da Criação do Mundo:

“À proa de um navio de penedos,/ A navegar num doce mar de mosto,/ Capitão no seu posto/ De comando,/ S. Leonardo vai sulcando/ As ondas/ Da eternidade,/ Sem pressa de chegar ao seu destino./ Ancorado e feliz no cais humano, / É num antecipado desengano/ Que ruma em direcção ao cais divino.”

Olhando o Douro, fácil é o entendimento de tamanha grandeza ter atraído a atenção de tantos escritores de cuja arte resultaram páginas inesquecíveis. Contudo, essa dimensão simbólica e imagética não encontra no cinema algo de equivalente. Aí, a presença do Douro é relativamente episódica e se é verdade que Vale Abraão de Manoel de Oliveira e O Rio do Ouro de Paulo Rocha são dois momentos incomparáveis onde o imaginário beneficia da ressonância da paisagem e da sua grandeza e contrastes, é igualmente certo que a maioria das imagens conhecidas são de cunho institucional. Ao leitor mais atento, evidentemente, não terão escapado duas omissões de peso: Douro, Faina Fluvial, também de Manoel de Oliveira, o qual, dada a sua relevância, justifica uma atenção mais alargada, como adiante se perceberá, e Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro, filme singularíssimo, mas no qual o Douro é relativamente marginal.

Dito isto, uma questão se coloca: haverá alguma razão para tão parca presença do Douro no cinema português? Certamente. Mas a resposta não reside tanto na falta de interesse dos nossos cineastas quanto nas características da nossa produção, ou seja, a questão de fundo é a exiguidade do mercado e o reduzido número de filmes de longa metragem produzido anualmente. É um problema antigo para o qual nunca se encontrou solução satisfatória e o que se passa com o Douro sucede com a generalidade das regiões de Portugal, excepção feita à capital e, mais recentemente, à cidade do Porto, neste caso por via de uma produção escolar no âmbito da qual a curta metragem de ficção e o documentário têm vindo a conhecer um novo impulso.

Todavia, deve ficar claro, se escasseiam os filmes vinculados a uma linha autoral abunda outro tipo de imagens. Quando fiz o filme sobre Torga uma pesquisa sumária revelou a existência de um acervo importante na Cinemateca Portuguesa, hoje no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento e, também, no serviço público de televisão. Diligências posteriores confirmaram essa impressão.

Apesar de estar por fazer a identificação exaustiva desse património, não será arriscado afirmar haver imagens da região duriense e do seu rio praticamente desde o início da aventura das imagens em movimento. Algumas delas terão até não só valor documental mas também interesse para a história do cinema português como serão os casos de Porto: ses quais et ses débardeuses (1923) de Roger Lion e As margens do Rio Douro do Porto a Entre-os-Rios, este, segundo José Manuel Costa um filme mudo tintado, do período nitrato, ainda não datado nem identificado, mas muito interessante. É ainda provável muitos dos registos da fase anterior à introdução do som terem origem na Invicta Filme da primeira fase, ou seja, no período em que a empresa de Nunes de Matos se dedicou fundamentalmente ao filme documental, antes de enveredar pelo filme de enredo nos estúdios da Prelada, no Porto, sob a orientação de realizadores e técnicos estrangeiros.

Por outro lado, como seria de esperar, a temática do Douro é recorrente nos jornais de actualidades cinematográficas ao longo de décadas e o mesmo sucede quanto ao filme de tipo documental pelo qual passaram, de resto, ao longo dos anos, muitos cineastas conhecidos como Artur Duarte, Leitão de Barros, Perdigão Queiroga, Fernando Garcia, Manuel Guimarães, João Mendes e alguns outros. De momento, não é ainda possível ter uma ideia de conjunto destes filmes e da sua relevância para o filme documentário, o qual se distingue do filme documental pela narrativa associada ao real imaginado. A ideia prevalecente vai, contudo, no sentido de admitir quer no caso das actualidades quer do documental, um pendor didáctico, eventualmente resvalando para um certo folclorismo que a partir de determinada altura contaminou o cinema português. Haverá certamente excepções antes e depois da reconquista da democracia cuja avaliação – por exemplo, o nome de Manuel Guimarães só por si sugere essa possibilidade –, na inexistência de uma história crítica do documentário português, continua, no entanto, por fazer. Para já, certo é, no período do cinema mudo, sobrar apenas uma única obra decisiva, naturalmente, Douro, Faina Fluvial.

Para melhor se compreender a génese deste filme impõe-se uma deriva de natureza contextual. Durante os anos 20, mesmo após a instauração da ditadura em 1926, quase toda a melhor produção internacional continuou a passar por Portugal. Inicialmente, portanto, e durante algum tempo, a ditadura não adoptou uma política cultural monolítica. Para essa abertura terá contribuído não só a postura de António Ferro, mas também o grupo de jovens a partir do qual se faria a renovação do cinema português, nomeadamente Leitão de Barros e António Lopes Ribeiro. Um e outro tinham estado na Alemanha e na União Soviética, cujas cinematografias eram consideradas por Fernando Pessoa como as únicas cujos filmes se aproximavam da ideia de arte. Sucede, por outro lado, que havia revistas cinematográficas e que no Porto e em Lisboa tinham aberto salas de grandes dimensões, nomeadamente o Teatro de S. João e o Tivoli. Em suma, existia uma atmosfera favorável e o próprio estado não se coibiu de fazer uma lei proteccionista, a famosa lei dos Cem Metros Nacionais publicada no Diário do Governo de 6 de Maio de 1927. Basicamente determinava-se que todo o espectáculo cinematográfico deveria incluir como complemento um filme português com o mínimo de 100 metros. Os resultados revelar-se-iam desastrosos devido aos maus orçamentos e piores argumentos, mas é provável que o Douro tenha sido objecto de algumas dessas produções.

Seja como for, quando Oliveira, então com 23 anos, fez Douro, Faina Fluvial, tinha conhecimento do melhor cinema internacional, nomeadamente, dos trabalhos mais experimentais associados às vanguardas artísticas dos anos 20. Manifestamente influenciado por Berlim, Sinfonia de uma Cidade de Walter Ruttmann e O Homem da Câmara de Filmar de Dziga Vertov, bem como pela montagem dos filmes de Eisenstein,Douro, Faina Fluvial foi o único filme português à altura dos melhores sinais da modernidade, mas com uma diferença. Ao contrário do que sucede com a maioria das sinfonias urbanas, centradas no ritmo, movimento e nas formas, presta uma atenção especial à paisagem humana. Sobre ele José Régio escreveu:

“A moderna poesia do ferro e do aço, o encanto da natureza através dos seus vários aspectos e ‘nuances’, a tonalidade das horas, a alegria e a miséria do homem sócio do animal na luta pelo pão de cada dia – tudo, ao longo de um dia de actividade na margem do Douro, nos é dado com verdadeira grandeza.”

Contudo, quando da sua primeira exibição, em 1931, no Salão Foz, em Lisboa, no decorrer do Congresso Internacional da Crítica, perante a surpresa dos congressistas vindos de fora, a maioria dos portugueses, como lembra Henrique Alves Costa, acompanhou a projecção “com constantes assobios e terminou com uma estrondosa pateada”. Valeram os elogios da crítica estrangeira e de alguns dos mais destacados intelectuais portugueses, entre os quais o citado Régio e Adolfo Casais Monteiro. O documentário só viria a ser reposto em sala em 1934, no Teatro de São João do Porto, como complemento do filme Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro, onde foi, então, prolongadamente aplaudido. Mas a pateada do Salão Foz, onde marcou presença uma maioria de indefectíveis da ditadura, não deixa de ser sintomática de um progressivo enclausuramento cultural. Basta lembrar que a selecta assistência considerou insultuoso dar a ver, para mais a estrangeiros, aquilo a que chamou um retrato da pobreza do país...

Pensando no Douro e em filmes marcados pela presença do rio, Oliveira destaca-se de todos os outros cineastas, mesmo de Paulo Rocha. Numa primeira fase, na verdade, uma fase com mais de 20 anos, fez Douro, Faina Fluvial, Aniki-Bóbó e O Pintor e a Cidade. Muito mais tarde, nos anos 90, no culminar da sua digressão por Camilo, – Amor de Perdição, Francisca e O Dia do Desespero – assinou uma das suas obras de maior fôlego,Vale Abraão, para a qual contou com a cumplicidade de Agustina Bessa Luís. Rodado na região duriense o filme mergulha em paixões recalcadas e num erotismo que ganham, no pano de fundo da paisagem e no contexto de um microcosmos social marcado pelo conservadorismo, uma ambiguidade perturbadora na linha de Esse Obscuro Objecto de Desejo de Buñuel. Ema, a protagonista, é uma espécie de Bovary enigmática, como enigmáticas são, de resto, as restantes personagens desse mundo onde tudo parece certo, quando, na verdade, tudo está a descompasso. Suprema ironia, numa terra cuja beleza natural suplanta a imaginação dos homens estes movem-se como que aturdidos da sua própria condição num registo de convenções e cortesias, afinal, artifícios dando corpo a subtextos que autorizam a desconstrução dos mitos conservadores sem, todavia, jamais se focalizarem na crítica retórica e opinativa.

De modo mais deliberadamente assumido, a paisagem representa igualmente um elemento preponderante na epopeia trágica de O Rio do Ouro de Paulo Rocha, cujas personagens habitam um espaço natural no qual a relação do homem com a natureza adquire uma dimensão mítica e um destino trágico. História de paixão e ciúme o filme tem como protagonista principal Zé do Ouro, cigano familiar dos segredos do rio e das histórias perdidas na bruma da memória das suas margens. É nesse domínio, ao som de velhas melodias tradicionais entoadas por cantadores cegos, que ganha corpo o vale de uma loucura progressiva no qual as paixões das personagens hão-de levar ao crime passional por entre o dourado do rio e o vermelho dos corpos. E na ficção não haverá muito mais para contar, embora Jaime, de António Pedro de Vasconcelos, mereça referência.

Há, finalmente, mais dois exemplos felizes tendo, de novo, Oliveira como protagonista. Um, é um curioso filme em co-autoria com Jean Rouch, de 1996, chamado En une poignée de mains amies, no qual os dois cineastas filmam as pontes do Porto. Outro, na viragem do século, é O Porto da Minha Infância, um legado do Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura 2001. Este filme, 70 anos depois de Douro, Faina Fluvial, retoma os caminhos do melhor documentarismo e é hoje uma obra de referência do imaginário cinematográfico da cidade e do seu património monumental. Também por aqui o Douro faz sentir a sua presença.

A terminar cumpre-me agradecer ao meu amigo José Manuel Costa, Vice-Presidente da Cinemateca Portuguesa e ao Rui Machado, Director do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, a disponibilidade e os esclarecimentos prestados para efeito da concretização deste texto. Dessa disponibilidade e desses esclarecimentos uma certeza me fica: sobre O Douro e o Cinema há ainda muito a fazer. E, já agora, um pouco à margem, permita-se-me acrescentar: é tempo de começar a pensar numa História Critica do Documentário Português


Porto, Novembro de 2009

Jorge Campos























“I like Gods, I understand them

3 declinações e outras tantas derivas em torno da cultura do poder e do poder da cultura seguidas do esboço de um quadro de referências sobre políticas culturais eventualmente reversível a favor de uma necessária ecologia política  

Por Jorge Campos


Lidar com o mundo também é trabalhar sobre as suas representações, sobre essa teia de sucessivas máscaras cujo reconhecimento autoriza a aproximação aos mecanismos que permitem operar a metamorfose do real em realidade. Deuses caprichosos como os da mitologia podiam usar e abusar dos seus poderes por forma a determinar o sentido do mundo e com ele o destino do homem sobre a Terra. Pois assim parecem ser as divindades de hoje armadas do poder de reproduzir à escala global um universo simbólico ajustado aos seus contraditórios desígnios e, por estupidez ou imprudência, capazes de desencadear forças incontroláveis. Sempre assim terá sido. Mas, quando a barbárie desvendou o horror do lado mais obscuro do rosto dos homens, houve sempre como que uma luz a prumo incidente sobre o outro lado desse mesmo rosto, a luz da cultura e da imaginação da qual se alimentam a coragem, a resistência e a cidadania. Disso direi então falando do poder - sem inocência, porque nestas coisas não há inocência - e de políticas culturais na convicção da necessidade de subverter modelos de intervenção que favorecem protagonismos sem espessura nem memória, perdidos no efémero de si mesmos, eventualmente no limiar do desastre. Este será um mosaico mais do domínio da efabulação e menos do domínio da ciência cuja certeza, de resto, também não é certa.

1. Esta história, na qual se falará de cultura e eventuais declinações dela, começa na Universidade de Salamanca no Dia da Raça em 12 de Outubro de 1936. O episódio é conhecido e recorrentemente evocado. Os protagonistas são José Millán-Astray e Miguel de Unamuno. O primeiro, fundador e comandante da Legião Estrangeira Espanhola, de quem se diz ter derrotado durante as sublevações filipinas dois mil rebeldes à frente de apenas 30 homens, façanha bastante para dele fazer um herói de guerra coberto de louvores e de medalhas, prenúncio do mito fascista em que a circunstância de ter perdido o braço esquerdo e o olho direito em combate em Marrocos o viria a transformar: el glorioso mutilado. O segundo, escritor e filósofo, autor de um célebre ensaio intitulado O Sentido Trágico da Vida, no qual procurou lidar com o conflito existencialista do homem perante a incerteza trazida pela presença da morte – afinal, tal como no Quixote, uma tentativa de conferir sentido moral à vida – que, sendo embora basco, trocou, a partir de determinada altura, o internacionalismo pelo nacionalismo, para logo após se insurgir contra o generalíssimo Franco e a sua ordem negra. Seja então este o ponto de partida para a nossa primeira declinação e correspondente deriva sobre a cultura do poder e o poder da cultura. 

Reza a História, que aqui terá revertido em lenda sem, todavia, deixar de ser História, que nesse Dia da Raça, expressão oblíqua e, porventura, suspeita, entendeu um tal professor Maldonado fazer um discurso incendiário no qual a Catalunha e o País Basco eram vistos como os cancros do corpo da nação que o feitiço do fascismo, palavras dele, Maldonado, haveria de extirpar para expor sem falso sentimentalismo a carne viva das gentes dessas terras. Alguém de entre a multidão rejubilou gritando Viva la muerte! ao que Millán-Astray de olho vendado e prótese de luva branca respondeu España!, dando início ao ritual falangista da saudação romana como se o braço levantado conferisse irrefutável evidência à razão da vozearia levantada.

