cinema documental


Regresso ao Real Imaginado

por Jorge Campos



Il est banal de dire que la mémoire est menteuse, il est plus intéressant de voir dans ce mensonge une forme de protection naturelle qu’on peut gouverner et modeler. Quelquefois, cela s’appelle l’art Immemory - chris marker

A pesquisa institucional sobre o documentário tem vindo a alargar o escopo dos seus interesses, ou retomando caminhos já prosseguidos, mas depois abandonados, ou encetando outros não confinados apenas ao universo do cinema. Este interesse renovado e transversal produz efeitos a vários níveis, seja aprofundando ou encarando sob novas perspectivas os aspectos mais conhecidos e amplamente tratados pelas teorias do cinema, seja investigando modalidades narrativas emergentes do campo dos media, de modo a estabelecer uma rede de relações na qual é ainda possível identificar questões apenas sumariamente agendadas ou precariamente resolvidas. Para tanto, reclama-se a função moderadora da historicidade, a qual permite avançar gradualmente na identificação dos diferentes modos de documentários, no pressuposto de que a lógica das imagens e a ordem do cinema, mesmo se encaradas numa perspectiva integrada de sistemas de significação, jamais poderão estar ausentes. Questionando as corruptelas da televisão e construindo argumentos sobre o mundo histórico o documentário, cuja diversidade permite veicular livremente visões do mundo ancoradas em compromissos de ordem ética, informativa e estética, surge, nesse contexto, como garantia do real imaginado em função do qual ganha corpo a possibilidade de organizar a memória prospectivamente.

Historicidade

Patrício Guzmán, autor de filmes como A Batalha do Chile (1973) e Salvador Allende (2004), disse um dia que o documentário é o álbum de família de um povo. Essa expressão, pela carga simbólica nela investida, justificaria só por si uma descriminação positiva: tomado à letra, o álbum de família promove a identidade de quem somos e, ao fazê-lo, estabelece pontes para uma visão actualizada da História. Numa época em que a lógica mediática reside no efémero, o documentário surge como um poderoso instrumento de preservação da memória ou, se preferirmos, como um lugar de reencontro dos homens com a sua condição e a sua circunstância. Todo o século XX pode, aliás, ser dado a conhecer através do documentário e todo o presente pode ser imaginado, reinterpretado ou simplesmente reconhecido através dele porque nele reside o potencial de utopia que, permitindo a revelação, gera conhecimento. Daí o interesse renovado em torno das suas múltiplas manifestações, sobretudo agora, quando devido a uma crise global cujo epicentro económico-financeiro está iniludivelmente ligado às indústrias da evasão, ganha força, no plano simbólico, a reclamação de um regresso ao real.

O entendimento deste regresso ao real – num contexto em que o discurso televisivo ideologicamente dominante vacila e se mostra, de um modo geral, incapaz de dar resposta aos problemas do nosso tempo – exige a presença da historicidade articulada com a abordagem sumária de uma antinomia central da teoria do documentário que é aquela que releva do campo da arte, por um lado, e da esfera da reportagem, por outro. Seguindo este método, o qual não dispensa algumas derivas tidas por esclarecedoras, o documentário será sempre entendido enquanto argumento sobre o mundo histórico. E, como tal, parafraseando Chris Marker, ficará claro que, hoje mais do que nunca, para ser um lugar habitável, o mundo precisa de ser imaginado.

Para se entender este postulado devemos salientar, em primeiro lugar, que o confronto com a historicidade, ou seja situar o documentário no seu tempo, permite elucidar o movimento pendular em torno da retórica e da poética uma vez que recolhendo subsídios de cada época nos é permitido desenhar um quadro dinâmico a partir do qual melhor possa entender-se a relação com a actualidade, território, aliás, comum à reportagem, o que está longe de ser uma questão menor. Com efeito, os paradigmas do mundo das notícias sempre contribuíram para redefinir o quadro de expectativas dos receptores na sua relação simbólica com o real. Invocando Jean Thévenot, André Bazin, por exemplo, ao referir-se à génese do documentário fala do “filme de grande reportagem” e acrescenta como elemento importante dos critérios de verosimilhança o facto de a partir do final da II Guerra Mundial, com a disseminação dos media, o público exigir acreditar no que vê, uma vez que “a sua confiança é controlada por outros meios de informação: a rádio, o livro e a imprensa (Bazin: 1992)”. Esse processo, evidentemente, acentuou-se com a chegada da televisão.

Em segundo lugar é necessário admitir que do ponto de vista teórico há sempre a possibilidade de abordar a antinomia arte/ reportagem em função de dois enfoques distintos. Falando de arte, falamos de Cinema. Falando de reportagem, falamos de Jornalismo. Porém, quando hoje se fala do documentário, a cada passo nos defrontamos com uma rede de relações que rompe com as tentativas de sistematização exclusivamente centradas num ou noutro enfoque. Vejamos a seguinte deriva. Se, por absurdo, o cinema tivesse acabado antes do advento do som, tudo seria mais simples uma vez que a arte do cinema tinha atingido a plenitude com a conquista de uma linguagem exclusivamente visual e, por extensão, com a afirmação de um pensamento puramente visual. Assim não sucedeu. A partir do advento do som, a palavra, no dizer de René Clair, ameaçou o cinema de se transformar num gramofone com imagens. Cedo algo de semelhante se verificou em newsreels como March of Time influenciando figuras tutelares do documentário como John Grierson que em diferentes ocasiões disse uma coisa e o seu contrário. Tanto falou no tratamento criativo da actualidade quanto afirmou que, desde o início, o movimento documentarista foi essencialmente anti-estético. Disse mais: a ideia de documentário, tal como ele tinha sido levado a pensá-la, não era o produto de nenhuma escola de cinema, mas do pensamento da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Chicago nos anos 20 do século passado. Por aqui logo se entende o valor instrumental da historicidade, pelo que todo o documentarista deveria ter noção quer da História do documentário quer do debate teórico dela indissociável.

Como se sabe, o uso da palavra documentário para qualificar um determinado tipo de filme é atribuído a John Grierson que, em 1926, se referiu a Moana (1926) de Robert Flaherty como tendo valor documental. Havendo indícios de Edward S. Curtis ter aludido ao filme documentário muito antes, por volta de 1915, quando fez The Land of the War Canoes (1914), o qual, aliás, antecipa muitos dos procedimentos posteriores de Flaherty em Nanook of the North (1922), a verdade é que foi a famosa expressão tratamento criativo da actualidade utilizada por Grierson, em 1927, que daí em diante enquadrou os primeiros debates sobre o documentário.

O cinema documental, contudo, é anterior a essa formulação e aparece amiúde associado a intuitos informativos e de propaganda como no caso de Dziga Vertov, o responsável pelos jornais cinematográficos soviéticos após a revolução bolchevique. As suas teses do Cine-Olho deram corpo a narrativas que associam o registo da actualidade a uma experimentação da qual alguns números de Kino-Pravda constituem exemplos. Mas, Kino-Pravda o que é? Cinema? Jornalismo? Na verdade, o Cine-Olho é tanto uma teoria como uma prática e assenta no pressuposto de que o cinema permite ver “outra coisa”, ou seja, é encarado como uma possibilidade de intervenção sobre o real de modo a interromper a naturalidade do fluxo das suas aparências e a revelar-lhe os movimentos de fundo. Kino-Pravda, sendo um jornal, obedecia a esses mesmos propósitos. O Homem da Câmara de Filmar (1929) é o pináculo dessa utopia radical.

E o que é Nanook of the North? Enquanto filme histórico-naturalista oferece ao espectador a ilusão de estar perante os acontecimentos narrados, os quais passam a habitar o seu imaginário como prova de verdade. Construído a partir de proposições lógicas, Nanook induz uma leitura única da história que conta, a qual resulta, naturalmente, de um ponto de vista correspondente à representação individual de um modo de ver. Flaherty, o mais improvável dos repórteres, visto que nele tudo é encenação, ainda assim faz “reportagem”, na medida em que reportar é dar conta de algo ou de alguém, neste caso da vida de Nanook, enquanto símbolo da vida dos esquimós,

Metamorfoses do real – Arte e Reportagem

Em qualquer dos casos coloca-se, naturalmente, o problema da narrativa. Toda a narrativa é construção, e toda a construção é encenação. O documentário, exigindo a organização dos seus signos, é uma construção. Tratar-se-á, ainda assim, de uma construção diferente daquela que serve a reportagem e, sobretudo a ficção, com a qual, aliás, o documentário divide áreas de luz e sombra. Por exemplo, o documentário também dispõe de cenários. Serão cenários naturais dispensando, portanto, a complexidade de elaboração associada ao cinema de estúdio, mas nem por isso deixam de ser cenários e de cumprir uma função enquanto tal. O documentário, em princípio, prescinde de actores profissionais recolhendo da autenticidade das suas personagens uma das suas razões de ser. Mas, tudo se complica quando nos interrogamos sobre o que é o actor e nos deparamos com comportamentos da vida real, os quais, devido à presença de uma câmara, adquirem evidências ou promovem ocultações que de outro modo não se manifestariam. Os exemplos poderiam prosseguir porventura indeterminadamente – um sinal da vitalidade do documentário de cinema.

Seguindo esta linha de argumentação, num discurso habitualmente conotado com expressões como verdade, realidade e objectividade todos os paradoxos são possíveis. Da fase da pesquisa à ética da rodagem, da técnica da entrevista à estética da montagem, qualquer que seja o domínio sob observação, é sempre inevitável deparar com um conjunto complexo de operações a partir do qual se opera a metamorfose do real em realidade.

Sucede algo de semelhante no campo do jornalismo. Se por real entendermos a vida em estado bruto, digamos assim, tal qual se passa à nossa volta, por realidade entenderemos um particular entendimento desse real em função dos códigos interpretativos pertencentes a uma determinada linguagem. É, pois, a linguagem que permite operar essa metamorfose. E é nesse sentido, também, que os acontecimentos deixam de pertencer ao domínio do real para entrarem no domínio da realidade, a partir do momento, portanto, em que se transformam em notícias. As notícias, pertencendo ao universo dos signos e dos valores simbólicos, contribuem para a formação da imagem que a sociedade tem de si mesma. Como tal, essa imagem é uma realidade construída e não, como pretendem os defensores da objectividade pura, nem um espelho do mundo, nem uma janela para o mundo. Diz Gomis que “nem o espelho nem a janela, enquanto metáforas, têm em linha de conta a mediação da linguagem que é fundamental para o entendimento dos meios de comunicação (Gomis: 1991)”. Explicar como funciona o jornalismo será, então, explicar como se forma o presente de uma sociedade.

Esse presente interpretado em nome dos critérios jornalísticos é, todavia, difuso e comporta construções informativas a vários níveis. Num primeiro momento, as notícias cumprem uma função de actualização de conhecimentos de modo a dotar os destinatários de informações úteis ao seu relacionamento imediato com o mundo. Esse conhecimento, porém, só ganha uma ressonância prospectiva a partir do momento em que se amplia e dá lugar à reflexão e à interpretação através do recurso a outros géneros jornalísticos. É o caso, por exemplo, do comentário, o qual, mais do que a notícia permite configurar a dinâmica da actualidade, projectando-a para além do presente imediato. Na verdade, o presente é o que se comenta e as notícias são tanto mais notícias quanto mais perduram, ou seja, quanto mais são comentadas.

Também o documentário interpreta e comenta o real. Quando Paul Rotha afirma que ele deve reflectir sobre os problemas do presente, no fundo, está a dizer isso mesmo. Poder-se-ia, portanto, suscitar a questão de saber até que ponto é legítimo ao documentário recorrer no todo ou em parte à ordem reguladora prescrita pelo jornalismo. Grierson, ao fazer a distinção de duas categorias de filmes vinculados ao real, a superior e a inferior, de algum modo parece rejeitar essa possibilidade. Para ele o documentário é exclusivo da primeira categoria visto que os filmes incluídos na categoria inferior “não dramatizam, limitando-se à mera descrição ou exposição de factos”. Contudo, o mesmo Grierson que aqui se coloca do lado da poética não enjeitou ser consultor em Londres de March of Time e produziu, durante a guerra, no Canadá, World in Action, um jornal de actualidades cinematográficas. Aliás, parte da produção do movimento documentarista britânico foi essencialmente jornalística e tal aconteceu tanto por razões de ordem tecnológica quanto de ordem política e de propaganda.

Será então indiferente que as coisas se passem de uma maneira ou de outra? Muito pelo contrário. Vivendo em permanente confronto com a historicidade o documentário pode ser encarado como uma série de transformações. À semelhança das notícias contribui para a formação da imagem que a sociedade tem de si mesma. Tal como o comentário e a crónica adquire um valor monumental para o futuro mas, na medida em que pode ser utilizado recorrentemente e autoriza leituras das quais não se ausenta, antes se afirma, o prazer do texto, eleva-se a um outro patamar requerente da imaginação criadora indissociável da capacidade de construir argumentos sobre o mundo histórico e, como tal, exigindo a singularidade do ponto de vista. São esses os documentários que permitem ler o mundo justamente porque nos dão a ver um real imaginado. Podemos concordar ou discordar. Mas sabemos ao que vamos porque no contrato celebrado entre autor e destinatário há uma cláusula de segurança segundo a qual a verdade transportada para o ecrã é a verdade do autor. A nossa será outra, ou não. Assim é o documentário de cinema: Être et Avoir de Philibert, Nuit et Brouillard de Resnais, Basic Training de Wiseman, Le Joli Mais de Marker, Vacances du Cinéaste de Van Der Keuken, Cabra Marcado para Morrer de Coutinho, Les Plages de Agnés de Varda, Phillips Radio de Joris Ivens, Porto da Minha Infância de Oliveira, Diary for Timothy de Jennings e tantos, tantos outros, todos eles portadores de um olhar fundador simultaneamente agente de mudança criativa e garante de uma memória sem a qual o homem prescinde do entendimento do presente e mergulha na deriva de um quotidiano sem futuro.

Televisão

O corpo a corpo com o real inscreve-se, no entanto, num campo discursivo mais vasto sobre o qual é igualmente necessário reflectir posto que resulta de múltiplas declinações. Voltemos então à televisão e à controvérsia em seu redor. Há quem, como Mander, discuta a possibilidade de haver vida inteligente na televisão, como há quem, como Popper e Condry, a considere como uma ameaça para a democracia. Há inúmeros textos relevando os aspectos manipulatórios do discurso televisivo, estabelecendo-se, nomeadamente, uma antinomia entre a razão e a emoção, sendo esta última encarada como indutora de fenómenos de hipnose, entorpecimento e fascinação. Muitos desses textos partem até de premissas e querelas aparentemente desligadas da matéria que nos ocupa, mas acabam por condicionar a sua abordagem. Por exemplo, o contraditório eventualmente existente entre a Imprensa e a Televisão. A racionalidade estaria no lugar da palavra escrita e do pensamento lógico a ela associado; a emoção, a sensação e a irracionalidade no lugar das imagens electrónicas.

Terrível anátema, prognóstico sombrio: a sociedade da imagem, alertaram os pessimistas, incorre no risco de promover um novo totalitarismo. McLuhan desvalorizou a questão sublinhando a incompatibilidade do pensamento linear da Galáxia de Gutenberg com a nova ordem sensorial da Galáxia de Marconi: é como olhar o mundo pelo retrovisor, disse ele. Em contrapartida, Umberto Eco, reflectindo sobre a cultura de massas, advertiu que o futuro da democracia passava pela capacidade de transformar a linguagem da imagem num estímulo à reflexão e não num convite à hipnose. Uma controvérsia de contornos semelhantes ocorre muitas vezes quando se opõe cinema e televisão: a razão, a revelação, a arte, do lado do cinema; a confusão, a vulgaridade, o lixo, do lado da televisão. Quem não se lembra do célebre aforismo de Godard: o cinema é a memória, a televisão o esquecimento. Perguntar-se-á: mas que cinema e que televisão? Não iremos por aí, mas vamos por partes.

A televisão teve um impacto indiscutível sobre o documentário a ponto de no Reino Unido estudos académicos terem identificado dezenas de tipos de “documentários de televisão”, cujo denominador comum seria a existência de um qualquer vínculo ao real. A favor desta proliferação surgiram argumentos relevando a bondade de soluções que teriam permitido encontrar um ponto de equilíbrio face à controvérsia da identificação das narrativas, de modo a promover, dentro de parâmetros aceitáveis, a convivência e transversalidade dos diferentes modos de significar. Contra esta leitura optimista e, porventura, não inteiramente desinteressada, poder-se-ia invocar o facto de muitas dessas abordagens pouco ou nada terem em comum com a tradição do filme documentário, nem sequer da tradição do melhor documentário jornalístico de televisão, resultando simplesmente de meras estratégias casuísticas dos operadores competindo por audiências.

Em todo o caso, parece evidente que a televisão, pelo seu imediatismo e alegadamente devido à sua natureza, encontrou no jornalismo a expressão aparentemente mais ajustada ao seu modo peculiar de dar a ver o mundo. Por essa razão, as rotinas produtivas da informação televisiva, em particular da reportagem, afirmaram-se de um modo gradual como elementos legitimadores de um efeito de apropriação do filme documentário, impondo formatos, condicionando o tempo e o modo de dizer e remetendo para a palavra o lugar central de instância reguladora do sentido. Prevalecendo o enunciado do texto sobre a lógica das imagens, abriu-se espaço ao oposto do olhar documentário fundado sobre o primado do sistema de significação da imagem cinematográfica.

Explicitar e compreender este tipo de contaminação exige uma nota adicional e um ou outro comentário. Por via de regra, a reportagem é previsível: texto off, entrevista, repórter em campo assinalando a sua “presença no local”. Em muitos casos, a mediação jornalística é minimal e insere-se numa perspectiva de go between, embora este jornalista mensageiro, tendo capacidade de representação, possa alcançar notoriedade e tornar-se uma espécie de oráculo seja do que for como, ironicamente, demonstrou Alain Woodrow. Concebida para ser exibida num contexto de ruído, tendo de conviver com informações variadas passando ininterruptamente em rodapé, ocupando um espaço saturado de signos, a reportagem tende a tratar os assuntos, por mais sérios que sejam, como fait divers. E fá-lo sem especial preocupação de ordem sígnica ou sintagmática. De acordo com Hartley a necessidade de alcançar o máximo de audiência num medium popular como a televisão obriga o jornalismo a servir dois donos: “info” and “tainment”.

Naturalmente, mesmo na televisão comercial generalista, há gradações no modo como se encara este fenómeno. A fórmula existe mas não quer dizer que seja igualmente aplicada em todas as estações. Tão pouco se pode concluir que os formatos híbridos da televisão sejam necessariamente negativos do ponto de vista do alargamento da esfera pública. E quanto aos canais especializados de notícias, de que a CNN foi pioneira, há até um conjunto de prescrições que a globalização veio legitimar e que basicamente consiste em apresentar as notícias dramaticamente sem, todavia, as transformar em drama, expor os assuntos de forma acessível e compreensível, mas sem exceder a duração de 30 minutos e, tendo embora consciência de que todos os shows de notícias se assemelham, procurar introduzir marcas de diferenciação.

Só que essas diferenças são ténues e dificilmente haverá abertura para sobressaltos criativos eventualmente perturbadores da percepção dos destinatários habituais. A fonte da confusão muito disseminada entre reportagem e documentário passa exactamente por aí, porque se criou um dispositivo estereotipado e rarefeito de representar o mundo através de uma linguagem relativamente arbitrária, ancorada num hibridismo formal oportunista que reclama para si, como elemento de legitimação, a objectividade jornalística. Por isso, para os pragmáticos programadores de televisão os documentários com autoria são quase sempre considerados disfuncionais e, como tal, o melhor é produzir algo de vagamente semelhante sob a responsabilidade de produtores supostamente especialistas no conhecimento e gosto do público ou de jornalistas com notoriedade, também eles, supostamente especialistas em garantir audiências. Ou seja, os documentários devem encarados como programas.

Provavelmente, caso essa tendência dos programadores fosse contrariada, abrir-se-ia o caminho a uma maior e mais interessante variedade de leituras sobre o mundo histórico o que, no caso da televisão de serviço público poderia corresponder a uma nova hipótese legitimadora: a diversificação, permitindo o acesso do público a representações do real à margem dos estereótipos informativos dominantes, seria um passo em frente no domínio do conhecimento dos mecanismos da construção da realidade com benefício para o exercício da cidadania. Tal, porém, com excepção de experiências interessantes na televisão segmentada, dificilmente acontecerá. A televisão não serve para oferecer programas ao público, mas para oferecer público aos anunciantes. Quem o disse foi Berlusconi.

Por estas e outras razões os documentários de televisão – ao contrário do filme documentário sobre o qual há trabalho teórico relevante – continuam a ser objectos mal identificado, ambíguos e até, eventualmente, suspeitos. É difícil estabelecer-lhes os contornos e problemático atribuir-lhes um estatuto de credibilidade em nome da regularidade de uma produção que faz da audiência o seu referencial estruturador. No estádio actual do seu relacionamento com o real o actual modelo de televisão parece, pois, ter chegado a um ponto limite: o mundo é cada vez mais a televisão e a televisão a espuma dos dias.

Dizia o jornalista e documentarista Danny Schechter sobre os serviços informativos das principais networks americanas: the more you see, the less you know. Outros, como Chomsky, simplesmente compararam os grandes conglomerados de media a gigantescas centrais de propaganda. E para James McEnteer o efeito Fox News sobre as grandes corporações produtoras de notícias de televisão na cobertura da guerra do Iraque acabou por desacreditar o sistema no seu conjunto e abrir as portas para uma entrada em cena com um vigor sem precedentes do documentário político. Depois de fazer referência às somas astronómicas conseguidas na bilheteira pelos filmes de Michael Moore Bowling for Columbine e Fahrenheit 9/11 – este último fez 120 milhões de dólares, só nos Estados Unidos, durante o primeiro mês de exibição –, McEnteer lembra que oito dos dez documentários mais rentáveis de sempre nos Estados Unidos foram realizados a partir do ano 2002, e avança a seguinte explicação:

“Há na América uma grande necessidade de compreender o que, na realidade, está a acontecer. Estes filmes vêm dar resposta a essa necessidade. E essa necessidade é tanto mais sentida quanto maior se tornou a concentração da propriedade dos media noticiosos, com as consequências daí decorrentes em termos corporativos e de trivialização das notícias com o afunilamento do espectro informativo. Em vez de inovação e investigação, há repetição e imitação (McEnteer: 2006)”.

Um argumento sobre o mundo histórico

Na sua vertente mais elaborada, ou seja a da filiação cinematográfica, o documentário assenta no reconhecimento de um conjunto de valores de referência cujas premissas podem ser assim resumidas de acordo com o pensamento de Miriam Bratu Hansen:

“O cinema foi o mais singular e expansivo horizonte discursivo no qual os efeitos da modernidade foram reflectidos, rejeitados ou negados, transformados ou negociados. Foi um dos mais claros sintomas da crise pela qual a modernidade se deu a ver, tansformando-se, ao mesmo tempo, num verdadeiro discurso social, através do qual uma grande variedade de grupos humanos se procurou ajustar ao impacto traumático da modernização (Grilo: 2006)”.

Os mecanismos de significação e de construção da narrativa obedecem, naturalmente, a um movimento pendular que oscila em busca da forma mais justa, sendo por isso objecto de constantes mudanças de rumo ditadas quer pela contingência e pelos imprevistos da Esta formulação remete para o álbum de família de Patrício Guzmán. Obviamente, ao filme documentário também não são estranhas as noções de verdade e objectividade, uma e outra fazendo parte do contrato que se estabelece não apenas com o espectador, mas também no complexo processo de negociação envolvendo o cineasta, as suas personagens e uma multiplicidade de instituições. Neste caso, porém, ao exprimir o seu ponto de vista o autor não prescinde de pôr em cena situações e personagens em função da subjectividade decorrente do seu modo peculiar de ler o mundo, naturalmente, escorado em compromissos que são, também, tanto de natureza ética quanto estética. O documentarista constrói a narrativa que entende dever construir e não narrativas pensadas exclusivamente para responder de forma mais ou menos casuística àquilo que se supõe ser o gosto da audiência. Ao proceder desse modo está, de resto, a mostrar o respeito que ao público é devido. Ele diz: eu penso isto, mas deixa implicitamente uma outra pergunta: e vocês?rodagem, quer no processo de montagem onde ocorre uma espécie de revisitação do olhar a partir da qual a estrutura ganha autonomia a ponto de em boa medida se determinar a si própria, impondo determinadas soluções. Como diria um grande pintor português, Nadir Afonso, num filme que fiz sobre ele, as formas tornam- se exigentes. Nesse sentido, a excelência do discurso será um critério superior de exigência. Os argumentos sobre o mundo histórico estão, portanto, sujeitos à intervenção permanente da imaginação criadora. Não são textos redigidos para depois serem meramente ilustrados como sucede na reportagem televisiva.

Em suma, o enorme potencial do filme documentário (e também do filme de não-ficção, para utilizar uma expressão de Plantinga) como forma de negociar valores, veicular informação e dar-nos a conhecer o mundo histórico faz dele, assumidamente,

“(...) um veículo de verdades e enganos, de registo e manipulação, de equilíbrios e ideias e pré-concebidas, de arte e técnica mecânica, de retórica e informação imediata. Os filmes de não-ficção são representações complexas com uma infinita diversidade e multiplicidade de usos. Tal é a sua complexidade retórica e pragmática que para nos aproximarmos deles não basta uma abordagem meramente teórica: a sua compreensão exige a atitude crítica e o recurso à história (Plantinga: 1997)”.

Concluindo, aceitar a inevitabilidade das contradições é um primeiro passo para pensar o documentário em profundidade, o que implica não fechar a porta a lógicas de enunciação criativas sustentadas por gramáticas particulares e em especial pela ordem do cinema. Por isso, neste pujante regresso ao real no início do século XXI é de elementar prudência mais a abertura à diversidade do que a defesa de pontos de vista sistematicamente reiterados numa atitude de resistência. Será esta a posição mais exigente e, também, a mais difícil, porque se obriga a questionar, por um lado, aquilo que na tradição do cinema cristalizou em dogma – uma história que ficará para outra altura – e, por outro, a combater a contaminação sem regras nem princípios de dispositivos televisivos cujos resultados estão à vista e se rejeitam.
 





   I think it is very important that films make people look at what they've forgotten  - Spike Lee

Bibliografia

Bazin, André – O que é o Cinema?, Livros Horizonte, Lisboa, 1992
Campos, Jorge – O Documentário Português à procura do seu tempo, in catálogo Panorama - Mostra do Documentário Português, Videoteca Municipal de Lisboa, Lisboa, 2006
Cloutier, Jean – A Era de EMEREC ou A comunicação audio-script-visual na hora dos self - media, Instituto de Tecnologia Educativa, Lisboa, 1975
Curtin, Michael – Redeeming the Wasteland (Television Documentary and Cold War Politics), Rutgers University Press, New Brunswick, New Jersey, 1995
Eco, Umberto - Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa, 1991
Gomis, Lorenzo – Teoria del Periodismo, Ediciones Paidos, Barcelona, 1991
Grilo, João Mário, O Homem Imaginado (cinema, acção, pensamento), Livros Horizonte, Lisboa, 2006
Kriwaczek, Paul – Documentary For The Small Screen, Focal Press, Oxford, 1997
Mander, Jerry – Quatro argumentos para acabar com a televisão, Antígona, Lisboa, 1999.
McEnteer, James – Shooting the Truth (The Rise of American Political Documentaries), Praeger, Westport, Conneticut, London, 2006
Penafria, Manuela – O Filme Documentário (História, Identidade, Tecnologia), Edições Cosmos, Lisboa, 1999
Plantinga, Carl R. – Rhetoric and Representation in Nonfiction Film, Cambridge University Press, Cambridge, 1997
Popper, Karl e Condry, John – Televisão: Uma ameaça para a democracia, Gradiva, Lisboa, 1995. Romaguera I Ramio, Joaquim e Thevenet, Homero Alsina – Textos y Manifestos del Cine, Ediciones Catedra, Signo e Imagen, Madrid, 1989
Rosteck, Thomas – See it Now Confronts McCarthysm (Television Documentary and the Politics of Representation), The University of Alabama Press, Tuscalosa and London, 1994
Saunders, Dave – Direct Cinema (Observational Documentary and the Politics of the Sixties), Wallflower Press, London , 2007
Woodrow, Alain – Informação, Manipulação, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1991

Porto, 16 de Outubro de 2009
Jorge Campos






Entrevista com Brian Winston 

por Jorge Campos



No trabalho teórico de Vertov sobre questões como a representação, a autenticidade ou a manipulação encontram-se melhores respostas do que em Flaherty ou Grierson”.






Uma vez que vem aí o DOC'S Lisboa, o ciclo de Fotografia e Cinema Documental Imagens do Real Imaginado do Departamento de Artes da Imagem da ESMAE e porque dou esta semana as primeiras aulas de História e Teoria do Documentário no mestrado de Comunicação Audiovisual da ESMAE, resolvi recuperar dos meus arquivos mais um dos muitos documentos que por lá se acumulam. A entrevista que se segue com Brian Winston foi feita na fase final da Odisseia nas Imagens - Porto 2001 Capital Europeia da Cultura. Brian Winston trabalhou durante muitos anos para a BBC, da qual foi correspondente nos Estados Unidos. Realizou inúmeros trabalhos para televisão, entre os quais um número significativo de documentários. Num dos seus livros mais recentes Lies, Damn Lies and Documentaries dá conta das falsificações que têm sido levadas a cabo na televisão britânica com o intuito alcançar ganhos de audiência. Em 1999 publicou no BFI, Fires were started, uma análise exaustiva do filme de Humphrey Jennings com o mesmo nome e que é um clássico da escola documentarista britânica. Vencedor de um Emmy para argumento de documentário nos Estados Unidos, Brian Winston é o director da School of Communications da Universidade de Westminster. Esta entervista, apesar de ter já alguns anos, nem por isso perdeu actualidade, uma vez que permite fazer um balanço de alguns dos aspectos nucleares para a compreensão do filme documentário. Autor de Claiming the Real, uma obra publicada em 1995 que veio inovar a história institucional do Documentário, promovendo, inclusivamente, uma revisão profunda em torno de alguns dos seus eixos até então indiscutíveis, Winston, se outro mérito não tivesse, teria, pelo menos aquele de abalar certezas adquiridas e abrir as portas a novos campos de investigação.