Quando finalmente se fez o silêncio conveniente à solenidade da ocasião, como previsto, levantou-se para falar Miguel de Unamuno, Reitor da Universidade de Salamanca. O seu olhar terá, porventura, embaraçado o Bispo, por sinal um catalão, inquietado a turba inflamada de legionários e até, talvez, quem sabe, causado um imprevisto estremecimento  na sorridente Carmen Polo, La Señora, mulher de Franco, como sempre devota e enrolada num colar de pérolas.

Disse Unamuno:

Por vezes ficar em silêncio é mentir porque o silêncio pode ser interpretado por consentimento. O general Milllán-Astray é um inválido. Não há necessidade de o comentar em segredo. É um inválido de guerra. Tal como Cervantes. Mas, infelizmente, em Espanha há hoje demasiados inválidos. E, se Deus não nos ajudar, em breve haverá muitos mais. Atormenta-me pensar que o general Millán-Astray possa ditar normas de psicologia de massas. Um inválido, a quem falta a grandeza espiritual de Cervantes, espera encontrar alívio aumentando o número de inválidos à sua volta.”

Fora de si, Mlillán-Astray gritou:

Muera la inteligencia! Viva la muerte!

A vozearia, agora ameaçadora, só a custo foi em parte serenada pela intervenção de alguns sábios de togas esvoaçantes em sobressalto pela aparência das coisas que, pela sua natureza, deviam dar-se à aparência do respeito. Antes tivessem logo ali dado o acto por terminado porque Unamuno prosseguiu:  

Vencereis porque tendes a força bruta. Mas não convencereis. Para convencer é necessário persuadir e para persuadir é necessário ter algo que a si lhe falta: a razão e a justiça. É inútil  pedir-lhe que pense na Espanha.” 

Não sei se o relato é rigoroso. Segundo alguns, a enormidade sobre os bascos e catalães terá sido não do infeliz Maldonado mas do excêntrico general, algo, aliás, de todo compatível com os dados constantes da sua aterradora biografia. Seja como for, no plano simbólico, independentemente das questões de pormenor, o episódio não deixa de ser exemplar. Em Unamuno a cultura é insurgente, inseparável da prática da cidadania. Millán-Astray protagoniza a cultura de um poder cego e castrador, tal como aquele outro inválido, Joseph Goebbels, que um dia proclamou:

Quando ouço falar de cultura, puxo do revólver.”

Unamuno, para quem sabedoria e poética convergiam no mesmo propósito de amadurecimento existencial, iria morrer dois meses depois da peculiar celebração na Universidade de Salamanca. Ao cabo de mais de 40 anos a ensinar Filosofia afirmava, nessa altura, não estar certo sobre o que seria exactamente a cultura. O mesmo aplicar-se-ia ao ensino, paradoxalmente visto como um desígnio e uma ameaça. Olhando para os manuais escolares fica-se com a ideia, dizia ele, de que as crianças são vistas como uma espécie de cobaias dos psicólogos, podendo ser amestradas como os animais. E reportando à cultura e à função de ensinar, acrescentava:

Sócrates não era um professor, mas um vagabundo. Deambulava pelas ruas de Atenas falando com toda a gente. É isso a cultura.”

Ao longo do percurso da sua vida – durante o qual produziu uma obra reflectindo, no essencial, a ideia do primado da consciência moral do indivíduo como condição de uma humanidade responsável – Unamuno teve seguidores, críticos e detractores. Alguns, consoante as circunstâncias, foram tudo isso numa mesma pessoa, o que é razoável. Millán-Astray sempre teve ou serventuários fanáticos ou inimigos implacáveis. Certo, a determinada altura tornou-se incómodo até para os seus correligionários, mas na altura do episódio de Salamanca o seu elevado padrão de pensamento dando vivas à morte e proclamando a morte da inteligência já lhe tinha garantido o lugar de responsável falangista da Imprensa e da Propaganda. Asseguram testemunhos da época que impôs uma disciplina de caserna nos meios de comunicação e que bastava-lhe assobiar para ter à sua volta uma corte de jornalistas que tratava como aos seus legionários nas campanhas de África. No seu meio, este homem, sempre pronto a gabar-se dos actos de bravura e das proezas sexuais, era considerado imensamente culto, admirador de clássicos japoneses e indefectível da violência como forma de dirimir conflitos. A sua noção de cultura não seria certamente a de alguém deambulando pelas ruas falando livremente com toda a gente.



Guernica

2. A cultura, seja qual for dela o entendimento, resulta naturalmente do pensamento do homem e, assim sendo, pode ser encarada de múltiplos ângulos e suscitar diferentes interpretações. Em todo o caso, será sempre uma ideia. Numa das suas versões mais consensuais, de carácter antropológico, corresponde a um conjunto de práticas e acções sociais, as quais conferem identidade própria a um grupo humano e, nessa medida, remetem para uma espécie de cosmologia social. Aí cabem as manifestações artísticas, a língua, as crenças e os mitos, a religião, usos e costumes, instituições, a organização social, enfim, tudo quanto nas sociedades humanas possa dizer respeito à sua composição, estrutura e evolução. Assim sendo, é inevitável inferir que as práticas e acções sociais não são exclusivamente conformadoras. Sendo dinâmicas, são também agentes da mudança, eventualmente em conflito com a ordem estabelecida, o que nos conduz a uma segunda declinação e a uma outra deriva sobre a cultura do poder e o poder da cultura.

Sócrates, para além de se recusar a receber dinheiro dos seus discípulos ousara questionar a ordem dos deuses, o que punha em causa a ordem da cidade. Os deuses gregos eram tolerantes, mas a justiça foi cega e Sócrates, entendendo dever respeitar as leis de Atenas, em consciência, bebeu a sicuta, ele e os seus discípulos. O sacrifício, sendo um gesto de protesto, tal como o do monge vietnamita ou do estudante checo que se imolaram pelo fogo, num caso para denunciar a brutalidade da guerra levada a cabo pelos Estados Unidos no Vietname, no outro em sinal de repúdio pela entrada dos tanques do Pacto de Varsóvia em Praga, foi um acto de cidadania. Ou seja, a cultura tem um lado insurgente e todo o acto de cidadania – como todo o acto político – tem ressonância cultural. 

Em O Desprezo (1963), filme de Jean-Luc Godard baseado no romance homónimo de Alberto Morávia, que trata da mercantilização das relações humanas e do valor de uso atribuído aos bens culturais, é isso mesmo o que está em causa. Por forma a problematizar o sentido da arte e da vida Godard imagina o cineasta Fritz Lang a realizar uma adaptação de A Odisseia de Homero para um produtor americano deslumbrado com o cinemascope e que acha que o filme deve ter tudo quanto ele possa pagar. Explorando uma variedade de subtextos consequente de hipóteses semânticas e narrativas contidas no universo dos deuses gregos e das suas mitologias, O Desprezo acaba por reverter num argumento favorável à liberdade de criação questionando o exclusivo do mercado para decidir sobre a legitimidade das politicas da produção cinematográfica.

Para tanto, Godard serve-se de alguns artifícios a começar pela escolha dos actores: Brigitte Bardot, provavelmente o maior símbolo sexual do cinema dos anos 60; Michel Piccoli, um dos actores fétiche da nouvelle vague; Fritz Lang, figura de culto dos cineastas, mestre dos estúdios de Weimar e, mais tarde, realizador problemático na indústria de Hollywood; e Jack Palance, vilão cínico das fitas de série B americanas. Todos eles correspondem a uma determinada iconografia do cinema, território propício à criação de mitos. Daí o primeiro artifício de Godard: Bardot, ainda que represente Camille, nunca deixa de ser Bardot; Piccoli, sendo Paul Laval, é, na verdade, Piccoli; Fritz Lang faz de Fritz Lang ainda que, como se verá, possa não ser exactamente Fritz Lang; Jack Palance chamar-se-á Proshock, mas será sempre igual à imagem que o público tem de Jack Palance. Ao proceder deste modo Godard joga com as expectativas ou pré-disposições de um público à partida, pelo menos, com um mínimo de informação sobre as múltiplas faces do cinema, as quais, no filme, aparecem metaforicamente identificadas com os rostos dos protagonistas.

O segundo artifício de Godard é corolário do primeiro: se na Odisseia de Homero prevalece uma certa ideia da viagem de Ulisses, herói de Tróia, e de todos os perigos que ela encerra porque os deuses que comandam o destino dos homens são dados a caprichos e não se entendem, em O Desprezo o sentido da viagem consiste em explorar dialecticamente a deterioração e degradação das relações humanas no contexto de uma ordem de produção simbólica baseada no poder do dinheiro o que, eventualmente, conduz à prostituição.

Vejamos. Prokosh, o produtor americano, assiste à projecção de alguns rushes de A Odisseia na companhia de Fritz Lang, de uma pragmática colaboradora para todo o serviço e do dramaturgo Paul Laval chamado para alterar o argumento que não agrada ao produtor. No ecrã vêem-se imagens de estátuas das divindades gregas recortadas contra o azul intenso de um céu sem mácula. Prokosh reclama mais acção e só manifesta agrado quando surge uma mulher nua, aliás, uma sereia, a nadar em águas transparentes. Tudo o mais lhe parece inadequado, apesar do cinemascope deslumbrante que Lang, de resto, desvaloriza, procurando, antes, defender o direito ao ponto de vista do cineasta, para o caso a luta do homem contra circunstâncias adversas, ou seja, Ulisses desafiando os deuses com o apoio de Minerva e a oposição de Poseídon.


Prokosh e a alegoria de JLG

Quando Lang sugere que os deuses são uma criação do homem e não o contrário Prokosh, dando sinais de uma irritação crescente, sobe ao palco e assumindo a posição do discóbolo lança violentamente a lata de um rolo de filme fazendo-a voar sobre a cabeça dos presente. Diz:

Quando ouço falar de cultura puxo do livro de cheques.”

Apoiado nas costas da colaboradora servil assina um cheque que é entregue a Laval com uma pergunta exigindo resposta imediata: “Aceita ou não reescrever o argumento?” Que quer isto dizer? Pois bem, se o cinema for encarado como um desafio cultural, transportando consigo marcas no sentido de problematizar a vida, então é legítimo puxar do livro de cheques para impor a funcionalidade sedativa do entertainment que dá colorido à evasão. Laval dobra o cheque, guarda-o no bolso do casaco e sai da sala acompanhado das palavras sibilinas de Prokosh:

I like Gods, I understand them.”

Se necessário, portanto, Prokosh corrompe. Godard opera assim, no plano simbólico, a metamorfose em função da qual o produtor toma o lugar de Poseídon, o deus caprichoso, e ele próprio, Godard, através do seu alter ego Fritz Lang, é levado a identificar-se com Ulisses, o viajante que ousara desafiar os deuses. Mas, não será esse, justamente, o papel dos criadores, retirar aos deuses o exclusivo da criação?

Dito isto, esclareça-se: o entertainment não é necessariamente negativo, eticamente reprovável ou artisticamente irrelevante. Numa conversa entre Fritz Lang e Jean-Luc Godard gravada para a televisão francesa algum tempo após a estreia de O Desprezo o cineasta alemão, recordando a sua passagem por Hollywood, dizia nada ter contra a filosofia da indústria cinematográfica americana. O problema, segundo ele, é que todos os filmes produzidos nesse contexto se assemelhavam e, por isso, depois de ver, por exemplo, Cleópatra, não sentia grande curiosidade em voltar a ver filmes semelhantes – estávamos nos anos 60 e só na década seguinte, na América, haveria um movimento com Bogdanovich, Cassavetes, Scorcese e Coppola, entre outros, a reclamar o primado do director. De qualquer modo, o entretenimento – utilizo agora, propositadamente, a palavra portuguesa cujo sentido é mais lato – também faz parte da cultura sendo, como tal, tão legítimo quanto as manifestações artísticas mais eruditas.

O que poderá ser inquietante, numa visão actualizada do que Prokosh representa, é a aceitação da legitimidade do entretenimento como forma cultural dominante e preferencialmente exclusiva em nome de uma pós-modernidade caracterizada pela fragmentação do espaço e do tempo e de uma exacerbação do individualismo e do consumismo que exige tudo fazer reverter em espectáculo porque tudo é mercadoria e a mercadoria deve vender. A ser assim, há, evidentemente, uma pedagogia do consumo de tal forma hegemónica que caberá perguntar se ainda sobra lugar, e onde, para algum tipo de pedagogia da cidadania?

3. Esta pós-modernidade, para alguns equivalente à lógica cultural do capitalismo tardio, para outros expressão das tendências e políticas neo-conservadoras, encontra na televisão talvez a sua expressão mais acabada. Na televisão, com efeito, o entretenimento alinhado pelo menor denominador cultural comum parece ter tomado conta de tudo. Haverá certamente excepções, mas a verdade é que a pedagogia do consumo associada à sociedade do espectáculo ocupa a esmagadora maioria da programação, mesmo na televisão dita de serviço público. Nem o telejornal e outros espaços noticiosos escapam a essa tendência dominante. Danny Schechter – o autor do documentário Weapons of mass deception, filme sobre a opção pela propaganda da televisão americana durante os primeiros tempos da guerra do Iraque –  escreveu a esse propósito um livro com um título revelador: 

The more you see, the less you know”  

E assim chegamos à nossa terceira e última declinação e uma nova deriva. Em primeiro lugar importa reter que esta perversão do sistema democrático, aliás, sempre justificada em nome da liberdade de informação, tem antecedentes. A partir dos anos 80, a transformação da paleo-televisão, com o seu contrato de comunicação espelhado na delimitação dos géneros e numa divisão específica dos públicos, em neo-televisão com a sua perspectiva participativa e de segmentação, entre outras múltiplas consequências, alterou radicalmente o modo de fazer os telejornais. A televisão passou a operar com base essencialmente em três pressupostos: a pretexto daquilo que seria a sua natureza, teria de apelar fundamentalmente à emoção; o seu enfoque centrou-se mais na esfera privada – o termo gossip utilizado por alguns analistas é esclarecedor – do que na esfera pública e daí a fulanização da vida politica; a sua missão inclinou-se a favor da frivolidade com prejuízo do esclarecimento plural  para efeito de formar opinião ou tomar decisões.