P. Como e quando escreveu Claiming the Real?

R. Levei 18 anos a escrevê-lo. Há muitos anos, em 1979, pediram-me um artigo para o Festival de Televisão de Edimburgo. Foi essa a primeira vez que escrevi sobre o filme documentário. Esse artigo foi depois reproduzido pela Sight and Sound, a revista do British Film Institute. Fiquei amigo da editora, Penelope Huston, e passei a colaborar com a revista regularmente. Escrevi sobre Grierson, Riefensthal, e muitos outros. A determinada altura tinha um livro.

PO livro tornou-se muito polémico...

R. Sim? Não estou certo disso. As questões levantadas ao tempo da publicação já não eram assim tão controversas na Grã Bretanha, onde de há muito havia juízos muito críticos em relação a Grierson. Noutros países, e especialmente nos países latinos onde não há muita informação sobre estas matérias, é natural que pessoas que literalmente endeusavam Robert Flaherty ou John Grierson, se tenham sentido chocadas. Entre nós isso não aconteceu. O que o livro faz é explicitar muitas das críticas formuladas ao longo dos anos sobre esses e outros autores e reequacionar, em função desses pontos de vista, algumas ideias chave a propósito do filme documentário.

P. Nessa linha de pensamento como situa, então, Flaherty e Nanook of the North?

R. Em primeiro lugar há um juízo de carácter político, digamos assim, em relação a todo o percurso de Flaherty, que fez uma espécie de carreira imperial. Os mares do sul, o norte do Canadá, a Índia e a Irlanda eram lugares coloniais ou quase coloniais. O impulso que o moveu era semelhante ao que levou Jean Rouch, em 1960, a fazer um filme sobre uma estranha tribo parisiense, que foi Cronique d’un Été. A determinada altura, esta inclinação de Flaherty por um certo exotismo começou a ser questionada. Começou a perceber-se que o filme sobre o povo innuit não era sobre o modo de vida desse povo em 1920, mas em 1880. Surgiu, também, a evidência de numerosas falsificações, como sejam a construção do igloo de Nannok, que, na verdade, nunca tinha construído um igloo, do mesmo modo como nunca tinha caçado da maneira que o filme mostra. Depois, soube-se que Flaherty teve uma relação com uma esquimó de quem teve um filho, Joseph, cuja filha, por sua vez, veio a dirigir o movimento das mulheres innuit, ou seja, houve um acumular de dados que lançou a suspeita sobre alguns aspectos do seu trabalho. Muita gente teria preferido não evocar estes episódios e deixar o mito de Flaherty tal qual fora construído. Provavelmente, essas pessoas terão encarado a divulgação dos factos como um ataque... De qualquer modo, no meu livro eu nunca nego a importância de Flaherty, porque, o que ele fez, independentemente de ser aquele ou não o modo de vida dos esquimós, foi pegar num assunto e transformá-lo numa história e é isso que é fundamental quando se trata do filme documentário. Foi isso, também, que John Grierson reconheceu.

PDziga Vertov, qual é o seu comentário a propósito deste homem que, ao que se sabe, não era especialmente estimado, por exemplo, por John Grierson?

R. Eu, pelo contrário, gosto muito de Vertov. Grierson não gostava, mas eu penso que Vertov é extraordinariamente interessante. Claro que falando dele é impossível passar ao lado da política. Ele não era leninista, foi contra a Nova Política Económica na U.R.S.S. e não se deu nada bem com o estalinismo. Mas até por isso se tornou uma figura simpática. Do que não restam dúvidas é que numa era de pensamento pós-moderno, o seu trabalho é cada vez melhor compreendido e cada vez mais estimulante.

P. Continua a pensar que O Homem da Câmara de Filmar é um filme estimulante?

R. É um filme que encerra muitas lições. No início de Cronique d’un Été, Jean Rouch diz estar a procurar fazer um filme em busca da verdade, o cinéma-verité. Vertov fez uma série de filmes de actualidades, o Kino-Pravda, que quer dizer justamente cinéma-vérité. Penso que no trabalho teórico de Vertov sobre questões como a representação, a autenticidade ou a manipulação se encontra melhores respostas do que em Flaherty ou Grierson.

P. Porque razão Claiming the Real é tão crítico, e até cáustico, em relação ao movimento do realismo britânico?

R. Pela representação que fez de si mesmo. Grierson sempre se apresentou a si próprio como um cineasta radical que estava a contribuir para resolver os problemas do seu tempo. Mas, não fez nada disso. Fazia filmes que se algum efeito tiveram, e vamos partir do princípio que esses filmes foram vistos por aqueles que eram suposto vê-los, o que também não é certo, foi um efeito paliativo, ou seja, lançava poeira aos olhos do descontentamento público. Em Housing Problems, por exemplo, denuncia condições de habitação miseráveis, mas, depois, vem dizer que tudo se resolve porque a companhia de gás vai construir casas...

P. Propaganda?

R. Sim, mas para o estado liberal e burguês. Claro que nos anos 30, dada a situação internacional, com a emergência dos estados fascistas na Itália, Alemanha e Espanha, isto até podia parecer menos mal. A questão repito, é que Grierson se apresentava ao resto do mundo como um revolucionário e ainteligentsia via-o como um artista proletário. Enquanto isso recebia dinheiro do governo conservador para fazer os seus filmes e, seguramente, o preço que teve de pagar por isso não autorizou uma grande coerência.

P. Nos anos 30 e 40, dada a situação em que o mundo se encontrava, o documentário envereda muitas vezes pelos caminhos da propaganda. É o caso de Why we Fight de Frank Capra...

R. É uma série fantástica. A propaganda não me incomoda. O que contesto é a assumpção de um conceito de objectividade que ninguém consegue provar. Why we Fight não deixa dúvidas, não dá lugar a equívocos, não está do lado de Hitler.

P. Capra utiliza vezes sem conta imagens, por exemplo, de Leni Riefensthal, dando-lhes um outro sentido...
R. Inteiramente razoável, como o demonstrou a cineasta soviética Esther Schub, autora de The Fall of the House Romanov, filme feito com imagens do tempo do czar. Capra adoptou o mesmo procedimento. Não tenho nenhuma espécie de reserva em relação a esse procedimento. A mentira reside no facto de pretender que o ponto de vista não existe e não vejo nenhum problema em expressar esse ponto de vista, mesmo que seja terrível, como no caso de Riefensthal. Sendo fascista não pode ser acusada de ter pretendido ser objectiva. Toda a gente sabe o que vai encontrar nos seus filmes.

P. Num dos episódios de Why we Fight intitulado The Battle of Russia, Capra consegue dar uma visão inteiramente positiva da U.S.R.R. o que, à época, para um americano médio, seria totalmente incompreensível. Tratava-se, evidentemente de propaganda, mas era, também, uma forma muito hábil de intervir politicamente. Parece-lhe que a natureza do filme documentário conduz às questões políticas?

R. Não creio que seja exactamente assim. Coloco a questão de outra maneira. Acredito que o documentário tem um compromisso muito profundo com o realismo e com a representação realista. O realismo, a partir da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, é uma corrente altamente politizada. Veja-se o que se passou, por exemplo, com a pintura realista francesa do século XIX e com pintores como Courbet. Nessa tradição, enquanto texto realista, também o documentário se insere numa linha politizada, ainda que se possam fazer documentários sobre pinguins – e fazem-se – interminavelmente...

P. Passemos então ao Cinema Directo. Basic Training, de Wiseman. Um comentário…

R. Adormeci. (Risos)

P. Não gosta, então, de Wiseman?

R. Tenho alguns problemas a propósito do trabalho dele. Quanto tempo tem Basic Training? Duas horas? Três horas? Duas horas para Wiseman, digamos que é uma curta metragem. Seis horas, isso é uma longa metragem, o que confere ao seu trabalho um carácter opressivo. Dito isto, considero-o um cineasta brilhante e, sobretudo, um editor fabuloso. Mas, há nos filmes dele uma contradição profunda. Por um lado, ele diz-nos que nos dá a evidência, que deixa marcas que permitem seguir um rasto a partir do qual podemos tirar as nossas conclusões. Mas, por outro lado, ele é o grande artista que nos diz não se atrevam a tocar num só dos meus fotogramas, senão processo-vos, etc. Em que ficamos? Dá-nos a evidência, o fly on the wall, ou é um grande artista. Esta é uma das contradições docinema directo. Para mim ele é cada vez mais um grande artista e não faz muito sentido a reivindicação de ver tudo ou observar tudo.

P. Há diferenças, hoje, por exemplo, entre o modo como documentário é encarado, por um lado, nos Estados Unidos e no Reino Unido e, por outro, em França?

R. Seria mais fácil responder a essa pergunta há uns 10 ou 15 anos. A tradição francesa é mais pessoal, mais poética, menos jornalística e menos ligada à reivindicação da objectividade. Nunca ninguém ousaria dizer que, por exemplo, Nuit et Bruillard de Resnais, é uma abordagem objectiva. O mesmo se pode dizer de Toute la Memoire du Monde ou de filmes de Franju como Hotel des Invalides. Os documentários franceses clássicos do pós-guerra são, pois, pessoais e poéticos e nem mesmo quando utilizam os novos equipamentos mais leves e flexíveis do cinema directo, como Jean Rouch emChronique d’un Été, há qualquer intenção de objectividade. Pelo contrário, Jean Rouch, diz-nos: muito bem, não posso dizer-vos a verdade, mas talvez vos possa transmitir alguma espécie de verdade; vou mostrar-vos o que estou a fazer e mostrar-vos o que pensam as pessoas que entram no filme sobre o que estou a fazer. Este tipo de coisas não passaria pela cabeça de britânicos ou americanos. Nesse sentido, havia uma diferença óbvia. Porém, não creio que isso seja mais assim. Porquê? Devido à influência do “realismo” da televisão, de um jornalismo que invade todos os domínios.

P. E isso, portanto, é indesejável?...

R. É, na medida em que retira legitimidade a outras abordagens. Dantes tínhamos documentários poéticos, pessoais, etc, etc... Agora apenas nos é permitida a câmara ao ombro da reportagem, o registo sem surpresa e isso é muito mau. Primeiro, porque limita a variedade de expressão e, depois, porque, na maioria dos casos, é lixo. Não devia ser assim. Mas, infelizmente, os operadores de televisão estão hoje numa posição ideológica muito forte.








































Documentário Português
 Da urgência do presente à memória do futuro
 Por Jorge Campos

Publicado em docs.pt 03, Lisboa, Junho de 2006

Quinta-feira, 2 dia de Maio de 2006. Há um jornal onde leio que Portugal é o país da Europa onde os cidadãos menos se interessam pela política. Um outro anuncia-me uma quase completa ausência de auto-estima por parte dos meus concidadãos. Um terceiro oferece-me uma primeira página demolidora: em manchete, caracteres gordos, vem lembrar-me que 85 por cento dos pensionistas recebe pouco mais de 350 euros mensais; abaixo, foto a toda a largura, vultos sem rosto diante do portão de uma fábrica, mais 250 que acabam de ser despedidos; no canto superior esquerdo a imagem de um cachorro impecavelmente tosquiado, vestido a rigor para o Inverno (de amarelo) e com um chapéu (verde) de aba larga que ilustra um título segundo o qual os portugueses gastam anualmente mais de 200 milhões com os seus animais domésticos. Perante o rosto deste jornal, por deformação ou vício de associar o real e a sua representação ao olhar documentário revi instintivamente cenas de Umberto D., de Vittorio De Sica, Roger and Me, de Michael Moore e Gates of Heaven, de Errol Morris. Não me ocorreu, porventura injustamente, a memória de nenhum filme português. Mas, à noite, numa pequena sala do Porto que arrisca incursões nesse outro cinema fui ver os Lisboetas, de Serge Tréfaut. 


Lisboetas é um daqueles filmes raros no cinema documental português contemporâneo. Aborda um tema pertinente, o quotidiano dos estrangeiros que demandaram Portugal em busca de melhores condições de vida e encontraram um país, como quase sempre acontece nestas ocasiões, diferente do imaginado. Mantendo um registo de observação, do qual é indissociável uma ética impecável de respeito para com o outro, compondo um quadro de situações mais do que uma rede narrativa baseada na relação e construção de personagens, mas ainda assim, revelando um apurado sentido de descoberta do que de mais contingente e pungente reside na condição humana, o filme, na aparente fragilidade da sua lógica discursiva, opera o prodígio de nos dar a nós, portugueses, uma imagem imprevista do país que somos através de um olhar diferente. Esse olhar é tanto o dos emigrantes à deriva pelas ruas e lugares de Lisboa em busca de um futuro no presente incerto, quanto o do próprio Tréfaut que, recusando efeitos de retórica e investindo numa série de combinações de montagem, se faz intérprete de uma situação conhecida, mas nunca antes assim revelada

Isso acontece por razões que se prendem com a melhor tradição do documentário social, desde sempre associado a um conjunto de circunstâncias que lhe permitem proceder ao escrutínio dos sinais dos tempos, mas que em Portugal tem sido episódico. Explico-me. Aparentemente, o documentário português está numa encruzilhada. Se nos últimos anos conheceu um desenvolvimento sem precedentes, constituindo uma comunidade de praticantes alargada e capacitada para poder configurar o embrião de um movimento, nem por isso logrou ainda alcançar um grau de sofisticação teórica e de maturidade organizativa que lhe permita enfrentar com naturalidade os desafios que lhe são colocados. Apesar de um corpo de filmes relevante, ainda que relativamente reduzido, parece haver uma crise de identidade cuja razão de ser pode estar relacionada com um problema de memória, sem a qual não é possível encontrar as ferramentas mais ajustadas para enfrentar o presente e pensar o futuro. Com efeito, na ausência de uma História do Documentário Português – o que temos são Histórias do Cinema Português, nas quais, de quando em vez, se faz referência ao documentário ou tentativas meritórias, como a de Luís de Pina, de fazer uma cronologia do filme documentário – faltam referências a partir das quais possam construir-se itinerários sistematizados. Há, naturalmente, percursos individuais. Mas, quando se aborda o percurso institucional os fantasmas erguem-se em torno da falta de apoios, organismos que tutelam mais por obrigação do que por sentido de missão, júris problemáticos, operadores de televisão obsoletos, enfim um coro de dificuldades certamente fundamentado, mas cuja sombra relega para segundo plano a questão central de saber o que se pretende fazer, o que é urgente dizer e filmar. E como.

Assim sendo, parece razoável constatar uma perplexidade que não tem de ser necessariamente negativa e que, do meu ponto de vista, tem origem numa crise de crescimento, a qual, aliás, não é exclusiva do caso português, mas que, por razões de conjuntura é particularmente sentida entre nós. A vários níveis. Um exemplo: o problema clássico e recorrente da distinção entre documentário e ficção. Convoco duas posições conhecidas.

Para Godard, “todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção. (...) E quem optar a fundo por um deles encontra necessariamente o outro no fim do caminho (Godard, 1985) ”. Para Guynn “é precisamente contra a ficção e as suas tradições que se foi constituindo a teoria do documentário (Guynn, 2001)” e isto porque o quadro institucional do seu percurso histórico assenta, fundamentalmente, sobre três pilares: em primeiro lugar, o documentário tem a sua filiação natural num cinema liberto dos constrangimentos impostos por procedimentos recorrentes de outras artes como a literatura e o teatro; em segundo lugar, o documentário situa-se a si mesmo, no plano institucional, por oposição ao cinema de ficção, propondo uma crítica da suas condições de financiamento, produção e distribuição; finalmente, o documentário proclama o ‘realismo’ do seu discurso por oposição ao mundo imaginário da ficção, assumindo uma função ‘natural’ na sua relação com o seu objecto ‘natural’. Em suma, “o documentário distingue-se não somente pelo seu ‘conteúdo’ específico, as suas formas e os seus métodos, mas também pelo lugar que assume enquanto formação social (Guynn, 2001)”.  

Entre nós, porventura na ausência de memória sobre o percurso e os contornos deste debate, de forma mais ou menos explícita, tenho ouvido defender que tudo é basicamente igual porque tudo é basicamente cinema. Cinema será, certamente. Mas esta atitude, essencialmente defensiva, como se alguma coisa de sagrado estivesse em risco de se perder, ilude as questões e fragiliza a capacidade de intervenção institucional da comunidade de praticantes que, justamente, encara o documentário como veículo privilegiado de interpelação do real e, nessa medida, pode reclamar para ele o estatuto de bem público. Pelo contrário, a opção por um cinema receoso de ir à luta, resistente à transversalidade das formas e linguagens, fechado sobre si próprio a pretexto da poética, sendo dificilmente compatível com os paradigmas da modernidade, quando muito dará origem a uma espécie de peregrinação em busca do Santo Graal.

Daí a necessidade, neste como noutros domínios, de uma clarificação, aliás, recorrentemente sentida sempre que situações semelhantes, salvaguardadas as respectivas especificidades, se colocaram no passado. Por exemplo, em 1935, numa altura em que o movimento documentarista britânico conhecia, também ele, uma crise de crescimento e se multiplicavam as suas tendências, Paul Rotha procurou sistematizar o conhecimento, entretanto, adquirido. Em Documentary Film identificou a tradição do documentário em função de quatro tendências: a naturalista ou romântica, que surgiu com os primeiros filmes de Flaherty; a relacionada com as vanguardas artísticas dos anos 20; a associada a newsreels e cuja deriva mais arrojada corresponde ao trabalho de Dziga Vertov; e, finalmente, a que resulta da convivência do cinema com a propaganda: “onde quer que o cinema se encontre ao serviço do lucro tem tendência para se situar na esfera da tradição do estúdio, ao passo que o cinema ao serviço da propaganda e da persuasão tem sido largamente responsável pelo método do documentário (Rotha, 1970)”.  

Este tipo de exercício, na medida em que reflectindo sobre o passado lhe foi conferindo um sentido prospectivo, permitiu ir desenhando o mapa plural a partir do qual se foi construindo a História e Teoria do Documentário. Evidentemente, as referências contidas nesse mapa não são um espartilho, antes abrem perspectivas, e cada criador escolhe o seu caminho respondendo a um impulso interior cuja explicitação depende apenas de si e da sua peculiar relação com o mundo. Nesse sentido, houve e há uma grande variedade de vozes, como acontece em Portugal, tanto mais que a mudança de paradigmas sustentada pelos self media confere uma ainda maior liberdade de criação. Mas, tratando-se de intervir criativa ou institucionalmente, o mapa é um auxiliar precioso da acção e essa parece ser uma lacuna ainda por resolver no documentário português, apesar da ponderação que nos últimos anos tem vindo a ser feita das suas práticas.

Está por fazer, por exemplo, uma História Crítica em função da qual se possa ter uma visão de conjunto dos seus principais episódios, protagonistas, implicações políticas, filiações artísticas e vínculos comunicacionais, porventura numa lógica transdisciplinar, cruzando o cinema com áreas de investigação do âmbito dos estudos culturais. De forma mais localizada, seria igualmente relevante recuperar, sistematizar e dar visibilidade ao que foi o trabalho documental dos cineastas responsáveis pelo Cinema Novo, do qual se diz ter alguma relevância, apesar de cultivado apenas como meio de passagem para a ficção, mas do qual pouco se fala e, em rigor, pouco se conhece. Em qualquer dos casos, não se trata de andar à procura da arca do tesouro, mas trata-se, seguramente, de identificar elos perdidos e assim ter uma visão mais completa das diferentes variáveis com influência no documentário em Portugal.

Esta pesquisa não pode, naturalmente, desenvolver-se à margem da produção e da criação. Do ponto de vista operativo, seguramente contribuiria para atenuar equívocos de ordem conceptual que reiteradamente se verificam. Por exemplo, muitos projectos apresentados no ICAM aos concursos destinados ao documentário de criação, embora contendo abundante material informativo, raramente deixam transparecer um olhar ou um ponto de vista sobre o assunto, pelo que talvez fizesse mais sentido colocá-los nos concursos de apoio à produção audiovisual. Estes equívocos alargam-se, a um outro nível, ao modo como o serviço público de televisão programa os seus conteúdos de informação e não ficção.

Cabendo-lhe uma tarefa de regulação simbólica, com todas as consequências daí decorrentes a montante e jusante da antena, natural seria que procedesse de acordo com uma estratégia coerente de programação das diversas representações do real ampliando, desse modo, o leque de possibilidades de leitura do mundo. A reportagem e o documentário televisivo têm o seu lugar devendo, em qualquer dos casos, obedecer a critérios de exigência. Mas, deveria ser igualmente contemplada a presença regular do documentário ao qual preside o olhar do cinema. Um filme como Lisboetas, de Serge Tréfaut faz muito mais pela compreensão de um problema com o qual Portugal tem de saber lidar do que qualquer reportagem exibida num telejornal. O mesmo poderia dizer-se de O Quarto da Vanda, de Pedro Costa em relação à segregação e toxicodependência, de A Dama de Chandor, de Catarina Mourão sobre a presença portuguesa no mundo ou das Enfermeiras do Estado Novo, de Susana Sousa Dias sobre a resistência ao fascismo. É verdade que todos estes três últimos filmes foram exibidos na RTP, como, aliás, aconteceu com outros e é positivo que isso tenha acontecido. Mas não basta mostrar. É preciso programar.    

Termino como comecei. Historicamente, o filme documentário foi sempre assumindo formas e encontrando soluções de modo a dar resposta às questões da actualidade. Chris Marker, perante a entropia informativa das sociedades mediáticas, defendeu que nunca como agora houve tamanha urgência de imaginar o real. Naturalmente, a urgência do documentarista é sempre resultante da necessidade de ler o mundo e as suas personagens, daquilo que ele entende ser necessário dizer e como. Daí a pertinência de conhecer as suas prioridades, saber o que o move. Essa clarificação de propósitos, sobretudo para quem faz do documentário a primeira opção criativa, é essencial à coerência de um percurso que se pretenda construir. Ora, a verdade é que o documentário português, propondo-se tratar de muita coisa, parece assumir um relativo distanciamento em relação a matérias como aquelas que fizeram as manchetes do jornal que mencionei ou a outras de igual relevância do nosso quotidiano. É apenas uma nota, mas as citações que fiz de Paul Rotha em Documentary Film não foram inocentes. Além do mais, o livro tem o seguinte subtítulo: The use of the film medium to interpret creatively and in social terms the life of the people as it exists in reality.




Referências bibliográficas

Godard, Jean-Luc – Jean Luc-Godard par Jean-Luc Godard, Edition de L’Étoile, Paris, 1985.
Guynn, William - Un cinéma de Non-Fiction - Le documentaire classique à l’épreuve de la théorie, Publications de l’Université de Provence, Aix-en-Provence, 2001.
Rotha, Paul (in collaboration with Road, Sinclair and Griffith Richard) – Documentary Film (The use of the film medium to interpret creatively and in social terms the life of the people as it exists in reality), Communication Arts Books, Hastings House, Publishers, New York, 1970.

Porto, 9 de Abril de 2005.





























ENTREVISTA COM JAVIER RIOYO

por Jorge Campos

"Há que destruir muitos preconceitos e frases feitas."

Conhecido pelo seu trabalho como jornalista, guionista e  documentarista, Javier Rioyo, foi um dos premiados no Festival Odisseia nas Imagens da Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura com o seu filme Extrangeros de si mismos (2000). Entre as suas obras conta-se Asaltar los Cielos, sobre o homem o assassínio de Trotsky e um filme sobre Luís Buñuel. Nesta entrevista feita no final do ano 2001, Javier Rioyo aborda o momento do documentário em Espanha e a relação do documentário com a televisão. É mais uma peça resgatada ao meu arquivo. 





P. Do seu ponto de vista o documentário é um cinema livre?

R. Creio que sim. Será até o cinema com maior liberdade. Embora o conceito de liberdade me leve a encará-lo com algum temor, não duvido, por exemplo, que face ao cinema de ficção o documentário goze de muita mais liberdade. Faz-se com um guião menos fechado, com um orçamento que nos permite maior liberdade de movimentos, com maior ligeireza de equipamentos, tem menos compromissos institucionais, está mais aberto, não tem actores que cobram fortunas...

P. Portanto, de alguma maneira, vai-se construindo a si mesmo...

R Sim, é mais uma história que começa com uma ideia ou com uma intenção e que se vai concretizando numa perspectiva em que é sempre possível integrar coisas novas e inesperadas que acontecem entretanto. O documentário tem essa virtude de estar aberto seja no processo de rodagem, seja no processo de montagem. Há muitas coisas nas quais não reparamos na rodagem, mas que emergem quando se está em montagem.

P. Há uma ideia de que em Espanha há um interesse crescente pelo documentário. Isso é verdade?

R. Há um crescimento. Houve um momento durante a transição política, na parte final do franquismo em que havia a consciência da necessidade do documentário. Mas, com o advento da democracia houve uma pausa, como se o documentário tivesse deixado de ser necessário, e começaram a comprar-se muitos programas históricos ou sobre a natureza. Houve portanto um interregno que seria entretanto superado, no início com muitas dificuldades, mas hoje não há dúvida de que o movimento documenraista retomou o seu rumo e continua a progredir.

P. Apesar desse progresso, que parece ser de algum modo generalizado, há quem diga que a televisão está a matar o documentário...

R. Não, eu não penso assim. Penso que o documentário deve ter um percurso de salas, de ciclos e de festivais, mas creio que o percurso natural é cada vez mais a televisão. A televisão está cheias de coisas boas e de coisas más. É certo que a programação de documentários pode incorrer alguns riscos, porque se trata de exibir algo que tem muito de experimental e de vôo livre. Mas se os documentários forem bem programados, em horários apropriados e não relegados para horários impossíveis, poderão ser vistos com o mesmo agrado como se vêm as boas séries ou os filmes de ficção. O que não se pode é remeter o documentário para um território marginal atribuindo-lhe um estatuto demasiado cultural e didáctico.

P. Parece haver em tudo isto uma contradição. Muitos programadores argumentam que o documentário é naturalmente aborrecido e inadequado para ser mostrado ao grande público. Entretanto, o interesse crescente pelo documentário parece resultar justamente do facto de ser exibido pela televisão.

R. Há que destruir muitos preconceitos e frases feitas. Talvez nos conformemos demasiado e estejamos realmente fartos de coisas que são realmente previsíveis e aborrecidas e que vêm do mundo da ficção. Quantas telenovelas ou historietas que são realmente mentalmente reduzidas e aborrecidas são o alimento quotidiano de tanta gente, quando se virmos um documentário que tem paixão dentro de si e que tem entretenimento pode ser uma história muito mais estimulante e divertida do que programas de pura evasão. 









Pedro Sena Nunes e João Paulo Macedo

O DOCUMENTÁRIO PORTUGUÊS À PROCURA DO SEU TEMPO
Publicado em
Panorama - Mostra do Documentário Português
Videoteca Municipal de Lisboa, Lisboa, 2006
Jorge Campos


Se há discurso cujo entendimento exige a presença da historicidade esse discurso é o do documentário. Poderá contrapor-se assim ser para todo o discurso e é verdade. Mas, no caso do documentário é no confronto com a História, recolhendo subsídios de cada época, que nos é permitido desenhar um quadro dinâmico em função do qual é legítimo encará-lo como aquilo que é e sempre foi, ou seja, uma série de transformações. Nesse sentido, procurar identificá-lo é um jogo de permanente afirmação e negação, ocultação e descoberta que se joga no território do cinema, mas que acolhe, por efeito da transversalidade dos media, um sistema alargado e contraditório de possibilidades de interpelar criativamente o real. Referindo-se ao documentário do pós-guerra, Bazin admitia que a confiança do público no que via era condicionada por outros meios de comunicação social como a rádio, o livro e a imprensa. Antes dele, já Grierson se apercebera disso.  

 John Grierson


Nessa medida, a interpelação do real, que é interpretação, manifestando-se pelo modo de dizer e pelo que é dito, resulta sempre de tecnologias, as quais, sendo indutoras de linguagens, delimitam igualmente o espaço a partir do qual se concretiza a relação com o público. Nos filmes de Michael Moore, por exemplo, há um dispositivo cinematográfico ao qual estão associados, tal como nos filmes de Tarantino, recursos e significantes de uma paleta muito alargada, das imagens de arquivo às imagens in loco, da música pop aos jogos de vídeo, do cinema de animação à reportagem televisiva, da comédia clássica à agit-prop. A sua eficácia resulta disso mesmo. Assentando numa estratégia de significação que acolhe múltiplos contributos provenientes da cultura de massas, Roger and Me, Bowling for Columbine ou Farhenheit 9/11 tanto podem ser exibidos em sala quanto passam no pequeno ecrã ou circulam em DVD. 

O que me leva a mencionar Michael Moore é a notoriedade, não o gosto. Felizmente, não há unanimidade em torno dos seus filmes, como não há em torno dos filmes de Wiseman, Morris, Rouch, Broomfield, Varda ou Pelechian, como no passado não houve em torno da série Why We Fight, de Capra ou nem houve nem há a propósito seja do que for, e mais: os problemas que agora os filmes de Moore nos levantam têm a idade do percurso institucional do documentário. O que hoje se discute não é, com efeito, muito diferente daquilo que os protagonistas do movimento documentarista britânico discutiram durante anos a fio e que, apesar das inúmeras declinações, pode resumir-se a uma reflexão em torno de três eixos: arte/ reportagem, ou seja, o estatuto do documentário enquanto objecto estético e enquanto registo de acontecimentos; verdade/ ponto de vista, que equaciona a questão perene da objectividade do documentário face à subjectividade dos seus métodos, discursos e modalidades; instituição/ formas, que procura articular a produção de documentários com diferentes variáveis de ordem política, económica e social, num quadro de conhecimentos e expectativas por parte do público que, embora possa não ser imediatamente perceptível, tem implicações de ordem prática e de valor de uso.