Perante estes pressupostos, dos quais releva como corolário, segundo os programadores, uma maior eficácia na competição pelas audiências, o dispositivo semiótico do telejornal concentrou-se na criação de uma atmosfera de entropia, na qual os protagonistas se multiplicam em desempenhos e se opera a metamorfose do espaço do estúdio em metáfora do mundo. Superfícies arrojadas, cores quentes, silhuetas humanas activas em sucessivas escalas da profundidade de campo, múltiplos ecrãs supostamente ligados às várias partidas do mundo e a figura totémica do apresentador sobre quem o plano médio faz incidir todas as atenções e de quem se espera venha introduzir alguma ordem discursiva e narrativa no caos do mundo. As reportagens, por via de regra, são previsíveis: texto off, entrevista, repórter em campo. Em muitos casos, a mediação jornalística é minimal obedecendo à perspectiva do go between, embora o jornalista mensageiro possa alcançar notoriedade e tornar-se numa espécie de oráculo falando sobre tudo e todos como em tempos ironicamente demonstrou Alain Woodrow. Dada a sua notoriedade, pode até substituir-se à notícia. Concebida para ser exibida num contexto de ruído, tendo de conviver com informações variadas que passam ininterruptamente em rodapé, ocupando um espaço saturado de signos, a reportagem tende, enfim, a tratar os assuntos como faits divers, sem preocupações de ordem sintáctica ou sintagmática no plano da imagem e quanto á ética, bom, como afirma Hartley a necessidade de alcançar o máximo de audiência obriga o jornalismo a servir dois donos, “info’ and ‘tainment.”

Neste contexto, os géneros jornalísticos passaram a adoptar procedimentos de formatos não jornalísticos, podendo, por vezes, culminar pura e simplesmente na invenção de notícias como Robert Greenwald fez prova no seu documentário Outfoxed ao desmontar as múltiplas máscaras da Fox News de Rupert Murdoch – por cá também não faltariam exemplos edificantes, mas evitemos o melindre. A Fox News, cuja maior estrela dá pelo nome de Bill O’Reilly, nos meses subsequentes à invasão do Iraque, apesar dos milhares de mortos e dos atentados diários, procurou fazer passar a imagem de um País em vias de reconciliação consigo mesmo e cheio de gente feliz. Quanto a O’Reilly trata-se de um entertainer peculiar. Nas suas entrevistas supostamente jornalísticas não tem qualquer problema em julgar publicamente os seus convidados, insultá-los, mandá-los calar e até chamar os serviços de segurança para os pôr fora do estúdio como fez com o filho de uma das vítimas do ataque terrorista às torres gémeas em 11 de Setembro.

A história conta-se em meia dúzia de linhas. Por qualquer razão o apresentador soube da participação de Jeremy Glick, assim se chamava o jovem, em manifestações contra a guerra. Entre outras coisas, exaltado e de dedo em riste, perguntou-lhe se não sentia vergonha, tendo perdido o pai naquelas circunstâncias, de se manifestar contra o presidente Bush. Como Glick argumentasse que era justamente por ser um patriota que entendia ser necessário denunciar a politica da administração americana, considerando-a até co-responsável pela morte do pai, O’Reilly deu ordem para o retirarem do estúdio. Onze meses volvidos a estrela televisiva da Fox News ainda falava do assunto. O caso foi comentado por todo o tipo de especialistas, a favor e contra, mais contra, diga-se, mas depois de ter sido considerado mentiroso compulsivo, paranóico, a nódoa do jornalismo e outras coisas mais O’Reilly viu, naturalmente, digo eu, dadas as circunstâncias, a sua popularidade aumentar. Como reagiram a este episódio, bem como à cobertura da Fox News da guerra do Iraque, as principais estações americanas de televisão? Pois, sentindo as suas audiências ameaçadas, com maiores ou menores cuidados, trataram de proceder mimeticamente.  Até a insuspeita CNN passou a ter, durante algum tempo, uma emissão diferente para os Estados Unidos, mais “patriótica”, e outra para o exterior, mais “liberal”.

Felizmente, há uma tradição recorrente na democracia americana de escrutínio da coisa pública a qual, uma vez mais, permitiu abrir um debate sobre a qualidade da programação televisiva, tal como acontecera pela primeira vez de uma forma consistente ainda no tempo da “caça às bruxas” do senador Joseph McCarthy, tema reciclado por George Clooney em Good Night and Good Luck com o intuito de, invocando o exemplo do mítico jornalista da CBS Edward R. Murrow, chamar a atenção para o estado actual do jornalismo televisivo americano.



Good Night and Good Luck: um caso exemplar da cultura do poder e do poder da cultura

Este descrédito em relação ao telejornalismo bem poderá ser, por outro lado, uma das explicações para uma produção de documentários sem paralelo, uma vez que neles se encontrarem respostas, obviamente obedecendo a diferentes pontos de vista, para questões em relação às quais os espaços informativos convencionais ou nem sequer encontram lugar ou se revelam simplesmente improcedentes

Quanto a mim, tenho-o dito reiteradamente, a melhor explicação sobre a lógica da programação televisiva – comercial, generalista e, cada vez mais, também da televisão pública – foi há muito formulada num encontro de publicitários em Cannes por Sílvio Berlusconi:

A televisão não tem de fazer programas para o público. A sua função é vender público aos anunciantes.”

4. Em função do conjunto de declinações e de derivas proposto – dizem, afinal, respeito ao nosso mundo, foram estas, poderiam ter sido outras – não será excessivo inferir que a cultura, seja qual for o ângulo de observação, está vinculada à cidadania e, como tal, é indissociável da ideia de democratização social. Por outro lado, mesmo não sendo isso imediatamente perceptível, os episódios elencados prendem-se igualmente com a imaginação criadora ou a falta dela. Mal iria o mundo se os seus protagonistas deixassem de ser capazes de o imaginar diferente e se o pêndulo da mudança se inclinasse irremediavelmente para o lado das fantasmagorias de Millán-Astray, dos desvarios de Prokosh ou do estertor patético das vedetas da televisão. 

Feito o comentário, que é subjectivo e opinativo, estas notas ficariam incompletas sem uma brevíssima tentativa mais formal, digamos assim, de balizar a questão das políticas da cultura, embora reiterando, sem ambiguidade, o pressuposto segundo o qual as práticas culturais produzem efeitos políticos, do mesmo modo que os actos políticos têm ressonância cultural. Evitando cair num registo meramente académico, tomarei como referência textos de Diane Crane, de mim próprio e sobretudo de José Madureira Pinto.    

Em primeiro lugar, parece-me razoável ponderar a elaboração de uma tipologia da cultura e elaborar sumariamente uma grelha de classificação das práticas culturais. Seguidamente, procurarei fazer uma combinação de ambas por forma a que dela possa resultar a possibilidade de identificação de princípios cujo valor instrumental seja aplicável a hipóteses de políticas culturais.

Comecemos então pela questão da tipologia. De entre as diversas tentativas de arrumação uma das mais pragmáticas será a de Diane Crane. Contrapõe ela à dicotomia cultura popular/ cultura de elite ou alta cultura três tipos de organização cultural, abreviadamente, a saber: um núcleo de cultura global (core domain), disseminado pela comunicação em larga escala, nomeadamente pela televisão, e ao qual estão expostos todos os cidadãos; a um nível intermédio situa-se uma cultura de base nacional (peripheral domain), cujos destinatários podem ser diferenciados de acordo com diversos critérios, entre os quais, por exemplo, a idade, o género e o estilo de vida; a um terceiro nível encontra-se um núcleo de cultura urbana, muito presente e com características muito próprias, para públicos locais específicos (urban culture). Perante este quadro, Crane sustenta que a principal característica das dinâmicas culturais contemporâneas é a existência de uma tensão entre, por um lado, a tendência dos core media para dominarem todo o sistema de comunicação e cultura e, por outro, a constante proliferação de organizações culturais novas nos domínios periférico e local.

Sendo este um ponto de partida, cuja pertinência é evidente para efeito da classificação das práticas culturais, importa fazer seguidamente o levantamento de duas questões: uma respeita aos modos de relação com os bens culturais; outra contempla o reconhecimento dos espaços sociais de afirmação cultural com diferentes graus de institucionalização e, como tal, com níveis desiguais de legitimidade. No primeiro caso, avalia-se a maior ou menor interacção do indivíduo com os bens culturais. Essa interacção pode variar entre um máximo de participação – nomeadamente, com reflexos no saber fazer e no saber reconhecer, bem como naquilo a que Barthes chamou o prazer do texto – e uma relação mais ou menos passiva com os bens simbólicos em circulação. No segundo caso, os espaços de afirmação cultural são muito diversificados posto que passam pelo espaço doméstico, pelo espaço colectivo, no qual tem lugar um conjunto de práticas culturais que se confundem com as vivências, rotinas e solicitações do quotidiano, pelo espaço das sub–culturas emergentes e das indústrias culturais e, naturalmente, pelo espaço da cultura erudita ou alta cultura.

O passo seguinte respeita ao cruzamento do modo de relação com os bens culturais e o grau de institucionalização dos espaços culturais operação essa que, não sendo de ciência certa, permite, ainda assim, identificar questões em função das quais é possível pensar estrategicamente a democratização da cultura. Dada a diversidade e conflitualidade das variáveis em jogo seria um erro adoptar uma linha de prescrições fechadas sobre si próprias, eventualmente constrangedora da iniciativa dos principais protagonistas, os cidadãos. Só a flexibilidade e abertura dos enunciados possibilita, com efeito, a participação plena tantas vezes associada à descoberta de percursos criativos insuspeitados.

Concluída esta base preliminar, na qual se agrupam as variáveis nucleares de qualquer política cultural, resta apontar os seus três princípios basilares, todos eles compaginados por critérios que relevam, essencialmente, do bom senso democrático.

O primeiro princípio remete para a indispensabilidade de criar e salvaguardar infra-estruturas básicas, os espaços naturais onde possam desenvolver-se todas as formas de produção e criação artística, sejam elas quais forem: das mais eruditas e esteticamente mais exigentes até às expressões mais ou menos espontâneas de competências simbólicas e comunicacionais, como sugere Madureira Pinto, passando por intervenções de grau intermédio com diferentes níveis de elaboração. Para efeito da optimização dos recursos, parece vantajoso, neste caso, optar por um sistema em rede com conexões seja no plano dos saberes, infra-estruturas e equipamentos, seja no plano institucional articulando, por exemplo, o poder local e as associações culturais, seja, ainda, promovendo o envolvimento das políticas da cultura e do ensino numa base de complementaridade e de abertura à comunidade. Este princípio será tanto mais estimulante quanto melhor souber dar acolhimento a dinâmicas descentralizadoras por forma a permitir a afirmação das vocações criativas dos diversos parceiros num contexto de progressiva autonomia. 

O segundo princípio consagra a necessidade da não exclusão de determinados segmentos populacionais, sobretudo as camadas populares, do contacto com obras mais exigentes a pretexto de uma alegada incapacidade de descodificação e, portanto, de fruição. A observância deste princípio requer uma atitude iconoclasta porque passa pela dessacralização de uma produção simbólica cujo estatuto, as mais das vezes, sendo legitimado por mediações especializadas, resulta de um processo objectivo de fetichização concorrendo, nessa medida, para o aparecimento de círculos fechados sobre si próprios e, portanto, sem potencial de democratização. Complementarmente, uma vez que os produtos das indústrias culturais, acessíveis quer no espaço doméstico, nomeadamente através dos meios audiovisuais, quer no espaço público destinado ao lazer consumista, desempenham um papel de substituição e até de compensação a essa cultura erudita que intimida, justificar-se-ia uma profanação controlada, mas deliberada, dos lugares institucionais da criação de modo a gerar empatia onde antes havia recusa e rejeição. Numerosas experiências testemunham o êxito do envolvimento de pessoas habitualmente proscritas da esfera da criação artística em iniciativas onde acabam por ter uma intervenção autónoma e auto-enriquecedora com efeitos no processo de democratização cultural. O Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura foi exemplar nessa matéria.

Quanto ao terceiro princípio, limito-me a citar Madureira Pinto:

“Procurar, através do apoio ao associativismo e da multiplicação de estudos culturais mobilizadores de energias comunicacionais e da participação dos cidadãos, que o tempo de não-trabalho e as actividades de lazer contribuam, no seu conjunto, não só para contrariar as tendências da evasão e demissão cívicas (associadas, nas sociedades contemporâneas, à encenação mediática da política e à individualização/ privatização das práticas sociais), como ainda para permitir a sobrevivência e/ ou afirmação das culturas dominadas (populares ou marginalizadas) e emergentes”.

Como resultará claro, ainda que sumariamente desenvolvido, este modelo de actuação, dada a sua flexibilidade, permite uma série operativa de combinações e recombinações das diferentes variáveis contrariando preconceitos e subvertendo barreiras artificiais com reflexos no quotidiano e na qualidade de vida dos cidadãos, Tratando-se de um modelo aberto promove a participação e, nessa medida, exige o escrutínio porque a necessidade de ser permanentemente avaliado é condição mesma da sua vitalidade. Também deve ficar claro, apesar da simplicidade aparente, que não se fazem projectos deste tipo sem vontade politica, sem massa critica qualificada e muito menos com políticos incultos.


Alegoria para os tempos que correm: Sócrates, os discípulos e a morte pelo veneno

Agustina Bessa Luís tem um aforismo magnífico a fazer lembrar Sócrates, o filósofo:

Pensar é o acto mais violento que há.”

Perante os sinais de desagregação de um sistema económico-social provavelmente em vias de deixar de fazer sentido tal como o conhecemos pensar será, com toda a certeza, um acto violento, mas indubitavelmente necessário. Pensar é um acto de cultura. Cultura é cidadania. Cidadania é democracia. Por isso, quando o entretenimento subsidiado e adjudicado ao mercado da evasão se afirma por vontade politica como exclusivo das práticas culturais bom será que apareça alguém a dizer:

Quando ouço alguém falar da legitimidade do exclusivo do mercado do  entretenimento como referência da produção simbólica tenho a obrigação de puxar do livro de cheques para investir em cultura.” 