 Bowling for Columbine de Michael Moore

Nenhuma destas questões é estranha ao documentário português contemporâneo, sobretudo quando não parece excessivo admitir a emergência do embrião de um movimento documentarista em Portugal. Finalmente. Mas, no nosso caso temos um problema óbvio com a historicidade. Falta-nos a memória e o pensamento teórico que são património de outros países onde o movimento documentarista se foi afirmando ao longo de períodos mais ou menos alargados e em contacto com experiências tão diversas quanto o foram as vanguardas artísticas dos anos 20 e 30, o estilo de jornalismo cinematográfico de March of Time, o experimentalismo do pós-guerra, nomeadamente em França com o movimento dos 30, as aventuras do direct cinema, do cinema-vérité e do free cinema, para já não falar da complexa rede de relações entre o documentário e a televisão nos países anglo-saxónicos, de um modo geral, e nos Estados Unidos, em particular. Sem nada de comparável a estas experiências – e é bom não esquecer que tivemos meio século de ditadura e, já agora, as chamadas de atenção de António Ferro para a “lamentável qualidade do documentário português” do seu tempo – o que parece ter prevalecido foi uma tendência natural, dado o prestígio de alguns cineastas portugueses contemporâneos, para fazer uma leitura do documentário ajustada a critérios que basicamente presidem ao cinema de arte e ensaio e remetem para a política dos autores. 

Se o entendimento for este, não há, realmente, muito a dizer. Filiado nas vanguardas artísticas o único exemplo, tardio e excepcional, é Douro, Faina Fluvial, de Manoel de Oliveira. Até Belarmino, do qual Fernando Lopes diz lucidamente tratar-se de cinema indirecto, à excepção da reincidência de Oliveira com o Pintor e a Cidade, o Pão e O Acto da Primavera, pouco resta. Os cineastas que viriam a dar corpo ao Novo Cinema Português fizeram incursões no documentário, mas sem que isso tenha correspondido a uma opção de fundo. Há António Campos, notável a vários títulos e a obra de António Reis e Margarida Cordeiro, curta, mas profundamente original. E logo após o 25 de Abril, fizeram-se muitos filmes militantes, interessantes como documentos, pontualmente mais do que isso. 

 No Quarto da Vanda de Pedro Costa

A História do documentário, porém, não se confina aos momentos excepcionais. É mais complexa e desconcertante. Henri Langlois, por exemplo, via no movimento documentarista britânico uma exemplar escola de cinema. Em determinados aspectos tê-lo-á sido. Mas, segundo John Grierson, o movimento, tal como ele o concebeu, resultou de uma ideia que não surgiu do interior do mundo do cinema, mas da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, no início dos anos 20. Essa ideia, indissociável da propaganda num contexto de expansão dos meios de comunicação social, viria a conhecer na abordagem cinematográfica um permanente movimento pendular no sentido de encontrar um equilíbrio entre a dimensão estética e a urgência retórica de afirmar aquilo que se supunha ser necessário informar. O pêndulo, diga-se em abono da verdade, quase sempre esteve desalinhado a favor de uma produção que procurou mais responder aos sinais dos tempos, buscando uma eficácia imediata, do que ascender ao plano da Arte, o que também aconteceu. Edgar Anstey, colaborador próximo de Grierson e um dos autores de Housing Problems (1935), filme habitualmente apontado como o ponto de viragem para a deriva mais jornalística do movimento, refere-se a essa ambivalência nos seguintes termos:

“Suponho poder dizer que Grierson era basicamente um professor, um educador (...), ainda que fosse simultaneamente algo esquizofrénico quanto à separação do propósito social do documentário de uma qualquer declaração apaixonada sobre arte, palavra que ele nunca nos permitia pronunciar. Mas, por outro lado, se algum de nós fizesse alguma coisa que pudesse ser encarada fora do contexto artístico (...) fazia desabar toda a sua ira sobre o visado porque acreditava, como eu acredito, que apenas se pode comunicar através da arte (Sussex, 1975: 96)”.

Creio que todo o documentarista entende o dilema de Grierson. O documentário existe no presente e para transformar o presente. Essa é, porventura, a sua principal função. Não surpreende, por isso, que toda a História do século XX possa ser contada através do documentário, sendo que os seus episódios mais estimulantes são aqueles que convocam a imagem como um símbolo que remete para algo fora de si requerendo, nessa medida, uma organização cujo enunciado é prioritariamente visual. Também não surpreende que em épocas de crise de valores, como aquela em que vivemos, quando as indústrias da consciência apostam tudo na evasão, o documentário ressurja, no plano simbólico, como imperativo do regresso ao real. Mas, historicamente, quando situações deste tipo ocorrem, as opções narrativas são muito diversificadas e, como tal, objecto de frequentes e acesas controvérsias. Nos Estados Unidos, por exemplo, impôs-se um tipo de filme associado ao cinema independente que não hesita em utilizar os dispositivos da televisão e se perfila não só como arma política, mas também como campo discursivo de carácter transversal. 

O documentário português contemporâneo, apesar de circunscrito a um espaço de circulação ainda reduzido, nem por isso deixa de participar, neste debate globalizado. Convive com Michael Moore, conhece José Luis Guerín, aprende com Nicolas Philibert e descobre Ross McElwee. Tem, por outro lado, um punhado de jovens realizadores com filmes interessantes e muitos outros a reclamarem uma oportunidade. Há os encontros de Serpa, a Apordoc e o Docs Lisboa, bem como um conjunto relevante de protagonistas como Pedro Sena Nunes, Catarina Mourão, Catarina Alves Costa, Pedro Costa, Graça Castanheira, Saguenail, Regina Guimarães, Margarida Cardoso, Diana Andringa, Pierre-Marie Goulet, Serge Tréfaut e outros mais. E se os motivos que deram origem a este movimento carecem de estudo mais aprofundado, é consensual a importância do trabalho de Manuel Costa e Silva e de José Manuel Costa, o papel dos Encontros Amascultura, o financiamento à produção de documentários por parte do Estado via Ministério da Cultura e o efeito da Odisseia nas Imagens (Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura), que abriu espaço ao documentário nas escolas do norte do País. Mais recentemente, outras iniciativas no campo da formação começaram a ganhar o seu espaço, como sejam os Cursos de Documentário da Videoteca de Lisboa e o Ciclo de Fotografia e Cinema Documental Imagens do Real Imaginado, do Instituto Politécnico do Porto. 


Tematicamente, a produção portuguesa recente é muito diversificada, destacando-se nomeadamente a tentativa de recuperação da memória de episódios relacionados com a guerra colonial e a perseguição política no tempo da ditadura. Há, também, uma tendência que aposta na divulgação de vultos importantes da cultura portuguesa e um grande número de abordagens, feitas de diferentes perspectivas, sobre matérias relacionadas com o quotidiano. Por vezes, prevalece um certo tom pedagógico, outras a procura de uma maior liberdade poética. Contudo, salvo raras excepções, como acontece com Pedro Costa, talvez falte ainda algo da urgência radical que permite responder de forma igualmente radical aos desafios do presente. Talvez falte ainda agressividade ao corpo a corpo com o real.

Concluo chamando a atenção para dois aspectos sobre os quais me parece importante reflectir. Em primeiro lugar, se o documentário é sempre um produto da sua época e, portanto, contingente e variável, deve simplesmente rejeitar qualquer tentativa de tutela administrativa do gosto. Pelo contrário, como sempre aconteceu na sua melhor tradição, tem de assumir riscos e explorar criativamente todos os meios disponíveis de modo a elucidar o presente e, assim, travar o combate pelo futuro. Umas vezes os resultados serão melhores, outras, piores. Paciência. Em segundo lugar, é urgente dar maior visibilidade ao documentário português. Os circuitos alternativos foram sempre uma forma de divulgação. Seria interessante pensar numa rede que se fosse alargando progressivamente, bem como em edições em DVD. Mas, o grande palco terá obviamente de ser a televisão e em particular o seu serviço público. Sobre esta matéria, que é tão importante para o documentário, quanto para a redefinição estratégica e legitimação do serviço público, está quase tudo por fazer. Por isso, aguardando melhor oportunidade para discutir o assunto, por aqui me calo, até porque acabou o espaço que me foi concedido, mas não sem antes me congratular por esta iniciativa da Apordoc e da Videoteca de Lisboa, cuja seriedade e sentido de missão são uma garantia de futuro para o documentário português.



Referência Bibliográfica

Sussex, Elisabeth – The Rise and Fall of British Documentary (the Story of the Film Movement Founded by John Grierson), University of California Press, Berkeley, Los Angeles, London, 1975.



























crítica do documentário português: 

Continuar a Viver de António Cunha Telles

por Jorge Campos







CONTINUAR A VIVER
(Os Índios da Meia Praia)
António da Cunha Telles, Portugal (1976)

Continuar a Viver de António da Cunha Telles (n. 1935) é um filme feito em circunstâncias peculiares, durante aquele curto período da história recente de Portugal em que a Revolução saiu à rua, após o derrube do regime do Estado Novo, e muitos marcaram encontro com a utopia como se o futuro estivesse ali, ao virar da esquina. Foi o que fizeram os protagonistas de Continuar a Viver, os pescadores da Meia Praia, perto de Lagos, cuja ambição era deixarem as miseráveis barracas onde sempre tinham vivido para, finalmente, poderem ocupar uma casa. Para o efeito, constituíram uma comissão de moradores e com o apoio de uma equipa do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), um organismo enquadrado por arquitectos, meteram ombros a uma iniciativa de autoconstrução semelhante a outras a correr, na altura, um pouco por todo o país. A música de José AfonsoOs Índios da Meia Praia, utilizada recorrentemente, acrescenta ao testemunho das experiências de vida dos pescadores como que uma margem tangível de redenção, uma vez cumprido o percurso libertador para o qual remete, em última instância, a tese do filme.

Cunha Telles é uma figura importante do cinema português. O seu percurso como produtor, realizador e distribuidor, bem como o seu desempenho, nomeadamente em organismos dependentes da tutela como o antigo Instituto Português de Cinema, criado em 1975, foram e continuam a ser objecto de juízos contraditórios. Mas sua energia, capacidade de iniciativa e até utopia em relação a uma determinada visão da produção cinematográfica, esteja-se ou não de acordo com ela, deixaram uma impressão digital em muito daquilo que em Portugal se fez nas últimas quatro décadas.

Desse percurso interessa-nos apenas, e de passagem, a parte que conduz a Continuar a Viver, por forma a reter um mínimo de elementos de identificação do autor. No início dos anos 60, António da Cunha Telles fez um curso de realização no IDHEC, em Paris, após o que, de regresso a Lisboa, aceitou a responsabilidade de dirigir o jornal de actualidadesImagens de Portugal. Esteve, também, à frente dos serviços de cinema da Direcção-Geral do Ensino Primário e orientou cursos da Mocidade Portuguesa (Ramos, 1989: 382). Ligado desde o início ao Cinema Novo, durante seis anos foi o produtor de filmes tão importantes quanto o foram Os Verdes Anos (1962) de Paulo Rocha e Belarmino (1963) de Fernando Lopes, qualquer deles rasgando novos horizontes para uma cinematografia cujos representantes mais jovens ameaçavam romper a teia de compromissos e conformismo da maioria dos cineastas veteranos. Apesar de um número apreciável dos filmes que produziu durante esse período serem hoje obras de referência – o que não quer dizer que sejam todos grandes filmes –, Cunha Telles por dificuldades de vária ordem, viu-se constrangido a declarar a falência da sua produtora.

Em 1969, surge como realizador de O Cerco, o retrato de um quotidiano exaurido e sem futuro de uma pequena burguesia lisboeta oportunista e medíocre, afinal, uma metáfora do ambiente que se respirava em Portugal. Mais ou menos pela mesma altura, funda a Animatógrafo, distribuidora que viria a ser responsável por muito do melhor cinema exibido nas salas portuguesas e, um pouco mais tarde, reincide na realização, desta vez com Meus Amigos (1973), uma tentativa de balanço de vida – ou das expectativas e promessas incumpridas – da geração de 62. O seu filme seguinte seria Continuar a Viver(1975), um documentário.

Etimologicamente, documentário radica na palavra documento que, por sua vez, procede do latim docere, ou seja, ensinar. O documento, cuja origem se perde nos tempos, está associado desde a Idade Média à nossa capacidade de aprendizagem a partir da experiência dos outros, mas nem pode ser encarado como um saber indiscutível, nem legitima nenhuma verdade absoluta. Se assim não fosse, poder-se-ia falar, por exemplo, de uma ciência da História infalível, no sentido em que o discurso dela resultante seria simplesmente verdadeiro, porque equivalente à cópia pura e simples de uma outra existência, situada num campo extra-textual, o real. As coisas não seriam senão elas mesmas o que, evidentemente, não faz sentido.

Com o documentário acontece algo de semelhante. Tal como o documento deixa de constituir evidência de prova em si mesmo, visto ser objecto da interpretação do historiador, cujos modelos obedecem sempre a critérios de mediação do âmbito da linguagem, também o documentário só adquire o seu estatuto monumental – e, portanto, de evidência – em função de regras discursivas que viabilizam a interpretação do real através do ponto de vista de um intérprete. A prova, portanto, é aquela que resulta em proposta do autor e apenas essa.

Como explicar então a persistência do equívoco que vê no documentário um equivalente imediato do real? A resposta, ou parte dela, para simplificar, encontra os seus fundamentos na tradição do realismo do século XIX, na pintura de um Courbet, na fotografia, de um modo geral – percebida desde o início como evidência –, e no cinematógrafo dos irmãos Lumière. A imagem em movimento, com efeito, pelo seu poder de analogia, sugere a possibilidade de autorizar os acontecimentos a exporem- se por si mesmos, falando por si próprios, o que, de resto encontra eco nos teóricos do realismo. O exemplo mais radical talvez seja o de André Bazin quando, insurgindo-se contra as marcas de enunciação tão caras aos formalistas, declarou: “A montagem, que tantas vezes é tida como a essência do cinema, é (...) o procedimento literário e anticinematográfico por excelência. A especificidade cinematográfica, apreendida pelo menos uma vez em estado puro, reside, ao contrário, no mero respeito fotográfico da unidade do espaço (Bazin, 1991: 59)”.

Independente das suas variantes, a verdade é que o realismo, passado o momento das vanguardas dos anos 20, viria a influenciar, em maior ou menor grau, mas de uma forma persistente, as referências matriciais do filme documentário, tanto no respeitante ao percurso pessoal de alguns cineastas, como Joris Ivens, quanto no quadro dos movimentos documentaristas constituídos a partir do início dos anos 30 do século passado e, em particular, do movimento documentarista britânico. Essa influência, bem como a evidência a ela associada, alargar-se-iam a um horizonte temporal pelo qual passam episódios como o neo-realismo no pós-guerra e o cinema directo nos anos 60 – neste caso recolocando entre as prioridades da agenda documental as questões da verdade e da objectividade –, chegando até aos nossos dias, o que levou Brian Winston, numa época de hegemonia do pensamento pós-moderno, a continuar a ver nela a fonte do “poder ideológico do documentário” (Winston, 1995: 11).