Nota Final

Este texto, redigido sem preocupações de rigor estritamente académico de modo a permitir maior largueza ao voo da imaginação, recolhe contribuições muito diversificadas que passam tanto por informação disponível na internet - Wikipedia, Enciclopédia Britânica, diversos sites de cinema com destaque para Senses of Cinema - quanto por algumas obras de referência das quais destacaria Madureira Pinto (Uma Reflexão sobre Políticas Culturais - in Dinâmicas Sociais, Cidadania e Desenvolvimento, Actas do Encontro de Vila do Conde, Associação Portuguesa de Sociologia,) e Diane  Crane (The Production of Culture - Media and the urban arts, Sage, Newbury Park, London, 1992). Importantes foram igualmente os numerosos documentários americanos e canadianos que nos últimos anos têm feito uma critica radical do sistema de media que opera quer nos Estados Unidos, quer à escala global. A título de mero exemplo cito Manufacturing Consent: Noam Chomsky and the media de Marc Achbar e Peter Wintonick, Outfoxed: Rupert Murdoch’s war on journalism de Robert Greenwald e Weapons of Mass Deception de Danny Schechter.





texto organizado para o Consello da Cultura Galega
Galicia, España, Portugal e as Factorías de Futuro
5 e e 6 de xuño de 1997
Santiago de Compostela

   Conferência em Santiago de Compostela
6.06.97

O serviço público de Televisão EM TEMPO DE MUDANÇA:
reflexões sobre o caso Português

por Jorge Campos


As estatísticas não nos favorecem. Somos o País da Europa com uma das mais elevadas taxas de analfabetismo. 12 por cento dos portugueses não sabem ler nem escrever. Em termos de analfabetismo funcional essa percentagem sobe para 26 por cento. A iliteracia atinge metade da população. Lemos poucos jornais e, nesse aspecto, estamos na cauda da Europa. Diariamente, por cada mil habitantes há uns cinquenta jornais lidos. Na Noruega, por exemplo, os mesmos mil habitantes fazem a leitura, todos os dias, de mais de setecentos jornais. 70 por cento da população não abre um livro. Contudo, tendo os índices de leitura que tem e as taxas de analfabetismo conhecidas, Portugal, um país com dez milhões de habitantes, dispõe de três quotidianos desportivos- já foram quatro- os quais apresentam, de um modo geral, tiragens muito superiores às da maioria dos outros diários. Em nome do rigor, deve acrescentar-se que os jornais desportivos tratam quase exclusivamente de futebol. Também podemos dizer que os portugueses vão pouco ao cinema, apesar de uma tímida evolução verificada nos últimos anos, sobretudo nas grandes metrópoles de Lisboa e do Porto. O cinema visto é, no entanto, na sua esmagadora maioria, cinema americano distribuído por uma única empresa,  a Lusomundo, proprietária de uma imensa maioria das salas de projecção do País e, também, um potentado multimédia ao qual apenas falta uma estação de televisão. Sabe-se, igualmente, que os portugueses, excepção feita a uma reduzidíssima franja urbana, não frequentam o teatro. E sabe-se, finalmente, que os cidadãos do meu país detém, ao menos, um recorde europeu: estão, em média, bem mais de quatro horas por dia diante da televisão.
Os indicadores apresentados constituem parte da argumentação oficial justificativa da existência de um serviço público de televisão em Portugal, ao qual competiria, fundamentalmente, promover uma pedagogia da cidadania por oposição à pedagogia dos consumos protagonizada pela televisão comercial.
Mas, há outras razões a favor do serviço público que a Radiotelevisão Portuguesa - RTP - presta ou devia prestar. Por exemplo, o facto de no planeta haver 200 milhões de falantes da língua portuguesa, entre os quais muitos emigrantes espalhados pelos quatro cantos do mundo, justifica um serviço internacional como a RTPi. As relações com as antigas colónias africanas exigem uma RTP África. As autonomias da periferia dos Açores e da Madeira impõem canais regionais. São as chamadas razões de Estado, certamente polémicas, eventualmente contraditórias, mas de um modo geral suficientemente consensuais, pelos menos em termos das grandes linhas de orientação.
Pela minha parte, subscrevo uma parte significativa do discurso oficial sobre estas matérias. Comungo das preocupações expressas sobre a importância da televisão num país como Portugal. Preconizo um investimento sério numa televisão para os cidadãos. Contudo, assumindo-me como defensor do serviço público, não devo omitir o facto de encarar com cepticismo o futuro quer da RTP, quer do audiovisual português no seu conjunto. Não entendo, por outro lado, as razões pelas quais os operadores privados não hão-de, também eles, ser obrigados à prestação de serviço público. Por qualquer razão, fica-se sempre com a ideia que esse serviço é exclusivamente da responsabilidade do estado, podendo os privados proceder como muito bem entenderem quando, afinal, eles são concessionários e, como tal, estão obrigados a observar as contrapartidas do contrato de concessão estabelecido no quadro do pressuposto da existência de uma política definida para o audiovisual.
Mas, vejamos um pouco da história da Televisão portuguesa, pois em função dela explicam-se muitos dos impasses, incapacidades e perplexidades do momento.

1. O PECADO ORIGINAL DA TELEVISÃO PORTUGUESA

A televisão em Portugal teve as suas primeiras emissões, ainda de carácter experimental, em 1956. As emissões com carácter regular principiaram no ano seguinte. Foi a televisão de Salazar e Caetano, este último, de resto, o grande ideólogo e impulsionador da RTP nos seus primeiros tempos. Hoje, já se pode ter uma ideia clara sobre esse período não apenas em função daquilo que se conhece através dos testemunhos dos mais antigos, mas também devido a um interesse crescente da comunidade científica cuja pesquisa tem permitido revelar  de modo iniludível a lógica estruturante dos dispositivos tecno-discursivos dessa televisão. Tratava-se, evidentemente, de um meio de propaganda do regime, pago por ele e sustentado por uma corte de funcionários de confiança política. Os episódios reveladores desta estratégia multiplicam-se. Dessa época, são especialmente interessantes os editoriais de abertura dos telejornais. A título meramente ilustrativo, e de acordo com o professor Rui Cádima, a reunião de líderes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas de 30 de Agosto de 1966, em Brazzaville, foi descrita como uma reunião de criminosos. O editorialista, que habitualmente aparecia diante da câmara, concluia enfáticamente: “Pobre África onde o canibalismo voltou a ser oficializado e a lei da selva está institucionalizada.”
Importa relevar, em função do que agora nos ocupa, esse pecado original do meio televisivo português, o qual, à semelhança do que aconteceu na maioria dos países europeus, nasceu do poder político para o servir transformando-se, com o decorrer do tempo, numa espécie de aparelho ideológico do estado. Em Portugal, como, aliás, também, em Espanha, essa fase inicial ocorreu em ditadura - dizem-me que na Espanha a televisão nasceu no dia de Cristo Rei e que as emissões tiveram início no aniversário da criação da Falange - o que, obviamente, só pode ter tido um efeito estruturante perverso.

2. TRANSIÇÃO E ESTABILIZAÇÃO

O poder revolucionário saído da Revolução de 25 de Abril de 1974 sobrevalorizou, do meu ponto de vista ingénuamente, o papel da televisão como elemento de regulação social orientada. A par das boas intenções, de um compreensível movimento de incontida alegria com expressão no ecrã, nomeadamente nas vertentes educativa e cultural, o facto é que um pedagogismo retórico, por vezes estridente, frequentemente contraditório, acabou por contribuir para acelerações de mudança incompatíveis com hábitos culturais longamente interiorizados. Produziu-se um efeito de boomerang, uma disfunção em última instância resultante do entendimento meramente mecanicista e instrumental do papel da televisão. No plano da teoria da comunicação, dir-se-ia que, agora como no passado, as concepções subjacentes a ambos os procedimentos radicavam na crença da omnipotência dos media, ou seja,  na convicção da eficácia dos mecanismos de causalidade indutores dos efeitos ideológicos pretendidos. Se a isto acrecentarmos o facto do poder revolucionário ser ele próprio profundamente heterogéneo e de cada facção ou partido, explícita ou veladamente, reclamar para si a tutela da televisão, ter-se-á uma ideia da confusão instalada.
O advento dos governos constitucionais, se estabilizou os critérios editoriais definidos de acordo com os poderes eleitos, nem por isso abalou a precaridade das concepções teóricas dominantes e, muito menos, pôs em causa o crónico controle político da RTP. A cada novo governo correspondeu a nomeação de um novo Conselho de Administração, o qual designava novos directores. Prioridade, portanto, para os critérios da confiança política e para a necessidade de satisfazer as clientelas partidárias. Tornou-se rotina os partidos da oposição insurgirem-se contra a instrumentalização da televisão estatal. Uma vez chegados ao poder, tratavam de adoptar comportamentos idênticos aos anteriormente criticados. E assim tem sido.
Estou seguro que situações deste tipo não são exclusivas de Portugal e, por isso, seria fastidioso alongarmo-nos sobre esta matéria. Gostaria, no entanto, de deixar uma nota final sobre as consequências destes procedimentos e que se resume em duas palavras. A tutela partidária, ao longo dos anos, gera uma burocracia de funcionários cuja responsabilidade política secundariza a responsabilidade de fazer boa televisão. Assim sendo, a chamada cultura da empresa vai integrando uma complexa rede de compromissos, subordinações e dependências cujo registo se inscreve prioritáriamente não na instância do saber fazer e nos critérios de profissionalidade, mas na instância partidária ou inter-partidária. Por vezes, até em lobbies diferentes dentro de um mesmo partido. Consequências: desde logo, o sobredimensionamento e a consequente inviabilização da agilidade exigida às estações de televisão modernas; depois, o inevitável aparecimento de fenómenos perversos de acomodação pessoal e de distorção dos objectivos profissionais; finalmente, um sério e, porventura, decisivo entrave estrutural e conceptual à recuperação da ideia de serviço público.

3. A TELEVISÃO PRIVADA

No início dos anos 90 a questão da televisão privada foi resolvida. Durante largo tempo alimentara-se a polémica televisão pública - sinónimo de manipulação partidária - televisão privada - sinónimo de independência, certamente uma visão redutora e maniqueísta, mas que se foi impondo ao longo dos anos 80 em consonância com as teses neo-liberais e economicistas prevalecentes. Em Julho de 1990 a Assembleia da República aprovou a lei sobre o regime da actividade de televisão. Depois de um processo controverso e largamente influenciado por pressões políticas, o governo da altura atribuiu um canal a Pinto Balsemão, proprietário do semanário Expresso, e outro à Igreja Católica cujo projecto, no início, apontava no sentido da informação e divulgação dos valores do humanismo cristão.
A SIC optou por um modelo generalista e relacional semelhante ao do canal 1 da RTP. A TVI, até em função da sua tutela, destinou cinco por cento do tempo de emissão aos assuntos religiosos apostando, em tudo o mais, no grande público no sentido utilizado por Dominique Wolton na sua teoria crítica da televisão, ou seja, não um público popular, nem um público de élite, nem tão pouco um público médio, mas uma espécie de mistura dos três. A SIC principiou as suas emissões em Outubro de 1992 e a TVI em Fevereiro do ano seguinte. Contas feitas ao mercado publicitário admitia-se, na altura, a possibilidade de angariar para os quatro canais - os dois públicos e os dois privados - qualquer coisa como uns 42 milhões de contos. Isto segundo as expectativas mais optimistas e tendo já em linha de conta o desvio de verbas destinadas a outros meios, o que efectivamente veio a verificar-se. Aconteceu o óbvio. O bolo publicitário revelou-se insuficiente para fazer face aos custos de exploração situados entre os 55 e os 60 milhões de contos. No fundo, teria sido apenas uma questão de terem sido feitas contas.
O impacto do aparecimento dos operadores privados, sobretudo da SIC, foi devastador para a televisão do Estado. Hoje a SIC ocupa habitualmente os 10 primeiros lugares nas tabelas de audiências, com todas as reservas que elas possam oferecer e, na realidade, oferecem. Num primeiro tempo, o canal de Balsemão ganhou a batalha da Informação, com um estilo mais agressivo, mais abrangente e, sobretudo, gramaticalmente mais correcto, contrastando com o estilo pesado, oficioso e gramaticalmente mal cuidado do primeiro canal do estado. Numa fase posterior, com uma programação muitas vezes a rondar os baixios do impensável, não só varreu a RTP do mapa dos programas mais vistos, como impôs um estilo subservientemente copiado pela estação supostamente de serviço público. A partir do momento em que isso aconteceu não foi possível disfarçar por mais tempo uma profunda crise de legitimidade, de credibilidade e de identidade da RTP.

4. A CRISE DA TELEVISÂO PÚBLICA

Berlusconi tem uma frase lapidar que costumo citar com frequência, posto que resume com rigor os objectivos da televisão comercial. Disse ele numa reunião de publicitários que a televisão não existe para oferecer programas ao público, mas sim para oferecer público aos anunciantes. Um dos problemas da RTP é justamente ter interiozado esse princípio sustentando, ao mesmo tempo, a defesa do seu estatuto de serviço público. O Secretário de Estado da tutela do governo anterior ao actual governo socialista sintetizou de forma exemplar essa situação ao afirmar que a RTP era parcialmente uma estação comercial e parcialmente um lugar de serviço público. O actual Secretário de Estado, pelo contrário, tem-se mostrado um defensor convencido - o tempo dirá até que ponto foi convincente - do serviço público. Mas, até ver, a televisão do estado continua a viver uma crise profunda.
Vejamos, sucintamente, os fundamentos históricos tradicionalmente avançados para justificar a intervenção estatal na televisão europeia. Antes de mais evocavam-se argumentos de ordem técnica. Inicialmente, as frequências hertzianas surgiram como um bem escasso e, como tal, ficaram associadas, de imediato, a uma espécie de monopólio natural capaz de proporcionar igualdade de oportunidades de acesso a todos os cidadãos. Por outro lado, pretendendo corresponder às necessidades de Informação, Educação e Entretenimento, a televisão pública assumiu a promoção de um conjunto de valores culturais identificativos da identidade nacional, com prioridade para a defesa da língua. Havia, depois, um argumento de ordem política sustentado pelo desejo expresso de garantir formas de participação e pluralismo com base na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Finalmente, evocava-se um argumento de ordem jurídica vinculativo do argumento anterior e sancionado nas cartas contitucionais dos diversos países.
Este quadro está hoje ultrapassado. O monopólio da televisão na Europa principiou a ser questionado a partir do momento em que a iniciativa privada se apercebeu das potencialidades lucrativas do medium. Contudo, a crise de legitimidade da televisão pública tem raízes mais fundas. As novas tecnologias da comunicação, possibilitando o acesso ao cabo e ao satélite, pulverizaram o espectro hertziano e criaram as bases de uma oferta sem precedentes. Na Itália, por exemplo, de forma totalmente desregulamentada, chegaram a existir 500 canais.
No plano político, por outro lado, o final dos anos 70 e os anos 80 foram de afirmação da contra-revolução neo-liberal. Ideológicamente assistiu-se ao regresso ao privado, económicamente vingaram as teses sobre a lógica da empresa e da competitividade e socialmente acentuou-se a falência do Estado Providência. Em Portugal, os governos de centro-direita de Cavaco Silva deram expressão a estes valores. Foram eles quem abriu a televisão à iniciativa privada, aliás com atraso em relação à maioria dos países europeus, fazendo, simultâneamente, do canal 1 da RTP, além do habitual instrumento de propaganda, uma espécie de televisão comercial do Estado. O pagamento da taxa foi abolido. Criticada pelos novos operadores privados por concorrência desleal em matéria de acesso ao parque publicitário, orientada no sentido de competir pelas audiências a qualquer preço, abalada por uma profunda crise financeira consequente de uma política megalómana de compras e contratações, a RTP, ou pelo menos o seu primeiro canal, pareciam inclinar-se para a via da privatização, eventualmente a favor do grupo Lusomundo, quando o partido de Cavaco Silva perdeu as eleições.
O novo governo socialista herdou, pois, não apenas um enorme buraco financeiro, mas, sobretudo uma empresa que, sendo ao mesmo tempo serviço público e televisão comercial, padecia de uma profunda crise de identidade. A explosão tecnológica impôs o cabo e, desde logo, uma crescente diversidade da oferta, bem como conceitos emergentes como a interactividade, a segmentação do público e a fragmentação das mensagens. Caducava, assim, uma parte significativa da argumentação tradicional sobre a legitimidade do serviço público.
 Prisioneira de um modelo generalista informado pela propaganda longamente interiorizado, refém de grupos de pressão burocratizados, desactualizada no plano da teoria dos media, incapaz de se repensar em função dos novos desafios, embrenhada nos labirintos da guerra doméstica das audiências, periférica em relação aos desenvolvimentos dos programas audiovisuais europeus, a RTP entrou em perda de credibilidade.
O que se vê hoje nos quatro canais da televisão portuguesa não difere substancialmente da maioria da programação dos canais generalistas europeus, isto se levarmos em linha de conta as características diferenciadas dos segundos canais do estado, habitualmente mais virados para as minorias e com maiores preocupações culturais. As telenovelas e os concursos têm uma expressão esmagadora. O desporto e o cinema recolhem igualmente os favores do grande público, bem como os programas predominantemente relacionais, dos quais se destacam os talk-shows, os reality-shows e os programas de revelação de talentos. A informação ocupa também um lugar de destaque, de algum modo funcionando como tentativa de uma estratégia de credibilização por parte de operadores acossados por uma crítica frequentemente tão desarmada quanto indigente é boa parte dos programas apresentados e criticados. Abro, aqui, um parêntesis para reconhecer a dificuldade em decidir em matéria de gosto. No entanto, se em rigor nada pode definir a qualidade de um programa, o facto é que qualquer pessoa está em condições de reconhecê-la: é o contrário da facilidade, da mediocridade e da vulgaridade.