Acontece que, em Portugal, não houve nem uma tradição realista ligada ao cinema, nem um acompanhamento dos sinais dos tempos com repercussão na prática durante o período em que se foi construindo, no contexto internacional, o essencial da História e Teoria do Documentário, ou seja, entre o final dos anos 20 e o início dos anos 70, por sinal um período coincidente com a vigência do Estado Novo. Daí uma produção ocasional, muitas vezes respondendo a encomendas de empresas e instituições, sendo difícil falar de documentaristas no sentido de ser essa a primeira opção criativa dos cineastas – António Campos, com as devidas cautelas, talvez possa ser uma excepção. Mesmo as excelentes curtas-metragens de Manoel de Oliveira e as intermitentes incursões documentais do Cinema Novo, mas muito mais neste caso do que no daquele, é sabido serem filmes relativamente marginais no conjunto das obras dos autores. Perante este quadro, não parece descabida a hipótese de, pelo menos em parte, ter sido justamente essa ausência de diálogo com a História do Documentário que permitiu o aparecimento de um punhado de filmes singularíssimos – Oliveira, de novo, e mais tarde, António Reis e Margarida Cordeiro, para citar apenas os casos mais óbvios – ao que, seguramente, não terá sido estranho o diálogo que, como maior ou menor dificuldade, sempre existiu com a História do Cinema.

Com a Revolução de Abril verificou-se uma alteração radical. O documentário português “denotou uma descida à realidade” (Costa, 2004: 135). Em pouco mais de dois anos foram produzidas centenas de filmes, na sua maioria de pendor militante, feitos em 16mm e destinados à televisão. Talvez por, nessa altura, a canção de intervenção, um símbolo da resistência, ocupar uma posição destacada, também a esse cinema foi atribuída igual designação. Propaganda, palavra proscrita, nalguns casos teria sido a designação mais apropriada. A propaganda é, aliás, uma das traves mestras da tradição do filme documentário. Como Paul Rotha salientou pela primeira vez, em 1935, reportando aos filmes soviéticos dos anos 20 e a outros que se lhes seguiram, sobretudo no mundo anglo-saxónico, o cinema ao serviço da propaganda e da persuasão foi “largamente responsável pelo método do documentário (Rotha, 1970: 92)”. Mas, num País que acabava de se libertar do Estado Novo, cujo universo simbólico resultava da amplificação de rituais de propaganda desacreditados, a expressão cinema de intervenção, na medida em que exprime uma profunda vontade transformadora, acaba por fazer sentido. 

Essa enorme produção, marcada pela actividade do Centro Português de Cinema e, de um modo geral, levada a cabo por cooperativas como a Cinequanon, a Cinequipa e o Grupo Zero, sendo desigual, teve o mérito de chamar o social à primeira linha das preocupações dos cineastas e de se constituir num extraordinário acervo de documentos, infelizmente, hoje, nalguns casos, mutilados, quando não simplesmente destruídos. Sobram, ainda assim, múltiplos testemunhos desse período em filmes como As Armas e o Povo (1974), realização de um colectivo de cineastas, Deus, Pátria e Autoridade (1975) de Rui Simões,Cenas da Luta de Classes em Portugal (1976) do americano Robert Kramer, A Lei da Terra(1977) do Grupo Zero, Torre Bela – Uma Cooperativa Popular (1977) do alemão Thomas Harlan, para citar apenas alguns.

É neste contexto, de resto favorável ao aparecimento de um núcleo importante de novos cineastas, entre os quais, José Nascimento, José Álvaro Morais, Lauro António, Margarida Gil e Noémia Delgado, que surge o filme de António da Cunha Telles. Com início de rodagem em 1975, mas só concluído no ano seguinte, Continuar a Viver atravessa um período durante o qual muitas ilusões se criaram e se perderam, outras tantas lutas se travaram com sorte desigual, mas sempre alimentando a secreta convicção, por parte de quem estava do lado revolucionário, de que, no final, como que obedecendo a uma ordem transcendente, a História acabaria por se cumprir, confirmando a razão de ser da utopia. Durante esse período, marcado por dois actos eleitorais, cujos resultados foram inequívocos quanto ao apoio largamente maioritário a um sistema de democracia representativa, e pelo golpe militar de 25 de Novembro de 1975, que pôs um travão definitivo a qualquer alternativa revolucionária, Portugal assistiu a uma multiplicidade de experiências de poder popular, nomeadamente de cooperativas e associações de moradores, as quais reclamavam, com o apoio de técnicos qualificados, o direito à palavra tendo em vista a resolução dos seus principais problemas. Essa era, também, a situação que se vivia na Meia Praia, onde os pescadores, empenhados num processo de autoconstrução, se batiam pelo direito a uma habitação condigna.

Com direcção de fotografia de Acácio de Almeida, responsável por muitas das melhores imagens do cinema português desta altura – Jaime (1974) de António Reis, Brandos Costumes (1975) de Seixas Santos, Máscaras (1976) de Noémia Delgado e Trás-os Montes(1976) de António Reis e Margarida Cordeiro são apenas alguns exemplos –, o filme começa com um genérico de animação de imagem fixa, onde predominam desenhos de casas pintados à mão, servido pela música de José Afonso. Os versos, certeiros, do nosso maior escritor de cantigas, resumem aquilo a que se irá assistir: “Eram mulheres e crianças/ Cada qual c’o seu tijolo/ Isto aqui é uma orquestra/ Quem diz o contrário é tolo”.

O mar vem em seguida, imagens em movimento do recolher de redes de pesca, deixando subentendido tratar-se de uma história de pescadores. É uma curta sequência simples, essencialmente denotativa, que permite identificar o local e dá a entender quem são os protagonistas. A unidade sintagmática seguinte, essencialmente descritiva, começa com um plano fulgurante. Uma panorâmica longa mostra duas dezenas de pessoas, talvez mais, deslocando-se no areal carregando uma enorme barraca sobre os ombros. Ouve-se o mar em fundo e um vozear e gritos de incentivo que combinam com barulhos de brincadeiras de crianças. Corte. Noutro lugar da praia, a barraca transportada pelos pescadores e suas famílias entra em campo pela direita até ocupar quase integralmente o espaço do écrã, para depois começar a afastar-se lentamente da objectiva da câmara, cujo enquadramento vai sendo corrigido de modo a respeitar as linhas de perspectiva, até se perder num ponto distante. A dimensão conotativa da imagem reverte em metáfora do tema central do filme. A narrativa parece ter encontrado o seu caminho. Contudo, justamente neste ponto é lido o seguinte texto, ilustrado com imagens do quotidiano da Meia Praia:

Há dezenas de anos que andam com a casa às costas. Nesta aldeia, os meios de produção, os barcos e as redes pertencem aos trabalhadores, muitas vezes ao velho pai, mas todos vivem em barracas. Não há diferenças entre estes pescadores. A exploração atinge-os por igual. A luta pela sobrevivência cria actos de solidariedade em que o pão incerto para todos é mais importante do que o supérfluo para alguns. As classes privilegiadas, através da suas estruturas, sempre sufragaram o produto do seu trabalho, impondo-lhes uma vida quotidiana dura e sem condições. O peixe vem depois a ser vendido bem caro a outros trabalhadores da cidade e do campo.

A inclusão do texto subverte a ordem discursiva inicial, assente na organização visual, e transporta a significação para o domínio da palavra. Não que haja qualquer problema de princípio em relação à presença de textos em documentários, ao contrário do que parece estar a fazer escola em Portugal na presunção de se estar a fazer cinema de observação, mas há um problema real com este texto em particular. Retórico e explicativo, redigido para ser lido, mais do que para ser dito, e lido por uma voz hesitante, impõe, além do mais, uma visão taxativa do mundo e, como tal, determina não que o mundo enquanto material pró-fílmico seja interpelado, mas antes que seja moldado para caber na vulgata nele contida. Daí a sensação recorrente, a partir desta altura, de que sobra em mensagem o que falta em ponto de vista, entendido este enquanto produção de evidência sustentada por argumentos fundamentalmente de ordem diegética, regulados pelo primado do olhar.

Dito de outra maneira há como que um espartilho a controlar a respiração do filme. Quando ele verdadeiramente se liberta é nos momentos em que a voz é devolvida às pessoas, cujas inquietações, dúvidas e sonhos ganham ressonância na paisagem dos rostos, essa sim profundamente humana e portadora de um desejo ancestral de justiça, como acontece com aquele homem que compara a condição dos pescadores antes e depois da Revolução de Abril: “A gente vivíamos mal, ‘távamos descontentes, mas agora vivemos mais mal, mas ‘tamos mais contentes”. A dificuldade manifesta de organização do discurso verbal por parte daqueles que foram espoliados da palavra durante tanto tempo é, provavelmente, o melhor equivalente da situação da gente da Meia Praia, tão incerta sobre o rumo a seguir, quanto determinada na forma como carrega os tijolos com que pacientemente vai erguendo as paredes das suas futuras casas.

É também com esse estado de espírito, cheio dos sentimentos contraditórios de quem quer acertar tendo medo de errar, mas alimentando a secreta esperança de um futuro melhor, que a gente da Meia Praia vai votar pela primeira vez. Isso transparece do fluxo de imagens e dos testemunhos recolhidos, os quais, no entanto, voltam a ser comentados por nova intromissão do texto lido em voz off: “25 de Abril. Muitos pensam que o voto vai dar o poder aos trabalhadores. Ninguém falta. É a primeira vez que há eleições livres desde há 50 anos. Ignora-se que a indecisão de alguns e os interesses de classe de uma minoria privilegiada farão com que a luta tenha de continuar”. Ou seja, a voz da autoridade delimita o que está a acontecer, sugere o que deveria ter acontecido, e não aconteceu, e prescreve o rumo a prosseguir.

Reside neste tipo de procedimento o principal equívoco de Continuar a Viver porque fragililizando a organização sintagmática, prejudica a narrativa e introduz notas dissonantes de ambiguidade ao longo do texto fílmico. Feito numa altura em que aos documentários se exigia um intuito educativo, no sentido de ensinar ou ajudar a aprender, este filme, à semelhança de outros, pretende desempenhar um papel na dinamização das massas, assumindo-se como instrumento de vanguardas esclarecidas. Há um pescador que diz: “Isto aqui era uma orquestra”. Mas para que a orquestra não desafine é preciso elevar o nível de consciência (de classe) dos músicos. Os versos de José Afonso deixam isso claro. Retomando as palavras do pescador, deixa o alerta: “Isto aqui é uma orquestra/ Quem diz o contrário é tolo”. O tolo, então, que reflicta, que pense melhor, juntamente com os outros músicos, para não desafinar da melodia colectiva.

O didactismo do filme tem no final um momento paradigmático quando o realizador regista os últimos testemunhos dos pescadores, mas agora fazendo passar o microfone entre eles, de mão em mão. Deixar o microfone em campo neste longo plano sequência é o equivalente, por um lado, a dizer “o futuro está nas vossas mãos, façam ouvir a vossa voz” e, por outro, na medida em que de algum modo se revelam os mecanismos do cinema, a reconhecer o seu papel ao serviço de uma causa. Mas, este artifício, aliás, coerente com a estratégia discursiva adoptada, volta a funcionar, sobretudo no domínio da retórica porque, uma vez mais, a mensagem, sendo compaginada com os desígnios ideológicos pré-definidos, incorre no risco do cliché.

É claro que rever um filme como este, 30 anos depois, como é o caso, se permite uma análise formal mais distanciada e, porventura, até algo injusta, na medida em que os documentários com um propósito social, mesmo quando não totalmente conseguidos, acabam sempre por transportar consigo uma carga de informação e de emoções que contribui para um melhor conhecimento de quem somos, coloca, entre outras questões, procurar saber o que aconteceu aos Índios da Meia Praia. Foi o que fez Pedro Sena Nunes em Elogio ao 1/2, uma encomenda da Capital Nacional da Cultura 2005, a cidade de Faro.

A primeira nota é que, apesar de algumas melhorias nas suas condições de vida, muitas das promessas contidas no projecto transformador do SAAL, algo que no filme de Cunha Telles nunca é devidamente contextualizado, ficaram por cumprir. As casas inicialmente construídas foram sendo acrescentadas à medida das necessidades do crescimento das famílias. Outras famílias, entretanto, chegaram, aumentando o caos urbanístico. Os habitantes, sobretudo aqueles que participaram da experiência de há 30 anos e os seus descendentes parecem manter, apesar de tudo, alguns sentimentos comunitários. Já não há José Afonso, há hip-hop. Os problemas levantados por Cunha Telles quanto à vida dos pescadores, no essencial, são os mesmos: a crise da pesca, os problemas da lota, os lucros dos intermediários, as desavenças dos vizinhos, as dificuldades do associativismo e assim por diante. Mas o tom geral do filme está longe de ser pessimista, como, aliás, o título deixa perceber quando se propõe fazer o elogio ao meio
 
Cineasta de uma geração diferente, trabalhando num outro contexto, Pedro Sena Nunes propõe-se fazer uma leitura da Meia Praia que é tanto uma incursão na memória de um passado recente, quanto uma ponte para o diálogo com um cinema que marcou uma época e cuja reavaliação urge fazer por forma a sistematizar aquele que terá sido, porventura, o primeiro encontro do documentário português com os sinais dos tempos. Não se reconhece à maioria desses filmes, é certo, o estatuto devido às grandes obras. Mas o percurso do documentário também não se esgota nessa dimensão, havendo hoje, como, de resto, sempre houve, várias maneiras de o encarar. Se outro mérito não tivesse, Continuar a Viver, que fez o circuito dos festivais com passagem por Cannes, teria sempre valor documental não só por aquilo que mostra e deixa perceber, mas também por aquilo que representa de uma fase em que o cinema foi militante e tomou partido. Despido de ganga ideológica e procurando antes acertar o olhar pela observação, o filme de Pedro Sena Nunes, cuja análise detalhada não cabe, naturalmente, neste espaço, acaba por complementar o filme de Cunha Telles na medida em que não só dá resposta a algumas das questões deixadas no ar na parte final de Continar a Viver, mas também porque, apostando numa diferente percepção do exercício do ponto de vista, como que, pelo menos a partir de determinada altura, devolve os protagonistas a si mesmos, aproximando-se de um realismo de facto, porventura a melhor maneira, como diria Kracauer, de fazer do cinema um instrumento de revelação.

Porto, 15 de Dezembro de 2006.