5. O MITO DE CLARK KENT E O TERRITÓRIO DE FRANKENSTEIN

Se a guerra das audiências promoveu um nivelamento por baixo na qualidade da programação, na informação franqueou as portas ao espectáculo.
Em concorrência, com toda a polémica que a ideia possa suscitar, nada impede, do ponto de vista do mercado, de considerar a notícia como um produto à venda, um elemento, porventura decisivo, da estratégia de fidelização das audiências, tendo como referência de maior visibilidade a figura do apresentador. Esta constatação coloca problemas interessantes, quer a propósito da performance jornalística, quer sobre o modelo informativo associado ao espectáculo.
A expressão informação-espectáculo presta-se à controvérsia. Por natureza a televisão é espectacular e, como tal, qualquer desígnio semântico deve tirar partido dessa espectacularidade. Os problemas surgem quando a espectacularidade deixa de ser um meio para se transformar num fim em si mesma, limitando as possibilidades do conhecimento  e potenciando o efeito de fascinação.
Foi Gordon Van Sauter, um quadro superior da CBS americana, quem inventou, nos anos 70, a chamada informação de momentos, ou seja, uma informação sobre os chamados casos humanos, tantas vezes devassando a privacidade das pessoas e explorando as misérias humanas. A dramatização desses casos, sempre associada à informação-espectáculo, apela aos sentimentos primários, promove a dimensão emotiva dos acontecimentos  e estimula a revisão dos chamados valores-notícia no quadro de uma espectacularidade gratuita. Em Portugal, esta informação unicamente justificada pela guerra das audiências tem os seus adeptos, a começar pela televisão do estado.
As concepções neo-liberais dos anos 80 informaram, em maior ou menor grau, toda uma jovem geração de jornalistas portugueses. Tendo a pressão do mercado como referência principal, confundindo a notoriedade conferida pelo ecrã e ampliada pelas revistas mundanas com a qualidade, essa geração tornou-se permeável àquilo a que costumo chamar a mitologia de Clark Kent. Essa mitologia é, seguramente, uma das razões pela qual a profissão de jornalista é tão apelativa para uma parte significativa da juventude.
No início de cada ano lectivo, na Escola Superior de Jornalismo do Porto, procuro tomar conhecimeto dos novos estudantes e das suas motivações. De um modo geal, há uma preferência maioritária pela televisão, em detrimento da rádio e da imprensa. O que move a maioria desses jovens é a imagem do jornalista ligado a acontecimentos perigosos e exóticos, de chapéu colonial na savana africana ou de fato camuflado num cenário de guerra, semopre o protagonista central de aventuras com happy end. Dificilmente se encontra um desses estudantes preocupado com as notícias. Ao fim e ao cabo, eles têm dos jornalistas a imagem projectada pelos media de maior consumo, mas não, seguramente, de melhor qualidade.
Por norma, costumo fazer uma referência detalhada ao percurso dos principais anchormen americanos, praticamente desconhecidos da maioria desses jovens, chamando a atenção para o facto da informação de todo o mundo nas televisões generalistas se ter inspirado no figurino das grandes networks e alertando, ao mesmo tempo, para o mundo de facilidades aberto pela cópia irresponsável desse modelo.
 Rather, da CBS, Jennings da ABC e Brokaw da NBC são homens maduros. Brokaw, o mais novo, nasceu em 1940. Rather, o mais velho, em 1932. Todos têm um impressionante currículo de repórteres. Só chegaram a âncoras já depois dos 40. E todos tiveram de dizer não por diversas vezes até alcançarem a notoriedade que hoje têm. Brokaw, por exemplo, teve de trabalhar para fazer os seus estudos universitários e chegou a recusar uma oferta de um milhão de dólares para fazer um jornal televisivo no qual se lhe exigia que, nos intervalos, lesse igualmente a publicidade. Estes ícones americanos projectam uma poderosíssima imagem junto da opinião pública e, a meu ver, concentram poderes excessivos. Não se lhes pode negar, no entanto, o mérito de um presente solidamente ancorado num passado profissional reconhecido. Nos EUA, dificilmente, alguém poderia passar directamente das passerelles para a apresentação de um jornal. Van Sauter, na CBS, tentou-o com Miss America, mas uma avalanche de críticas ridicularizou a tentativa e fê-la abortar.
Um dos riscos da informação-espectáculo, no respeitante aos seus actores, é justamente de substituir a lógica da credibilidade conquistada ao longo de um percurso profissional pela vertigem de uma real ou aparente capacidade performativa, mas da qual se ausentam a maturidade, a cultura jornalística e a memória histórica. Quando assim é, facilmente essa notoriedade, quase sempre transitória, suscita a emergência do complexo de Clark Kent como detonador do universo informativo Frankenstein. Quantas vezes o efémero super-homem, em nome da ordem transcendente da informação-espectáculo, não promove uma subtil e, nalguns casos, até, grosseira distorção dos factos por forma a que as “histórias” convenientes não sejam prejudicadas. E quantas vezes os responsáveis editoriais não fecham os olhos a essas situações - quando não as promovem - em nome do sacrossanto critério da audiência. A ser assim, e muitas vezes é, o profissionalismo passa a ser medido pela capacidade de exposição e dramatização dos acontecimentos, violência e escândalos do dia a dia. O talento reside na habilidade de fazer o máximo de barulho a partir de coisa nenhuma e a imaginação manifesta-se no modo de encenar os factos.
O modelo americano quer das redes generalistas, como a CBS, quer das redes temáticas, como a CNN, responde aos problemas da informação na base de um profissionalismo de elevado grau de exigência históricamente interiorizado. Pode ou não estar-se de acordo com o modelo. Chomsky, por exemplo, condidera-o um modelo de propaganda e aduziu argumentos interessantes a favor da sua tese a partir de considerações sobre o efeito de agenda. Partindo do pressuposto que o efeito de agenda permite a construção da realidade, pode, com efeito, sustentar-se que a televisão fabrica o mundo à sua imagem, quer através da redundância dos assuntos tratados, quer através da estabilidade de um fundo semântico estruturado por uma lógica serial. Os códigos de reconhecimento acabariam por ser fornecidos pelo próprio discurso televisivo, cujas categorias e protagonistas se impõem através de uma espécie de ressonância consequente da repetitividade. Mas, seja como for, o modelo americano procede de alicerces sólidos. As cópias, pelo contrário, limitam-se a fazer o registo simplista da parte visível do original. Na CNN estão proibidas a ênfase e a hipérbole. A CNN nunca abriria o noticiário sobre a Guerra do Golfo anunciando o início da III Guerra Mundial.
Quanto mais e melhor a informação, melhores os cidadãos e melhor a democracia. Mas que informação é esta com um olho na audiometria e o outro na concorrência? O figurino do telejornal tradicional das redes generalistas - Ramonet chamou-lhe o telejornal modelo Holywood - entrou em crise. Estruturado em função da ideia clássica dos géneros, construído em torno de um apresentador vedeta, o telejornal ganhava espessura em função de uma narratividade criteriosamente organizada a partir de um alinhamento. A fórmula não era perfeita e são conhecidos os limites desse tipo de informação, aliás, especialmente vulnerável aos desígnios da propaganda. Contudo, tinha seu favor a vantagem de permitir desenvolver uma narrativa coerente. Hoje, a ideia de alinhamento está condicionada à luta pela audiência. Do efeito conjugado dessa luta, da cópia apressada de novos modelos como o da CNN e do recurso frequente ao directo tantas vezes, de resto, sem nada que o justifique, impôs-se uma estética da fragmentação que pulverizou a narrativa tradicional.
Não advogo o regresso a modelos que fizeram a sua época nem quero ferir as susceptibilidades de quem quer que seja no meu País, onde, de resto, há bons profissionais e bons apresentadores de televisão, tanto na RTP quanto nas estações privadas. Mas a exigência de rigor e a consciência da dimensão ética do jornalismo impõem uma reflexão.
A audiência não pode ser a referência prioritária nem, muito menos, a instância de julgamento final do que se faz ou deixa de fazer num serviço público de televisão. Mesmo em relação à televisão privada não há nenhuma razão para a não observância de parâmetros deontológicos sem os quais não há informação séria e se corre o risco da invasão do território de Frankenstein. O sensacionalismo vive paredes meias com as grandes misérias e as grandes tragédias. E isso é perigoso para a democracia.
A vulgata da informação-espectáculo é tanto mais eminente quanto mais inquieta os poderes, tanto mais ostensiva quanto mais se cola ao mito modernista que a acompanha, tanto mais simbólica quanto mais permeável se mostra em relação ao dinheiro. Nascida da publicidade e do desenvolvimento tecnológico, dominada pela lei do mercado, comporta-se com arrogância e alimenta a feira das vaidades. De fora, com demasiada frequência, ficam as questões a montante e a juzante dos acontecimentos, ou seja, o seu enquadramento histórico e cultural e as suas consequências de toda a ordem. Visão redutora, portanto, a partir da qual é legítima a interrogação sobre os seus limites no quadro de uma cidadania responsável.

6. ELEMENTOS ESTRUTURANTES: AUDIÊNCIA E NOVAS TENDÊNCIAS

Não quero com isto dizer que a audiometria não tenha importância. Para todos os efeitos é um indicador. Todavia, a pesquisa dos media tem hoje razões de sobra para a considerar insuficiente e, até, perigosa. Ien Ang, por exemplo, sustenta que a noção de audiência de televisão é, na melhor das hipóteses, errada e, na pior, falsificada. Em primeiro lugar, dirigindo-se a todos ao mesmo tempo, a televisão tende a minimizar a capacidade de discernimento dos destinatários. Só por essa razão se entende que num quadro de operadores generalistas em concorrência o espectador seja tratado como um ser indefeso e vulnerável a todo o tipo de influências, embora esses mesmos operadores não se cansem de exaltar as diferenças de modo a alimentar o mito da individualidade. Quem, na realidade, defende limitar-se a dar ao público aquilo que ele quer, necessita da audiência, como de pão para aboca, como instância legitimadora dos critérios editoriais prosseguidos.
Na verdade, o conhecimento institucional não está interessado na audiência real composta por pessoas individualizadas e com comportamentos diferenciados. Importa sim o heavy viewer, pois só assim se dispõe de um instrumento operativo eficaz no sentido de permitir desenvolver estratégias que garantam a “audiência” capaz de reproduzir os próprios mecanismos de sobrevivência das estações. É neste contexto que Newcomb se interroga se a noção de audiência não é uma abstracção construída no sentido de favorecer a indústria da televisão.
Bausinger conta a história da mulher cujo marido liga a televisão mal chega a casa e não fala com ninguém. Neste caso, premir o botão não corresponde a qualquer escolha de um programa, mas tão somente a uma atitude de recusa de diálogo com a família. Padrões clássicos de avaliação do comportamento do espectador não levam, com efeito, em linha de conta a sua relação com aquilo a que ele assiste. Prevalecem os dados quantitativos da frequência de um dado canal  e da preferência permanente por uma estação sobre as demais. Assim entendidos, os indicadores tradicionais ajustam-se às necessidades de regulação do espaço publicitário num contexto de televisão de broadcast , mas tendem a ser desajustados num universo audiovisual de segmentação da oferta televisiva. As tecnologias do cabo, do satélite e, sobretudo, do digital, seguramente irão exigir um novo tipo de indicadores, eventualmente um regresso à programação seleccionada de alta qualidade pela qual um público cada vez mais numeroso estará, inclusivamente, disposto a pagar. A televisão segmentada e temática, associada ao computador, tenderá a ser um instrumento de permanente consulta, exigindo uma atitude participativa nos antípodas da passividade atribuída ao heavy viewer da televisão generalista.
Essa passividade sofreu um primeiro abalo com o controle remoto, o qual, permitindo o zapping, veio introduzir um relativo grau de autonomia em relação às escolhas. Durante muito tempo, porém, a diversidade da oferta foi mais aparente do que real, visto os diferentes operadores terem adoptado uma relação de mimetismo na programação de uns para com os outros. Com a oferta decorrente da utilização das novas tecnologias, as novas tendências irão bater-nos à porta. Entre nós, cerca de um milhão de portugueses têm já acesso à rede de cabo, a qual disponibiliza 35 canais internacionais, alguns deles temáticos e já a operar em língua portuguesa. Com o advento do digital e em função das tecnologias da compressão, teremos acesso a uma oferta praticamente ilimitada na base de uma interactividade crescente, a qual permitirá, no limite, a cada usuário assistir ao que muito bem entender e quando entender, excepção feita aos acontecimentos mediáticos à escala global, como grandes eventos desportivos, que tenderão a ser pagos, e à actualidade jornalística, que é imprevisível. Mas as coisas não ficam por aqui. Uma outra revolução se anuncia. a revolução das linguagens.
Em 50 anos de existência a televisão não conseguiu autonomizar uma linguagem universal indiscutível. Deu passos nesse sentido em relação aos diversos géneros integrantes do espaço discursivo, mas não em relação à discursividade global. De certa maneira, falhou a conquista daquilo a que os especialistas chamam o confortable environment. Não está definido, por exemplo, se o consumo de televisão é uma experiência individual ou colectiva, não se diferenciam as modalidades de percepção de acordo com o grau de concentração e de ruído, nem sequer se estabeleceram, ainda, alguns conceitos elementares como o formato adequado da tela, o nível da luminosidade óptima para a recepção ou a distância ideal  do espectador face ao ecrã. Há ideias feitas sobre estas matérias. Por exemplo, a de que o espectador de televisão é apenas medianamente atento porque envolvido num ambiente de ruído. A verdade, porém, é que o esclarecimento das dúvidas levantadas seria útil ao estabelecimento de uma produção diferenciada. Com o advento da televisão segmentada, pelo menos no campo das hipóteses, a linguagem do meio vai ter de ajustar-se a essa mesma segmentação. Há um elemento qualitativo radicalmente novo. O ponto de vista estruturante da programação passa a ser o do espectador selectivo, eventualmente interactivo, e já não o ponto de vista da audiência do heavy viewer. Uma sucessão de programas com uma temática comum pode, assim, determinar muito mais a linguagem do veículo do que cada um desses programas vistos isoladamente. Se isto for verdade, estaremos a caminho da identificação mais da linguagem diferenciadora de uma rede particular do que de um veículo. Em suma linguagens especializadas, sofisticadas, para públicos igualmente sofisticados e exigentes, mas cada vez mais numerosos. Uma verdadeira revolução, na qual a capacidade de enunciação de acordo com gramáticas particulares ocupará um lugar central.
Naturalmente, a enumeração das possibilidades em aberto oblitera, por vezes, uma visão realista dos problemas. Importa ter consciência da dimensão de Portugal e do seu lugar periférico e não sucumbir perante o fascínio futurista habitualmente ligado às novas tecnologias. Nunca é demais lembrar que a história da comunicação também é uma história de dependências. De qualquer modo, cedo ou tarde o meu País será confrontado com as novas realidades e dentro desse quadro terá de encontrar as modalidades de actuação que favoreçam uma presença diferenciada no panorama global do audiovisual. À empresa pública de televisão, pelo papel estratégico que lhe está reservado, reclama-se urgência na reflexão sobre estas matérias.