Referências bibliográficas

Bazin, André (1991). O Cinema, ensaios Ed. São Paulo: Brasiliense.
Costa, José Manuel (2004). Questões do Documentário em Portugal: Um Retrato Cinematográfico. Lisboa: Número-Arte e Cultura.
Ramos, Jorge Leitão (1989). Dicionário do Cinema Português 1962-1988. Lisboa: Editorial Caminho.
Rotha, Paul (with Road, Sinclair and Griffith, Richard) (1970). Documentary Film (The use of the film medium to interpret creatively and in social terms the life of the people as it exists in reality). New York: Communication Arts Books, Hastings House.
Winston, Brian (1995). Claiming the Real (the documentary film revisited). London: British Film Institute.

 Publicado in FERREIRA, Carolin Overhoff (Coord.) - O Cinema Português através dos seus filmes, ed. Campo das Letras, Porto, 2007











Entrevista com Nina Rosenblum

por Jorge Campos

"Para mim, todos os filmes são até certo ponto propaganda, mesmo que pretendam negá-lo."


Cineasta novaiorquina galardoada com um óscar de Hollywood, Nina Rosenblum tem procurado revelar nos seus documentários aspectos menos conhecidos da história e cultura da sociedade americana. No seu percurso de relações pessoais e profissionais cruzam-se a maioria dos nomes da primeira linha do documentário americano contemporâneo, de Albert Maysles a Barbara Kopple, de Michael Moore a Richard Leacock, de Frederick Wiseman a Robert Greenwald. Presença habitual nos principais festivais de todo o mundo, Nina Rosenblum é filha de Walter Rosenblum, um dos grandes fotógrafos da Grande Depressão e da II Guerra Mundial, a quem dedicou um dos seus filmes. 



"Não devemos recear utilizar a mais popular das linguagens do cinema de ficção e aplicá-la na interpretação do que acontece à nossa volta”.
Nesta entrevista dá conta do modo como encara o documentário, a sua história e as suas contradições. As suas palavras complementam de algum modo, numa perspectiva de experiência vivida, algumas das questões discutidas ao longo dos capítulos da minha tese de doutoramento A Lógica das Imagens - Viagem pelo(s) Documentário(s). A sua experiência permite-lhe um olhar crítico sobre a produção, realização, distribuição e exibição de documentários nos Estados Unidos, do qual ressalta o sublinhado dos constrangimentos financeiros e institucionais que transformam, ainda hoje, o cinema independente numa aventura. 

P. Flaherty: significa alguma coisa para si? 


R. O meu primeiro professor de cinema documental foi George Stoney que nos mostrou Man of Aran, um filme todo ele recriado de modo a parecer um documentário. Isso ensinou-me uma coisa muito importante. Enquanto realizadora tenho o hábito de repetir cenas para me aproximar do que sei ser o mais próximo da verdade. Aprendi isso com Flaherty, cujo método nos permite perceber melhor o funcionamento da sociedade. Não há que ter medo de voltar atrás ou de usar os artifícios necessários para que o que é mostrado no ecrã seja tão honesto e rigoroso quanto possível. De certa maneira, ele estabeleceu as regras do que todos nós fazemos.

P. E quanto a Dziga Vertov e O Homem da Câmara de Filmar?

R. Isso é qualquer coisa com a qual nasci a ponto de ter dificuldade em entrar em considerações de ordem intelectual. Tenho dificuldade em analisar o filme, dividi-lo em partes ou relevar este ou aquele aspecto porque ele faz parte do meu sangue. O mesmo acontece com Eisenstein. O meu pai estava sempre a mostrar-nos os seus filmes e isso foi como aprender o abecedário desta profissão. Foi com ele que aprendi a construir estruturas narrativas, a elevar a tensão dramática através da montagem, ao fim e ao cabo foi com ele que percebi que não há grandes diferenças entre um documentário e um filme de ficção: o ponto de partida é que é diferente, porque tudo o resto é igual.

P. Houve um tempo em que o filme documentário esteve muito vinculado há propaganda. Que pensa de uma série como, por exemplo, Why we Fight, de Frank Capra?
R. Estudei essa série para tentar perceber um pouco melhor o que é um filme de tese ou um filme de causas. Para mim, todos os filmes são até certo ponto propaganda, mesmo que pretendam negá-lo. Tudo tem um ponto de vista. A objectividade não existe. Fazer um filme com o intuito de mobilizar e instigar, como fez Frank Capra, é qualquer coisa que todos nós fazemos e que Hollywood faz embora jamais o possa admitir. Enfim, ele é um grande realizador e soube entender no momento certo aquilo que era preciso ser feito pela América e para que a América passasse à acção.

P. E sobre Leni Rienfensthal?

R. Ponho a questão da mesma maneira. Criou imagens extraordinárias, embora por razões sinistras.

P. Pessoas como Robert Drew, os irmãos Maysles ou Richard Leacock até que ponto foram determinantes para o documentário da actualidade?

R. Conheço-os a todos bastante bem, sou amiga de Al Maysles e falei muitas vezes com Ricky Leacock. As câmaras de 16mm que eles utilizaram permitiram fazer um cinema muito mais livre. De súbito desapareceram os constrangimentos dos equipamentos pesados, das enormes equipas de rodagem e o resultado foi uma muito maior proximidade dos cineastas face aos seus temas e protagonistas. Ainda hoje a sua influência se faz sentir no documentário, mesmo com a televisão...

P. Que quer dizer com isso?

R. Na América o documentário conhece crises periódicas que são de certo modo devidas ao poder imagético da televisão. Cada vez é mais difícil angariar fundos que nos permitam fazer os filmes que queremos fazer. Por necessidade, muitos realizadores acabam por trabalhar para o cabo com orçamentos que raramente ultrapassam os 80 mil dólares. Para se perceber o que quero dizer basta recordar que Liberators, o filme que fiz sobre a participação de negros americanos na libertação de prisioneiros dos campos de concentração nazis, custou um milhão e duzentos mil dólares. A televisão faz filmes superficiais de acordo com formatos previsíveis. Recuso-me a chamar-lhes documentários. Tratam de temas da actualidade, mas o estilo é o da lavagem ao cérebro. Os grandes documentários mudam as pessoas! Não se lhes pode ficar indiferente. Pelo contrário, aquilo que é a produção standard da televisão é como música de elevador: adormece, entorpece, acalma, faz-nos pensar que estamos em contacto com a realidade quando, de facto, não estamos. É a antítese do cinema documental.

P. O que acaba de me dizer lembra-me um livro de Rosselini escrito há muitos anos sobre a utopia da televisão e quão longe essa utopia parece estar. Pensa que a televisão pode ter outro valor de uso?

R. Absolutamente. É um medium fantástico. Tão poderoso que todos querem controlá-lo. Foi por isso que reduziram a PBS, o serviço público de televisão americano, a um canal tão parecido com as televisões comerciais, embora de quando em quando ainda guardem uma franja do horário para o documentário. Quando passaram os grandes documentários, como Harlan County, Roger and Me ou os grandes filmes de Fred Wiseman, assustaram-se. Foi demasiado forte!

P. Porque é que os filmes de Wiseman assustaram?

R. Frederick Wiseman é um dos documentaristas mais profundos e abrangentes do nosso tempo. Foi o filme que ele fez sobre os tribunais de menores, juntamente com Hearts and Minds, de Peter Davis, que me levaram a escolher esta profissão. O pathos e a devastadora veracidade com que ele penetrou no coração de sistemas e instituições horrorosos e no impacto aterrador que esses sistemas têm na vida das pessoas estão nos antípodas dos programas que a televisão faz, por exemplo, sobre polícias. Na televisão vemos os agentes a perseguirem traficantes, prendê-los, deitá-los ao chão, dar-lhes pontapés e todos ficamos a pensar: que bom! Wiseman não tem nada a ver com isso.

P. Todos os seus filmes têm a América por cenário e os problemas sociais em primeiro plano. O que é que a faz correr nessa direcção?

R. Acho que nos Estados Unidos criamos uma fachada para dar a ver ao mundo, mas há depois a realidade de uma opressão e pobreza realmente trágica mascarada pela cultura que exportamos através da publicidade e das relações públicas. Nesse sentido, todos nós vivemos uma vida esquizofrénica porque, por muito que tenhamos feito, fizemo-lo à custa de muitas pessoas que estão afundadas em nada. Há mais pessoas presas nos Estados Unidos per capita do que em qualquer outro país do mundo. A nossa maior indústria é a indústria das prisões. Há verdadeiramente duas Américas. Quando eu fiz o filme para a HBO, Lock up: The Prisioners of Rickers Island, chamamos-lhe Uma História de Duas Cidades: por um lado, temos Nova Iorque onde tudo parece perfeito, mas isso não seria possível sem os seus subterrâneos, ou seja, a Ilha de Rickers. Vivemos uma mentira, porque só vemos a superfície sem termos qualquer percepção das suas raízes. Pela minha parte, sinto-me muito próxima das pessoas que foram e são oprimidas. Porquê? Porque produziram uma cultura espantosa, cheia de vigor, que criou o Jazz, e outras formas de música e tantas outras coisas. O facto de haver uma História Americana que os americanos se recusam a ver gera uma cultura demencial.

P. Nessa perspectiva, que devem fazer os documentaristas?

R. Acho que não devemos recear utilizar a mais popular das linguagens do cinema de ficção e aplicá-la na interpretação do que acontece à nossa volta. Quando estava na escola era muito frequente mostrarem-nos os chamados documentários educativos e eu simplesmente odiava-os porque eram pesados e desinteressantes. Por isso, há que encontrar um estilo que chegue às pessoas e as faça querer ver, que lhes torne acessível uma realidade que todos devemos conhecer para nos conhecermos melhor a nós próprios, que nos permita sermos menos esquizofrénicos e cruéis, e mais humanos. Porque eu não tenho dúvidas sobre o que acontece quando alguém nega a humanidade de outra pessoa: enlouquece. E nos Estados Unidos temos muitas pessoas perturbadas. Mas isto não quer dizer que por razões de eficácia se possa aceitar o estilo televisivo dominante. Pelo contrário. Os grandes documentários americanos da actualidade – estou a falar de filmes de pessoas como Michael Moore, Barbara Kopple ou Deborah Shaffer – são filmes que todo o americano médio quer ver, mas nada têm a ver com esse estilo televisivo. Esse é o grande desafio que se põe ao cinema documental independente na América, que existe e está vivo.

P. Pelo que acaba de me dizer, não deve ser fácil fazer passar esses filmes na televisão...

R. É cada vez mais difícil produzi-los e exibi-los.

P. Dê-me o exemplo do seu caso pessoal...
R. No início da minha carreira, em 1980, angariei fundos junto da National Endowment for the Humanities que me atribuiu 350 mil dólares para fazer America & Lewis Hine. Recorri também a diversas fundações e à televisão pública. Após quatro anos de produção e angariação de fundos o filme abriu o Festival de Cinema de Berlim, ganhou o prémio IDA, foi vencedor em Sundance e passou nos principais festivais de todo o mundo. Seguiu-se Through the Wire, para o qual voltei a angariar fundos. Uma pessoa a título individual deu-me 70 mil dólares, consegui outras pequenas contribuições, fizemos uma co-produção com o Channel Four e com a SPS australiana e o filme foi emitido. A partir daí os dinheiros públicos começaram a diminuir. Voltei-me, então, para a HBO para fazer Lock Up: The Prisioners of Rikers Island. Com os dois filmes anteriores tive 99,9% de controle, mas com a HBO fui obrigada a travar uma batalha tremenda porque eles queriam inverter o sentido do filme...

P. Como?!...

R. Queriam omitir a brutalidade da polícia e dos guardas, bem como os problemas sociais e os motivos tantas vezes ligados à pobreza que levam as pessoas à prisão. Por outro lado, entendiam que era necessário dar ênfase à violência dos prisioneiros, ao tipo de armas que utilizavam, no fundo justificando o que acontecia dentro da cadeia. As divergências foram tão grandes que provavelmente nunca mais voltarei a trabalhar com a HBO.

P. Foi a seguir que fez Sly and the Family Stone?

R. Sim, mas antes de Sly fomos trabalhar com a Turner onde até certo ponto tudo correu muito bem. Tínhamos 600 mil dólares, boas condições de trabalho e acho que fizemos um filme maravilhoso, The Black West. Mas, quando estávamos a terminá-lo os advogados da Turner ligaram-nos a dizer que teríamos de mudar toda a parte central que era aquela que nos parecia mais interessante. Andamos a jogar o jogo do gato e do rato, mantivemos essa parte, o filme foi exibido em toda a Europa e ganhou um Emmy nos Estados Unidos. Sly veio a seguir, escrito e co-produzido por Dennis Watlington para o Showtime/NYTimes. Visitamos a família de Sly, fomos até à igreja onde Freddy tocava, a mãe de Sly estava presente, enrevistámos Rose e Billy Preston, enfim foi uma das grandes experiências da minha vida. Era um filme sobre a importância daquele tipo de música, sobre o que tinha acontecido nos anos 60 com as mudanças suscitadas pela guerra no Vietname, Woodstock, o fim de Woodstock e depois o início da era Reagan que pôs fim a todas as ilusões de acabar com o sexismo, o racismo e de substituir a competição pela solidariedade. Infelizmente, o Showtime/NYTimes não estavam interessados nessa mensagem. Queriam que Sly Stone fosse retratado como um palerma drogado, recusaram qualquer espécie de contexto social e acabaram por remontar o filme retirando-lhe grande parte da sua autenticidade.

P. Como reage a todas essas dificuldades?

R. Procuro sempre manter o controlo sobre a produção, por muito pouco que ganhe, ou muitas dívidas que tenha, porque de facto me endividei muito e o meu pai que já teve um ataque cardíaco e não quer voltar a ter outro (risos). Ele é um pai que viveu a Grande Depressão e por isso está sempre preocupado com a nossa sobrevivência. Ver-me investir tanto dinheiro pessoal aborrece-o muito, mas não há outra maneira. As forças dominantes da televisão dos dias de hoje são tão limitadas e tão institucionais – falo de propaganda institucional – que, para eu poder dizer as coisas que quero dizer, tenho de proceder deste modo. É assim para mim, para William Klein e para muitos outros. Quando nos envolvemos com as televisões comerciais, os filmes são deles, o controlo é deles, somos forçados a lutar, mas nunca se consegue vencer...



























Two Lens de Nina Rosenblum e Dennis Wattlington sobre mulheres fotógrafas


   








DOCUMENTÁRIO: 
SUBSÍDIOS PARA UM CINEMA DO REAL
por Jorge Campos














                           “Sometimes you have to lie. One often has to distort a thing to catch its true spirit”.

                                                                                                                                Robert Flaherty  
  
                                                                                               
Representação e distorção são conceitos desde sempre na primeira linha das preocupações do homem a partir do momento em que se pôs a pensar o real e a realidade e assim começou a construir os seus paradoxos magníficos. Platão via no mundo das ideias o fundamento de tudo o que existe no mundo sensível. Sendo, porém, o mundo sensível apreendido através dos sentidos, que são enganadores, então a realidade é aparência e, portanto, falsa. Para Descartes, há uma ideia das coisas e do mundo em correspondência com a realidade, mas é impossível conhecer a realidade em si. Em Kant a realidade é o “númeno” e aquilo a que temos acesso, por via de impressões sensíveis e de construções empíricas, é o "fenómeno". O acesso à realidade é, pois, de ordem fenomenal, uma manifestação sensível da coisa sem carácter de transcendência. Este percurso epistemológico de inúmeras variações serve igualmente o cinema e, em particular, o filme documentário. A forma peculiar de relação deste último com o real partilha esse mesmo labirinto como se fosse um poliedro de cristal: consoante a refracção luminosa e a valorização de uma ou outra face, assim também se dá início a um jogo de construção da realidade a partir do qual vamos descobrindo que um documentário, afinal, pode ser muitas coisas.