7. TELEVISÃO DE SERVIÇO PÚBLICO OU SERVIÇO DE CALAMIDADE PÚBLICA?

Seguramente, muitas das perspectivas, dúvidas e preocupações aqui avançadas são igualmente vossas. A reavaliação estratégica do serviço público é hoje motivo de debate e controvérsia não apenas no meu país, mas um pouco por todo o lado.
Uma primeira constatação: pelas razões apontadas, não parece sensato deixar a paisagem audiovisual inteiramente entregue aos operadores privados e à lógica do mercado. Os pequenos países, como Portugal, têm necessidade de uma política que salvaguarde a sua identidade. Essa questão foi já levantada há uns bons pares de anos pelo relatório McBride e o tempo só tem vindo a dar-lhe razão. O serviço público estatal tem essa missão. Para tanto, cabe-lhe assumir-se como eixo estruturador da indústria do audiovisual, defendendo, nomeadamente  o cinema português e promovendo a inovação dos programas, das linguagens e da interacção com os públicos. Em todo o caso, repito, o conceito de serviço público deveria ser alargado à participação dos privados segundo modalidades fixadas nos contratos de concessão.
Uma outra linha de valorização do serviço público aponta para a regionalização. Durante décadas, uma das consequências mais nocivas da cristalização do modelo generalista e centralista da RTP foi o enfraquecimento e virtual destruição da produção regional. Só episódicamente um ou outro centro Centro de Produção fora de Lisboa conseguiu impor os seus programas. Inadevertida ou propositadamente a RTP criou uma programação “normalizada” na capital, à qual juntou uma espécie de remanescente apenas tolerado e mal querido, “o resto do País.” O advento da televisão privada não alterou este estado de coisas. Pelo contrário. A concorrência faz-se a partir da capital porque aí tem lugar a esmagadora maioria dos negócios publicitários.
Independentemente das decisões políticas que venham ser tomadas nesta matéria, é hoje um dado adquirido que as novas tecnologias do cabo e do digital permitem, técnicamente, dar corpo ao princípio segundo o qual é na regionalização que está a base da universalização. Foi sempre assim. O cinema brasileiro - lembra Hoineff - conheceu a sua única fase de universalização quando foi mais brasileiro, especialmente durante os anos do cinema novo, de temática frequentemente regional. O mesmo aconteceu com o cinema italiano, sobretudo na fase do neo-realismo e logo após o movimento. Quando adoptou os modelos de Holywood entrou em declínio. Os exemplos poderiam multiplicar-se. Por isso, a aposta nos valores regionais como expressão de uma mais valia nacional é, a meu ver, uma das condições da sobrevivência do audiovisual português.
Porém, a televisão regional não se esgota nas “janelas” que a RTP acaba de abrir em diversos pontos do País. Ela passa por uma crescente autonomia em termos de capacidade de decisão e pelo aparecimento de unidades de produção ligadas aos agentes culturais e empresariais em condições de beneficiarem dos programas europeus para a televisão transfronteiriça. Passa, igualmente, pelas co-produções. E assenta, sobretudo, na capacidade de utilização das novas tecnologias.
Uma terceira linha de actuação decorre da explosão das Ciências da Informação e da Comunicação nos últimos 20 ou 25 anos. A pesquisa levada a cabo neste período de tempo tem permitido conhecer melhor a televisão, os seus actores, programas e linguagens, bem como o papel dos media na sociedade. O serviço público não pode deixar de integrar esses conhecimentos, quer em termos da exigência da formação de quadros altamente qualificados, quer na definição dos seus objectivos estratégicos, participando e beneficiando da educação para os media, a qual é, hoje, uma pedra angular da democracia.
Do exposto resulta, naturalmente, a aceitação do pressuposto da necessidade de reconversão tecnológica, como forma não só de encarar uma participação mais eficaz no mercado, mas também de promover e integrar novas linguagens e formas de expressão. Esta parece-me ser, aliás, uma das lacunas do discurso oficial - não por omissão, mas pela relevância discreta - na medida em que a capacidade de enunciação do meio, até num plano experimental e devido ao seu elevado grau de exigência, poderia e deveria ser um elemento distintivo das capacidades performativas do serviço público.
Boa informação e bons programas custam caro. O regime de financiamento da RTP está definido e não me compete pronunciar-me sobre ele. Indiscutível é a necessidade de uma gestão equilibrada que saiba interpretar a estratégia do serviço público, quer prescindindo das medidas exclusivamente economicistas, embora respeitando o rigor orçamental, quer tirando partido dos quadros mais qualificados e criativos. Só eles serão capazes de fazer boa informação e bons programas, justificando o dinheiro gasto pelos contribuintes e justificando a existência, como modelo de referência, de uma empresa de serviço público.
Infelizmente, apesar de se ter avançado em termos estratégicos, não se pode dizer que alguma coisa tenha mudado substancialmente no último ano e meio, ou seja, desde a tomada de posse da nova tutela.
O governo socialista foi eleito com um programa no qual se faziam críticas pertinentes à política de comunicação social do governo anterior. Herdou na televisão do estado uma situação preocupante. Foi capaz de produzir trabalho teórico. Na prática, porém, são tão hesitantes os já de si tímidos passos concretizados, que cada vez mais se legitimam as rotinas identificadas com o passado recente. Por outras palavras, dá ideia que mudadas as pessoas, se está a fazer a gestão do que havia. Caso esta tendência não se inverta, das duas uma: ou não é possível mudar grande coisa ou o governo anterior tinha razão e as críticas socialistas na oposição eram destituídas de fundamento.
Problemas com os intérpretes? Estruturas disfuncionais em termos de uma análise sistémica, independentemente de quem as ocupa? Precaridade dos saberes indispensáveis a quem se exige que pense a televisão? Predominância de soluções admnistrativas onde se exigiria criatividade mobilizadora? Vazio de ideias? Incapacidade na hierarquização das prioridades? Resistência por parte de interesses instalados? Dificuldades de diálogo a vários níveis? Antagonismos entre o centro e as periferias? Atrasos na definição de um estatuto que alivie as pressõs partidárias? Mediações intermináveis? Conflitualidade político-partidária ao nível da tutela? Provavelmente, da resposta a algumas destas questões dependerá o futuro do serviço público de televisão. Se as soluções não forem satisfatórias, corremos o risco de estar a patrocinar um serviço de calamidade pública. Nada, afinal, que nos seja estranho, desde os tempos do pecado original que fez nascer a televisão portuguesa.
Disse no início desta intervenção estar céptico em relação ao futuro. As razões do meu cepticismo, se não foram inteiramente explicitadas suponho terem sido, ao menos, suficientemente indiciadas. Mas, há ainda uma última razão para o meu cepticismo. Talvez até nem seja uma razão e seja mais um estado de espírito que releva da cultura dos media no meu País.
Há dias assisti a um programa de entretenimento curioso, numa estação privada, no qual um político que habitualmente comenta futebol se fazia passar por chefe da oposição, um líder sindicalista por primeiro ministro e os directores dos principais jornais portugueses, e os de maior credibilidade, bem como outros conhecidos jornalistas, aceitavam comentar notícias forjadas, algumas das quais de péssimo gosto, como aquela que dava conta de um grave acidente de um membro do governo. As reacções ao programa foram tão violentas, que logo no dia seguinte houve uma debandada de muitos dos protagonistas e foi necessário reformular o elenco. O facto, porém, é que quem depois veio dizer que não sabia ao que ia esteve lá e, seguramente, não foi de olhos fechados.
Não serão estes os sinais do tempo?




Portugal teve as primeiras emissões experimentais de televisão em 1956. As emissões regulares principiaram no ano seguinte. Tratava-se, evidentemente, de um meio de propaganda do regime: “Neste primeiro período da história da informação televisiva – desde início até finais dos anos 60 – período que antecede, mais concretamente, o lançamento do telejornal (em 19 de Outubro de 1959), nos moldes globais em que perdurou até 25 de Abril de 1974, as práticas específicas que então estruturaram o modelo de informação assumiam já, desde essa altura, a base fundamentalmente protocolar que jamais haviam de perder [1]”.

Os episódios reveladores dessa lógica instrumental faziam parte do dia a dia, havendo mesmo uma altura em que os telejornais passaram a ser abertos com editoriais. A título de exemplo, a reunião de líderes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas de 30 de Agosto de 1966, em Brazzaville, foi descrita como uma reunião de criminosos. O editorialista concluía: “Pobre África onde o canibalismo voltou a ser oficializado e a lei da selva está institucionalizada [2]”.

O poder saído da Revolução de 25 de Abril de 1974 que pôs cobro à ditadura, a par das boas intenções, nomeadamente nas vertentes educativa e cultural, depressa enveredou por um pedagogismo, por vezes estridente, que acabou por produzir um efeito de boomerang, assustando uma parte significativa da população portuguesa. Esse período assente no pressuposto da eficácia de mecanismos de causalidade indutores dos efeitos ideológicos pretendidos teve vida curta. Mas, nem por isso o período subsequente, que decorreu até à institucionalização do regime, tutelado por um poder heterogéneo e contraditório, deixou de ser alvo de tentativas de hegemonia por parte de facções político-militares de diferentes tendências.

A formação dos governos constitucionais estabilizou os critérios editoriais definidos de acordo com os poderes eleitos, mas esse conformismo acabaria por reforçar a precariedade conceptual do modelo de serviço público a par, naturalmente, do controle partidário da RTP. Cada novo governo redefiniu a pirâmide hierárquica da empresa fundamentalmente segundo critérios de satisfação das respectivas clientelas. Ao longo dos anos, esse clientelismo foi engrossando uma burocracia cuja responsabilidade política relegava para segundo plano a responsabilidade de fazer serviço público. A chamada cultura da empresa foi integrando uma complexa rede de compromissos no âmbito das relações do poder partidário. O saber fazer e os critérios de profissionalismo passaram para segundo plano. Daí resultou o inevitável aparecimento de fenómenos perversos de acomodação pessoal e de distorção de objectivos, numa empresa cada vez mais sobredimensionada e com um nível de endividamento incompatível a racionalidade económica. Enfim, um percurso de progressivo declínio e de expectativas frustradas, cujo momento de aparente irreversibilidade terá começado a declarar-se com a abertura à iniciativa privada [3].

O aparecimento da televisão privada

No início dos anos 90, após longo debate sujeito a múltiplas pressões políticas, a questão da televisão privada foi resolvida. Esse debate, centrado basicamente em torno de uma fórmula maniqueísta que opunha a ‘televisão pública’ – sinónimo de manipulação partidária – à ‘televisão privada’ – sinónimo de independência, se foi muito influenciado pelas teses neoliberais dominantes nos anos 80, foi igualmente revelador de uma concepção de televisão que valorizava fundamentalmente a área da Informação.

Em Julho de 1990 o Parlamento aprovou a lei sobre o regime de actividade da televisão e o governo da altura chefiado pelo primeiro ministro Cavaco Silva atribuiu um canal ao empresário, político e antigo jornalista Pinto Balsemão, proprietário do semanário Expresso, e outro à Igreja Católica, cujo projecto inicial apontava no sentido da divulgação e promoção dos valores do humanismo cristão. A SIC de Pinto Balsemão optou por um modelo generalista semelhante ao do canal 1 da RTP. A TVI da Igreja Católica destinou cinco por cento do tempo de emissão aos assuntos religiosos apostando, em tudo o mais, no grande público, tal como o definiu Dominique Wolton.

A SIC principiou as suas emissões em Outubro de 1992 e a TVI em Fevereiro do ano seguinte. O impacto da SIC foi devastador para a televisão do Estado. Depois de um início titubeante, passou a ocupar habitualmente os 10 primeiros lugares nas tabelas de audiências.  Começando por ganhar a batalha da Informação, com um estilo mais agressivo, pluralista e, sobretudo, mais imaginativo no respeitante ao uso da linguagem televisiva, não se coibiu, numa segunda fase, de enveredar por uma programação muitas vezes a rondar os baixios do impensável, varrendo a RTP do mapa dos programas mais vistos [4]. Como reagiu a televisão pública? Mimeticamente, transformando-se numa televisão comercial do estado. Não há muito, Berlusconi dissera num encontro de publicitários que a televisão comercial não existia para oferecer programas ao público, mas sim para oferecer público aos anunciantes. Um dos equívocos da RTP após o aparecimento dos privados foi ter procurado articular esse princípio com a defesa do seu estatuto de serviço público [5]. A partir do momento em que isso aconteceu não foi possível disfarçar por mais tempo a crise de legitimidade, de credibilidade e de identidade da RTP a que aludi. 

Televisão de serviço público ou serviço de calamidade pública? 

Prisioneira de um modelo generalista em tudo semelhante ao da televisão comercial, refém de grupos de pressão partidários, incapaz de se repensar em função dos novos desafios, embrenhada nos labirintos da guerra doméstica das audiências, periférica em relação ao desenvolvimento dos programas audiovisuais europeus, a RTP entrara em perda acelerada de credibilidade. Desarmada no plano da teoria dos media, sem propostas nem soluções de serviço público face às tecnologias do cabo e do digital, impotente para definir uma estratégia quanto à segmentação, a RTP legada pelos governos de centro-direita era bem o espelho das razões pelas quais caducava uma parte significativa da argumentação tradicional sobre a legitimidade do serviço público.

Acusada pelos privados de concorrência desleal – o governo do Partido Social Democrata de Cavaco Silva tinha abolido a taxa, mas mantivera o recurso à publicidade –, orientada no sentido de competir pelas audiências, abalada pela crise financeira resultante de uma política megalómana de compras de programas e de contratos milionários com vedetas, a RTP, ou pelo menos o seu primeiro canal, parecia estar a ser orientada no sentido da privatização, eventualmente a favor do grupo Lusomundo, o mais poderoso grupo de media do País com diversas publicações e uma estação de rádio de referência, a TSF, mas ao qual faltava uma estação de televisão. Se o plano existia, como tudo leva a crer, a verdade é que não foi por diante visto o Partido Socialista ter ganhado as eleições de 1996.

Eleito com um programa no qual se faziam críticas pertinentes à política de comunicação social do governo anterior, o governo socialista herdou, portanto, um serviço público de televisão em situação preocupante. Foi capaz de produzir trabalho teórico. Na prática, porém, pouco ou nada mudou a não ser os ocupantes dos lugares da Administração e Direccão. De tão hesitantes, os tímidos passos até agora tentados apenas acabaram por confirmar as rotinas identificadas com o passado recente. Daí as interrogações:

Problemas com os intérpretes? Estruturas disfuncionais em termos de uma análise sistémica, independentemente de quem as ocupa? Precariedade dos saberes indispensáveis a quem se exige que pense a televisão? Predominância de soluções administrativas onde se exigiria criatividade mobilizadora? Vazio de ideias? Incapacidade na hierarquização das prioridades? Resistência por parte de interesses instalados? Dificuldades de diálogo a vários níveis? Antagonismos entre o centro e as periferias? Atrasos na definição de um estatuto que alivie as pressões partidárias? Mediações intermináveis? Conflitualidade político-partidária ao nível da tutela?

Provavelmente, da resposta a algumas destas questões dependerá o futuro do serviço público de televisão. Se as soluções não forem satisfatórias, corremos o risco de estar a patrocinar um serviço de calamidade pública. Nada, afinal, que nos seja estranho, desde os tempos do pecado original que fez nascer a televisão portuguesa.


            Jorge Campos



[1] . Cádima, Francisco Rui – Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa, Editorial Presença, Lisboa, 1996.
[2] . Cádima, op. citada.
[3]. Para que adiante se perceba o rumo que viria a ser traçado para a RTP recupero uma outra passagem desta mesma intervenção, na qual se avançavam alguns pressupostos básicos justificativos da necessidade de um Serviço Público de Televisão em Portugal: “Somos o País da Europa com uma das mais elevadas taxas de analfabetismo. 12% dos portugueses não sabem ler nem escrever. Em termos de analfabetismo funcional essa percentagem sobe para 26%. A iliteracia atinge metade da população. Lemos poucos jornais e, nesse aspecto, estamos na cauda da Europa. Diariamente, por cada mil habitantes há apenas 50 jornais que são lidos. Na Noruega, por exemplo, os mesmos mil habitantes fazem a leitura, todos os dias, de mais de 700 jornais. 70% da população não lê um livro (...). Também podemos dizer que os portugueses vão pouco ao cinema (...), à excepção de uma reduzida franja urbana, não frequentam o teatro, (...) (e) estão, em média, mais de quatro horas por dia diante da televisão (...). Mas, há outras razões a favor do serviço público que a RTP presta ou devia prestar. Por exemplo: o facto de no planeta haver 200 milhões de falantes da língua portuguesa, entre os quais muitos emigrantes espalhados pelos quatro cantos do mundo, justificam um serviço internacional como a RTPi. As relações com as antigas colónias africanas exigem uma RTP África; as autonomias da periferia dos Açores e da Madeira impõem canais regionais”. – Nota do Autor
[4] . A este prpósito a cineasta francesa Mariana Otero fez um documentário sobre a SIC – “Cette Télévision Est La Vôtre” – difundido no canal cultural franco-alemão Arte – a promoção do canal anunciava um programa sobre a pior televisão da Europa – e, mais tarde, na RTP, que levou a estação a uma réplica, através de alguns dos seus quadros mais proeminentes, negando, nomeadamente, a legitimidade da existência de um ponto de vista e acusando a autora de não ter respeitado os critérios jornalísticos. – Nota do Autor.
[5] . O Secretário de Estado da tutela da altura, Marques Mendes, sintetizou essa situação ao afirmar que a RTP era parcialmente uma estação comercial e parcialmente um lugar de serviço público. – Nota do Autor.








Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura

Cinema, Audiovisual e Multimédia

este texto serviu como base de reflexão sobre o centro da RTP no monte da virgem. Pretendia-se encontrar não apenas um novo rumo para um serviço público descentralizado, mas também lançar pontes para uma cooperação com o Porto 2001-Capital Europeia da Cultura.

RTP/PORTO

Subsídios para um projecto audiovisual que requer o Centro de Produção do Porto da RTP como eixo regulador de uma nova realidade audiovisual e multimédia no contexto de um serviço público de televisão descentralizado
  
1. Qualquer avaliação do Centro de Produção do Porto da RTP é indissociável das medidas levadas a cabo nos últimos anos do cavaquismo. Dir-se-á que foram medidas avulsas, implementadas conjunturalmente, sem uma estratégia previamente definida, enfim, sem uma ideia relativa aos objectivos a atingir, embora orientadas por um princípio geral de contornos indeterminados ao qual poder-se-ia chamar crescimento. A situação actual parece ser a de uma gestão precária da herança recebida.

2. Aparentemente, as decisões tomadas ao longo dos tempos foram resultantes de actos voluntaristas, num quadro reivindicativo bipolar, ou seja, às tendências tradicionalmente centralizadoras de Lisboa foi respondendo o Porto, e mais por intervenção da classe política, com desígnios de uma autonomia crescente do seu Centro de Produção. Ninguém terá procurado responder com rigor a uma pergunta tão simples quanto esta: autonomia para fazer o quê?

3. Não tendo sido dada resposta à pergunta anterior, o crescimento do Centro de Produção do Porto da RTP teve um efeito paradoxal: uma notável capacidade instalada de produzir televisão ora sub-aproveitada ora simplesmente desactivada. Editorialmente dependente de Lisboa - o que, de resto, é compreensível no quadro da tradição das televisões generalistas do Estado - o facto é que a indisponibilidade de acesso à antena tem condicionado e imposto limites à produção quer de Programas, quer de Informação.

4. Na ausência de um projecto para o Centro de Produção do Porto, tudo quanto foi sendo feito foi-o, portanto, consoante foram melhores ou piores as relações estabelecidas entre os interlocutores do centro e da periferia, mas sempre num quadro de dependência no qual prevaleceram as políticas de ocasião. Aparentemente, agora, mantem-se o mesmo registo com a agravante de terem sido criadas expectativas, entretanto, defraudadas.

5. Contudo, a introdução das tecnologias do cabo e do digital, bem como a abertura da televisão aos operadores privados alterou e continua a alterar o panorama do audiovisual, fazendo caducar modelos e processos longamente interiorizados na RTP. Por razões políticas e por razões de cidadania a questão do serviço público assume novos contornos e uma maior relevância. No âmbito das tendências europeias para o audiovisual, há uma identidade e uma cultura a defender e projectar na base de uma diversidade que valoriza o regional, exige a excelência do discurso e prossegue a via da internacionalização.

6. É neste quadro que deve encontrar-se uma solução para o Centro de Produção do Porto, de tal modo que o seu estatuto de dependência crónica seja revisto e transformado num estatuto de parceria e complementaridade no âmbito da RTP. Essa revisão não deve, no entanto, ser feita a partir de um registo de cedências ou reivindicações, antes deve ser encarado como uma necessidade do serviço público no seu conjunto, por forma a exponenciar as mais-valias da sua componente regional.

7. Para tanto é fundamental disponibilizar tempo de antena não apenas em função de uma revisão dos critérios editoriais da RTP, mas também de modo a tirar partido do universo de segmentação e de especialização associado às tecnologias do cabo e do digital, cuja implementação está em curso. O facto de o Porto ser Capital Europeia da Cultura no ano 2001 cria condições excepcionais para se repensar a RTP/Porto em termos de actualização e modernização dos serviços que presta, os quais só adquirem relevância a partir do entendimento do princípio segundo o qual o regional é a base do universal.

8. Com efeito, as tendências europeias apontam cada vez mais para uma valorização do local e do regional enquanto elementos diferenciadores da realidade mosaico que é a Europa. Nesse contexto, a Europa das Regiões, através de um cada vez maior número de operadores de televisão, públicos e privados, procura dar-se a conhecer justamente em função dos produtos simbólicos capazes de assegurar a visibilidade indutora da unidade no respeito pelas diferenças.

9. Essa visibilidade requer, entretanto, uma capacidade de discurso sofisticada, ou seja, um saber fazer actualizado tanto no âmbito da Informação quanto dos Programas, pois só através da qualidade se perspectiva o acesso à rede de distribuição facultada pelos diversos canais existentes. Para tanto é requerida, por um lado, a originalidade dos conteúdos e o domínio das linguagens e, por outro, a exigência de quadros altamente qualificados.

10. A originalidade dos conteúdos encontra-se no que é genuinamente português e, neste caso, no que é genuinamente do Porto e do Norte, evitando-se, embora, cair no folclorismo que é o destino de muitas e boas intenções. O domínio das linguagens passa por uma revisão de processos até agora tidos como indiscutíveis, mas, na verdade, obsoletos, e por acções de formação visando a excelência do discurso, bem como a elevação do nível médio do conjunto dos profissionais.

11. Neste contexto, o Porto Capital Europeia da cultura no ano 2001 propõe-se lançar um conjunto de iniciativas de carácter estruturante a partir do qual possa inventar-se um futuro para a produção audiovisual e multimédia do Norte do País, assente na reformulação da capacidade instalada no Centro de Produção do Porto, de modo a integrá-lo, numa lógica de serviço público e no quadro da RTP, num mapa europeu que, cada vez mais, promovendo a visibilidade do regional, acolhe a diferença como elemento gerador de uma dinâmica plurifacetada de unidade.

12. Para tanto, assume-se como princípio orientador a necessidade de valorizar a componente regional da RTP conferindo ao Centro de Produção do Porto um estatuto e grau de autonomia que lhe permita desempenhar uma função de eixo estruturador e de apoio à produção do sector do audiovisual e multimédia no norte do País. Este objectivo genérico exige o reconhecimento, por parte da RTP, das vantagens globais dos caminhos apontados, bem como o prosseguimento de uma política cautelosa e faseada, sustentada por um calendário exequível, e orientada pela necessidade de evitar rupturas traumáticas com processos longamente interiorizados. Tratar-se-á de um projecto mobilizador que não marginaliza quem quer que seja e que, pelo contrário, aponta um rumo a uma casa desorientada e crescentemente preocupada com o futuro.

13. Numa primeira fase, e tendo em linha de conta o evento Porto Capital Europeia da Cultura no ano 2001, poder-se-iam mobilizar meios conducentes à concretização de um projecto de visibilidade da cidade do Porto, da sua área metropolitana e dos seus protagonistas, quer em termos nacionais, quer em termos internacionais. Nesse sentido, poder-se-iam propor intervenções tanto no âmbito da Informação, quanto dos Programas, em qualquer dos casos sustentadas por acções que conjugassem o fazer e o saber fazer, ou seja, que possibilitassem aprender à medida em que se fosse fazendo. Para tal, far-se-iam acções de formação, de parceria com a Universidade, sobretudo no caso da Informação, e co-produções, no caso dos Programas, chamando a participar técnicos e criadores especializados, de acordo com os géneros propostos, provenientes de estações reconhecidamente mais preparadas. As acções de formação seriam sempre orientadas tendo em vista a excelência do discurso indispensável à internacionalização dos produtos. Concomitantemente, caminhar-se-ia no sentido do estabelecimento de um media parque, sob controle da RTP, com objectivos  diversificados e pensado em termos de apoio aos criadores no pressuposto da assumpção do serviço público como agente regulador da componente decisiva da visibilidade que é o audiovisual.

14. A exequiblidade deste projecto exige, desde logo, a garantia de disponibilização de antena. A nível interno, haveria que garantir o compromisso da RTP de facultar espaços nos seus diversos canais RTP1, RTP2, RTPi e RTP África podendo, inclusivamente, pensar-se em algo de semelhante, salvaguardadas as proporções, ao que foi feito com a Tele-Expo, em Lisboa. Contudo, pensar apenas nestes termos seria limitativo e não corresponderia à nova realidade da televisão segmentada e especializada. Na verdade, haveria que estudar o aproveitamento quer do cabo, e nomeadamente da anunciada TV-Porto, quer dos diversos canais temáticos, e ainda, as possibilidades de cooperação com estações do eixo Atlântico de âmbito local e regional, beneficiando dos programas europeus de apoio à produção audiovisual. A RTP, no seu conjunto, e a TV-Porto, teriam ainda de rever os seus módulos, sobretudo na área da Informação, por forma a ajustá-los aos módulos praticados pelas televisões regionais europeias, pois só assim poderia assegurar-se a colocação dos produtos. A título de exemplo, entre nós, não se fazem magazines integrando reportagens de média duração, os quais são exibidos regularmente um pouco por toda a Europa constante do CIRCOM (organismo que reune as televisões regionais e do qual, de resto, a RTP faz parte).

15. Enunciam-se, em seguida, sem carácter exaustivo, algumas das iniciativas cujo prosseguimento até 2001 permitiriam, por um lado, projectar o Porto capital europeia da Cultura e, por outro, construir os alicerces de um novo sector audiovisual e multimédia de implantação regional concebido com base no serviço público:

- ganhar a RTP para este projecto;
- acelerar a institucionalização do media parque;
- negociar, no plano interno, com todos os operadores, público e privados, a   disponibilização de antena;
- negociar com canais internacionais de prestígio a presença da cidade do Porto e do norte, bem como dos seus protagonistas, nas respectivas programações;
- fomentar, através de encomendas, quer ao sector público quer ao sector privado, a produção dos géneros televisivos mais adequados aos objectivos propostos;
- valorizar as co-produções;
- fomentar o documentário enquanto género de crescimento exponencial no contexto da televisão segmentada;
- reforçar a participação da RTP no CIRCOM;
- explorar os benefícios dos programas europeus para o audiovisual, nomeadamente os respeitantes às televisões transfronteiriças;
- fomentar acções de formação, atraindo técnicos e especialistas estrangeiros, em colaboração com a Escola Superior de Jornalismo do Porto e a Universidade Católica  (eventualmente outras), de modo a promover a indispensável institucionalização das relações entre o meio profissional e a Universidade;
- criar um fundo destinado a bolseiros na área das Ciências da Informação e da Comunicação para efeito de pós-graduações ao nível de mestrados e doutoramentos cuja temática se inscreva nos objectivos propostos, nomeadamente de relançar o Porto e o Norte do País como entidade produtora do audiovisual e multimédia;
- promover um festival internacional de jornalismo de imagens, beneficiando de experiências em curso em países europeus, que projecte a cidade do Porto e contribua para recuperar uma tradição (Paz dos Reis, Invicta Filmes, Manuel de Oliveira, etc.) que, entretanto, se foi diluindo;
- estabelecer protocolos com a cidade de Roterdão por forma a potenciar a produção e difusão de produtos audiovisuais e multimédia;
- articular o conjunto do projecto audiovisual com uma estratégia de comunicação assente numa campanha de markting e relações públicas que garanta uma visibilidade mediática em permanência à cidade do Porto.

16. A concretização deste projecto só é exequível a partir de uma manifestação de inequívoca vontade política de o levar a cabo e exige meios avultados e quadros qualificados.

17. Tratando-se de um projecto de futuro, pensado em função das mutações profundas pelas quais passa o audiovisual, dele poderão tirar proveito todos os interessados e, em particular, a RTP, a qual, ou assume o risco da mudança do Centro de Produção do Porto, em termos de serviço público, num grande centro regional com projecção nacional e internacional, ou arrisca transformá-lo numa mera delegação com prejuízo das pessoas e esbanjamento de meios, incompreensíveis num sector cujo crescimento em termos europeus se perspectiva de modo exponencial.

Porto, 10 Setembro de 1999
                                                                                                   
                                                                                           
                                                                                                                     Jorge Campos




CIMEIRA IBERO – AMERICANA

JORNALISMO E GLOBALIZAÇÃO

Procura, oferta e excesso de oferta informativa.
Oa desafios para uma informação livre, plural e verdadeira


Ser Universal sendo Regional

É inevitável que num encontro como este se venha falar, uma vez mais, da Aldeia Global. Também eu irei fazê-lo, ainda que a contra gosto e, desde já me penitencio do facto.

Não gosto especialmente da expressão, apesar de lhe reconhecer valor instrumental. Serve ela para dar conta de uma particular realidade resultante da explosão das tecnologias da comunicação, em função das quais o mundo se tornou mais pequeno, posto que, agora, pelo menos no campo das hipóteses, os povos da Terra recuperam ou estão em vias de recuperar a tradição da tribo primitiva. Essa oralidade imediata, bem com a visão em permanência a ela associada do que vai pelos quatro cantos do mundo, facultadas, uma e outra, pela electrónica, pelo digital e pelas plataformas geo-estacionários, parece exprimir, em si mesma, um universo de comunicação global capaz de promover consensos à escala planetária.

Sabemos que não é assim. Tinha razão MacLuhan ao sugerir a capacidade das novas tecnologias da comunicação de promoverem mutações civilizacionais, em profundidade, e não se enganou ao proclamar novas modalidades de percepção induzidas pelos media electrónicos. Mas não lhe ocorreu, porque não pôde ou porque não quis, que os media são portadores de discursos e que todo o discurso é construído em função de estratégias de persuasão. Por isso, a lógica da comunicação é, em si mesma, uma lógica de domínio. Por isso, também, as comunicações e os sectores a elas associadas são áreas de intervenção estratégica por parte dos governos dos diferentes países.

Em 1979, no relatório McBride elaborado para a Unesco, afirmava-se:

“No campo da comunicação, o problema de hoje e do futuro imediato, é utilizar as possibilidades realmente existentes, mas que, todavia, são negadas à maioria da população do mundo. Os sectores produtivos da sociedade dependerão cada vez mais de uma organização do trabalho inteligentemente programada, da compreensão, da experiência e da utilização da informação, onde e quando for necessária. Se a penúria dos recursos alimentares, da energia e das numerosas matérias primas é um tema que suscita inquietação, já os recursos da informação aumentam constantemente; à escassez que caracterizou a história precedente, sucede a abundância. O mundo dos anos 80 em diante será o da oportunidade de apreendê-los”.

É sabida a controvérsia aberta pelo relatório McBride e a oposição que suscitou junto das nações mais poderosas, e em particular dos Estados Unidos. Contudo, o relatório contribuiu para agitar as consciências, deixando claro que forjar um futuro melhor para os homens e mulheres do planeta não depende essencialmente do progresso técnico, mas sim das respostas que cada sociedade for capaz de dar sobre o que, política e conceptualmente, fundamenta o desenvolvimento. Hoje, sabemos mais. Sabemos que saber utilizar a informação a partir do universo de entropia entretanto generalizado é fundamental para o desenvolvimento

Na Europa, entendemos hoje o desenvolvimento como um percurso para formas avançadas de democracia. Esse percurso, porém, é sinuoso e contraditório. Acreditamos que os desafios de uma informação que se pretende livre, plural e verdadeira vão no sentido de contribuir para o debate e o esclarecimento das questões fundamentais do nosso tempo. Sustentamos a vigilância crítica dos nossos meios de comunicação enquanto elementos correctores de abusos e disfuncionalidades. Mas sabemos dos abismos por vezes existentes entre a realidade e os propósitos enunciados. Não desconhecemos a lógica dos lobbies. Nem sempre conseguimos evitar cair na armadilha dos pseudo eventos . Voluntária ou involuntariamente cedemos perante grupos de pressão. Eventualmente, contribuímos para vedetizar a vida política, banalizando as ideias e promovendo o espectáculo. Em nome da eficácia administrativa, do número de vendas ou das tabelas de audiências conferimos notoriedade ao fait-divers e aos seus actores. Nem sempre resistimos à revelação das dimensões de um pénis presidencial…

Ao dizer isto, digo-o naturalmente a pensar naqueles que estão preocupados com o bom jornalismo e que no complexo mundo mediático dos nossos dias procuram encontrar soluções para problemas com os quais nos defrontamos todos os dias. No meu caso, é natural que preste alguma atenção à televisão.

Se os anos 80, na Europa, foram, de um modo geral, anos de desregulamentação e da abertura da televisão aos operadores privados, a verdade é que, por essa altura, se começaram, também a fazer sentir os efeitos de uma nova revolução no âmbito do audiovisual. Os sinais dessa revolução chegavam dos Estados Unidos embora, de início, não se lhes prestasse grande atenção.

Em 1979, por sinal o ano da divulgação do relatório McBride, as três majors americanas – CBS, ABC e NBC – concentravam, em conjunto, 91% da audiência televisiva. Dois anos mais tarde, esse indicador caía para 85% e em 1983 para 81%. Em 1990, CBS, ABC e NBC, em conjunto, já estavam abaixo da fasquia dos 60% de audiência. Ou seja, em pouco mais de dez anos, verificava-se uma profunda mudança de hábitos do público americano, impensável para quem tinha concepções imobilistas associadas às performances das televisões generalistas. As razões para esta quebra, que, de resto, continua a verificar-se um pouco por todo o lado, prendem-se, naturalmente, com a evolução das tecnologias da informação, da comunicação e das telecomunicações.

Se a tendência para a retracção das televisões generalistas parece universal, não quero com isto dizer, no entanto, que elas estejam em vias de extinção. Não estão. Contudo, é evidente que a disseminação do cabo, frequentemente interagindo com os satélites geoestacionários e com as plataformas digitais, está a fazer crescer exponencialmente uma oferta televisiva segmentada, temática, especializada e interactiva. Estamos, portanto, num mundo em mutação acelerada, no qual os diversos actores são obrigados a promover parcerias estratégicas conducentes às indispensáveis actualizações e ajustamentos. A começar pelo serviço público.

Sabemos da crise que atravessa a maioria dos serviços públicos de televisão europeus. Todos eles procederam e procedem a revisões em termos de objectivos de modo a procurar acompanhar os novos tempos. Uns mais, outros menos. Mas todos eles, em maior ou menor grau, convocam a sensação estranha de estarem a olhar o mundo pelo retrovisor. A expressão, uma vez mais é de MacLhuan. Utilizou-a ele para evidenciar a incompatibilidade da aplicação dos critérios da Galáxia de Guttemberg à Galáxia de Marconi. A metáfora, naturalmente, é tão controversa quanto o é o MacLuhanismo no seu conjunto. Mas nem por isso deixa de fazer sentido quando, confrontados com uma nova revolução tecnológica, os serviços públicos reagem conservadoramente, amarrados, em maior ou menor grau, à tradição dos primeiros 40 anos da televisão, durante os quais se foram transformando numa espécie de aparelhos ideológicos do estado, aparentemente incapazes de encarar o futuro.

Ora a verdade é que os dias do monopólio acabaram. Como se sabe, numa primeira fase a luta pelas audiências promoveu situações de mimetismo entre estações públicas e privadas. Os géneros esgotaram-se em meia dúzia de receitas. Aqui e ali, a Informação não desdenhou nem a dramatização gratuita, nem o espectáculo pelo espectáculo. O nivelamento fez-se por baixo. Mas, numa segunda fase, que é aquela que agora estamos a encetar, persistir nas rotinas do passado, ou seja ver o mundo pelo retrovisor, é pouco menos do que um suícidio anunciado.

Porque afinal, a aldeia global, que parecia ter tornado o mundo mais pequeno, promoveu dentro de si própria uma inversão de rumo e, agora, o mundo está cada vez maior, nunca foi tão grande porque há cada vez mais para dizer e cada vez mais gente a reclamar fazer-se ouvir. A multiplicação da oferta televisiva, a sua diversidade e crescente especialização, indiciam, por outro lado, um novo tipo de espectador, um espectador selectivo, distante do heavy-viewer da televisão generalista. Esse novo espectador tenderá a ser, também, cada vez mais interactivo. E a segmentação vai promover, inevitavelmente, uma revolução nas linguagens.

Por outro lado, a televisão segmentada permite alargar os caminhos da democracia no sentido em que pode e vai, inevitavelmente, promover a visibilidade do local e do regional. Mas o local e o regional que se cuidem com as fórmulas folcloristas exibidas com demasiada frequência quando tuteladss por poderes centralizadores. Durante anos, é bom lembrá-lo, a televisão integrou de forma corporativa as culturas regionais espartilhando-as nos seus módulos estabelecidos e reconvertendo-as à exigências discursivas supostamente exigidas pelo medium. Os prejuízos culturais, estéticos, sociais ou de tudo aquilo que era genuinamente autêntico, foram incalculáveis. Portanto, será de elementar prudência procurar evitar transferir procedimentos obsoletos e figurinos caducados das televisões de broadcast, para as novas modalidades televisivas. Importa, sim, explorar fórmulas, porventura experimentais, ajustadas à revelação de realidades cuja autenticidade permite reconhcer o universal naquilo que é local e regional. A meu ver, aliás, se a superação da crise de identidade que um pouco por todo o lado, atinge o serviço público passa pela substituição de uma pedagogia dos consumos por uma pedagogia da cidadania, passa, igualmente, pela revalorização da sua componente regional. De resto, no âmbito das tendências europeias para o audiovisual privilegia-se, hoje, uma diversidade que valoriza o regional, exige a excelência do discurso e prossegue a via da internacionalização

Eu creio que este é um dos grandes desafios que se põem, hoje, aos jornalistas, ou seja, serem capazes de reflectir sobre um mundo em mudança vertigionosa, de modo a adequarem os seus procedimentos aos novos tempos. Para tanto, parece-me indispensável dar prioriodade à Educação, de modo a preparar quadros altamente qualificados, bem como reforçar a ligação das empresas de Comunicação Social às Universidades. A aprendizagem de um jornalista é, aliás, um processo permanente e bom seria, por outro lado, que nas escolas, desde muito cedo, as crianças começassem a aprender a relacionar-se com toda a panóplia de media e multimedia. Importa, por outro lado, desenvolver a pesquisa sobre os mass-media, de forma a que os dados apurados possam beneficiar quer as empresas, quer todos aqueles a quem compete a definição de políticas de comunicação social. Importa finalmente, incentivar junto dos jornalistas ou candidatos a jornalistas, uma cultura dos media exigente no domínio das respectivas linguagens e inflexível no que ao código de conduta diz respeito.

Termino regressando à televisão. Todos os países desenvolvidos reconhecem o papel da televisão nas suas relações com a indústria electrónica, bem como o papel decisivo desta última no progresso das novas tecnologias. Por isso, a maioria dos países desenvolve projectos de televisão em correspondência com planos de expansão das suas indústrias electrónica e das comunicações. Neste contexto, o serviço público prescinde de muitas das prerrogativas do passado, mas assume outras, nomeadamente aquelas que, no âmbito das políticas definidas lhe confere um papel estruturador do sector do audiovisual. Como vimos, o relatório McBride ao interrogar-se, política e conceptualmente, sobre o significado do desenvolvimento, adiantava que a partir dos anos 80 o mundo teria oportunidade de se apropriar das novas Tecnologias da comunicação para as usar em benefício próprio. MacLuhan, apesar das suas intuições notáveis e dos seus aforismos argutos, enganou-se muitas vezes nas suas profecias a respeito da Aldeia Global. O meio não é a mensagem. Pode ser que McBride tenha sorte diferente e a humanidade cumpra com a sua obrigação de utilizar os meios disponíveis de modo a ser ela mesma a determinar o seu próprio destino. Se assim não for, e pode não ser, apesar das possibilidades em aberto, não é impossível que venha a constituir-se um imenso proletariado cultural, como lhe chamou Eco, consequente da divisão dos homens em duas categorias: com ou sem acesso à informação.

Porto, 14 de Outubro de 1998

                                                                                        Jorge Campos 















 
  





















Sem comentários:

Enviar um comentário