As obras clássicas no âmbito das teorias do cinema não dão grande destaque ao filme docmentário. Rudolf Arnheim, por exemplo, não lhe dedicou atenção especial. Tanto melhor. Vejamos o universo cinematográfico, como ele o entende, ou seja, como uma janela através da qual é possível ver o mundo – entenda-se: ver o mundo igual a compreender o mundo. Arnheim far-nos-ia virar essa janela até um ângulo em que o vidro começasse a refractar a luz, distorcendo o que está para além dele e, ao mesmo tempo revelando as suas propriedades. Repentinamente tornamo-nos conscientes da composição do vidro, da sua textura, dos tipos de luz que ele permite passar e assim por diante. A arte cinematográfica é um produto da tensão entre a representação e a distorção. O documentário também. 

Com efeito, quando se procura defini-lo ocorre estarmos em presença de um objecto do campo cultural que remete para o domínio de discursos de natureza diversa sobre o mundo real (Guynn: 2001). Esses discursos, entendidos no cinema como a materialização de significados resultantes da articulação gramatical de signos, são portadores de mimesis, mas também de diegesis, sendo que a primeira remete para a imitação e a segunda para a narrativa. É nesta duplicidade de sentido da qual o pathos, uma estrutura narrativa que requer a dramatização, é inseparável que se inscreve a ideia de filme documentário. Mas é, também, justamente aí – e, portanto, na poética, no sentido aristotélico que remete para as regras a seguir para a realização da obra de arte – que residem as maiores dificuldades de decifração de um bem simbólico supostamente representativo do real.

Documentário e evidência

Desde a  Idade Média, o documento, do latim docere (ensinar), aparece associado à nossa capacidade de aprendizagem a partir da experiência dos outros. Encarado durante muito tempo como um saber absoluto, a sua mera existência seria a razão mesma da sua verosimilhança. Nessa perspectiva, seria legítimo aceitar uma concepção da História segundo a qual o discurso dela resultante seria simplesmente verdadeiro porque as coisas não seriam senão elas mesmas. Porém, se assim fosse, encarado na perspectiva da linguística moderna, o significante seria a expressão imediata do real o que conduziria ao paradoxo de que fala Barthes a propósito da pertinência do discurso histórico em relação a outro tipo de discursos: “(...) tudo se passa como se essa existência não fosse senão a ‘cópia’ pura e simples de uma outra existência, situada num campo extra-textual, o ‘real’ (Guynn: 2001), o que, evidentemente, não faz sentido.

Com o documentário passa-se algo de semelhante. Tal como o documento deixa de constituir evidência de prova em si mesmo visto ser objecto da interpretação do historiador, cujos modelos obedecem sempre a critérios de mediação do âmbito da linguagem, também o documentário só adquire o seu estatuto monumental – e, portanto, de evidência – em função de regras discursivas que viabilizam a interpretação do real através do ponto de vista de um intérprete. A prova, portanto, é aquela que resulta em proposta do autor e apenas essa.

Como explicar então a persistência do equívoco que vê no documentário um equivalente imediato do real?

Para Brian Winston a legitimação do documentário recolhe fundamentos que vêm do realismo do século XIX, nomeadamente da pintura de um Courbet e da fotografia de um modo geral. A imagem cinematográfica, por sua vez, dado seu poder de analogia, parece ser um veículo privilegiado para produzir o discurso da verosimilhança e daí a tentação de atribuir ao documentário a propriedade de autorizar os acontecimentos a exporem-se por si mesmos, falando por si próprios.

Documentário é cinema

Essa propriedade tem expressão nas teorias realistas, cujo expoente é André Bazin. Para ele, a fotografia estabelece uma relação assíntota com o real, ou seja, aproxima-se cada vez mais dele (Bazin: 1991). Essa relação, devido ao movimento, ganha contornos de maior evidência no cinema, o qual, por isso mesmo, deveria evitar todos os artifícios da linguagem para efeito de representação. Como tal, a montagem, pedra angular das teorias formalistas, não pode deixar de lhe suscitar reservas:

“A montagem, que tantas vezes é tida como a essência do cinema, é (...) o procedimento literário e anti-cinematográfico por excelência. A especificidade cinematográfica, apreendida pelo menos uma vez em estado puro, reside, ao contrário, no mero respeito fotográfico da unidade do espaço” (Bazin:1991).

Daí a importância que Bazin atribui à profundidade de campo, como faz Orson Welles emCitizen Kane (1941), a qual permite atenuar o efeito do corte e sublinhar aquilo que designou por realismo espacial. Para ele, uma cena realista é, por exemplo, aquela em que o esquimó de Nanook of the North (1922) de Robert Flaherty se prepara para caçar uma foca, posto que todos os elementos indispensáveis à compreensão do que está a acontecer são dados num único plano. Na verdade, o exemplo não poderia ser mais oblíquo uma vez que, por um lado, a fita de Flaherty é encenada de princípio ao fim e, por outro, no caso vertente, não só a cena tem vários planos como, lembra Hélio Godoy, “a foca estava morta” (Godoy: 2002). De qualquer modo, poder-se-ia afirmar que no limite o realismo purista de Bazin seria “o documentário total” despojado de todas as marcas de enunciação: “É a revelação neutra, impassível, não humana de um mundo objectivo” (Tudor: 1985).

Entre os realistas há, no entanto, diferenças de opinião. Kracauer é céptico em relação aos filmes de tipo documental, nos quais inclui os cine-jornais, porque, segundo ele, sofrem de limitações que contrariam a essência do próprio cinema. Limitar-se-iam a descrever acontecimentos sem ousar aquilo que o cinema permite, aquilo que talvez fosse mesmo impossível conhecer antes da sua invenção, ou seja, a descoberta do real. Para ele, o cineasta persegue dois objectivos: o registo da realidade e “a revelação dessa mesma realidade através do uso criterioso das propriedades disponibilizadas pelo médium” (Andrew, 1976). O seu realismo volta-se então para o filme de enredo, cujas histórias devem ser encontradas no seio da existência humana e no seu peculiar modo de afirmação ou negação. Para ele, sem o argumento o cinema estaria condenado a uma visão superficial da vida, o que seria contrário à sua vocação de descobrir e dar a ver a razão profunda das coisas ou, como diria Bazin, de desempenhar um papel de “redenção da realidade física”.

Percorrendo embora caminhos diferentes, Bazin partilha com Kracauer o mesmo ponto de partida de exequibilidade improvável, ou seja, estão ambos envolvidos “na tentativa de criar uma estética não social do real” (Tudor, 1985). Claro que quer num caso, quer no outro, as contingências dos respectivos percursos obrigam a notas à margem. Bazin valoriza Vertov e o seu Kino-Pravda (1922-1925). Sugere então que observados determinados limites, desde que respeitada a unidade do espaço e, portanto, o mundo ‘artificial’ do filme e o mundo ‘real’ tenham características partilhadas, a montagem poderá ser aceitável [1]. Kracauer, cujo pensamento estético resulta do convencimento da possibilidade do cinema permitir tecnicamente a revelação do real, acaba por reconhecer o direito que assiste aos realizadores de expressarem o seu próprio ponto de vista: o que estaria em causa seria um realismo humano, portanto, não um realismo de facto, mas de intenção. Ao cineasta caberia, assim, a partir da fidelidade ao mundo histórico, executar o argumento capaz de promover a aproximação ao real absoluto.

Ao invés de Bazin e de Kracauer, Arnheim rejeita o realismo e sustenta que todos os artifícios são válidos desde que legitimadores da arte do cinema. Diz Arnheim que se o cinema se sujeitasse a ser apenas uma representação do real não deixaria lugar para a intervenção do criador. Aliás, a representação tal qual desse mesmo real é impossível como o demonstra a comparação entre os elementos básicos da linguagem cinematográfica e as características correspondentes daquilo que percebemos como realidade: “Notar-se-á como são fundamentalmente diferentes os dois tipos de imagens; e que são precisamente essas diferenças que dotam o cinema dos seus recursos artísticos” (Arnheim: 1989).

Que diferenças são essas que tornam o cinema irreal? Em primeiro lugar, os objectos são dados a ver numa superfície bidimensional – o espaço do ecrã – e não a três dimensões como acontece com o olho humano. Essa circunstância reduz o sentido da profundidade e coloca o problema do tamanho da imagem. Esta, por sua vez, requer o artifício da iluminação e, numa altura em que o cinema era a preto e branco, prescindia da cor. O enquadramento, por sua vez, é determinado por um conjunto de opções da parte de quem opera a câmara de filmar e a montagem quebra a continuidade espacio-temporal do real. Finalmente, a imagem cinematográfica, antes do advento do som, solicita apenas a visão, prescindindo dos demais sentidos.  Em suma, conclui Arnheim, o cinema convoca a presença de todos estes elementos irreais que são, afinal, a sua matéria prima enquanto arte.

Se, em rigor, estas reflexões não remetem imediatamente para o domínio do filme documentário, a verdade é que elas nos permitem um jogo cruzado cujo resultado não é mais do que a possibilidade de a partir dele pôr em evidência eixos fundamentais da sua identificação: em Bazin encontramos a linha de uma tradição realista que faz parte do acervo cultural do ocidente e que se exprime em forma de arquétipos ao opor, por exemplo, a verdade e o erro, a história e a ficção, numa perspectiva segundo a qual o real filmado se aproxima do real real; em Kracauer o realismo é investido de cambiantes que se introduzem no plano do discurso através da maior ou menor fidelidade do argumento ao mundo histórico; em Arnheim a negação do realismo serve para justificar a necessidade de dominar os artifícios que o cinema requer, de modo a impor um ponto de vista autoral que abra as portas do universo da Arte. Nada disto é estranho ao filme documentário.

Parece lícito, portanto, concluir que há leituras das Teorias do Cinema que autorizam o reconhecimento de uma linha de continuidade aplicável ao filme documentário. Por alguma razão, para dar apenas um exemplo, os seus primeiros modelos discursivos podem ser vistos como um produto do filme mudo preocupado com a orquestração visual e com a expressão simbólica, uma e outra associadas às correntes formalistas e às vanguardas artísticas, com Eisenstein e Dziga Vertov à cabeça, mas recolhendo igualmente subsídios tão diversos quanto o são os de Lev Kuleshov, Jean Epstein, Paul Strand, Joris Ivens, Ralph Steiner ou Man Ray.

Documentário é e não é ficcional

Contudo, se é fundamental concluir pela existência de um campo a partir do qual os postulados do filme documentário são encarados como parte integrante do universo cultural e textual do cinema, é igualmente pertinente relevar áreas de diferenciação e de especificação, nomeadamente tendo em conta aspectos relacionados com a fenomenologia do espectador. Kracauer, para quem o documentário é ambíguo nas suas proposições, suscita um dilema que Andrew sintetiza do seguinte modo: “Deverá o documentário, o género mais estritamente vinculado à exploração da realidade, ficar subordinado ao capricho das intrigas inventadas pelos argumentistas?” (Andrew: 1993).  É uma boa questão a suscitar algumas considerações em torno da questão documentário/ ficção

Até à afirmação da televisão como meio de comunicação de massas no final dos anos 40, embora muitas vezes associado à rádio e à fotografia, o documentário designou, sobretudo, um determinado tipo de filme, ao qual, por razões diversas, se associavam imediatamente nomes como os de Flaherty, Vertov, Grierson ou Joris Ivens. Todos eles tinham em comum a pesquisa de um novo tipo de cinema que escapasse à lógica do estúdio e fizesse a abordagem do mundo histórico de um modo peculiar. Todos eles perceberam que os seus documentos eram resultantes de um discurso, ao qual era inerente um ponto de vista e, portanto, uma interpretação. Todos eles, de um modo ou de outro, tiveram a noção dos limites da objectividade. Enfim, todos eles participaram desse debate que, grosso modo, procurou distinguir o campo documental do campo ficcional.

Porém, a história das tentativas de distinguir ficção e documentário (ou cinema de ficção e cinema de não-ficção, que não é rigorosamente equivalente a documentário), não é mais do que o encontro com um conjunto reiterado de evidências. Em síntese, pode dizer-se que quanto mais se avança na reflexão sobre o modo como se constroem os documentários, tanto mais é forçoso reconhecer a presença de técnicas e artifícios comuns à produção ficcionada: as personagens, ainda que pertencentes ao mundo real, são tratadas de modo a ganharem espessura dramática; o argumento, mesmo tendo origem na actualidade, é construído em função de estruturas narrativas capazes de criar a emoção e de manter o interesse do espectador; os acontecimentos, ainda que captados in loco, são editados tendo em conta o ritmo proporcionado por técnicas de montagem geradoras de tensão e pontos culminantes. Diria Godard:

“todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção. (...) E quem optar a fundo por um deles encontra necessariamente o outro no fim do caminho” (Godard: 1985).

A razão que possa assistir a Godard – e muita, seguramente, assiste – deve, no entanto ser confrontada com outros parâmetros de observação. Tratando-se de “um argumento sobre o mundo histórico” (Nichols: 1993), o documentário, ao promover a representação do real, fá-lo na base de um contrato estabelecido com o destinatário que não é o mesmo que se estabelece em relação a outro tipo de filmes. Esse contrato prescreve uma norma e contém uma cláusula de negação. A norma: a presença do olhar documentário que combina a apresentação da matéria prima do mundo sócio-histórico com a imaginação criadora de um autor. A cláusula de negação: o que é dado a ver não é entendido pelo público como ficção. Guynn vai mais longe ao afirmar que “é precisamente contra a ficção e as suas tradições que se foi constituindo a teoria do documentário” (Guynn: 2001).

Para ele, só isso se pode afirmar com segurança no quadro institucional do seu percurso histórico, o qual – ainda segundo Guynn – assenta fundamentalmente sobre três pilares: em primeiro lugar, o documentário tem a sua filiação natural num cinema liberto dos constrangimentos impostos por procedimentos recorrentes de outras artes como a literatura e o teatro; em segundo lugar, o documentário situa-se a si mesmo, no plano institucional, por oposição ao cinema de ficção, propondo uma crítica da suas condições de financiamento, produção e distribuição; finalmente, o documentário proclama o ‘realismo’ do seu discurso por oposição ao mundo imaginário da ficção, assumindo uma função ‘natural’ na sua relação com o seu objecto ‘natural’. Em suma, “o documentário distingue-se não somente pelo seu ‘conteúdo’ específico, as suas formas e os seus métodos, mas também pelo lugar que assume enquanto formação social (Guynn: 2001).

Outros autores, como Ellis seguem uma linha de pensamento semelhante que poderia resumir-se do seguinte modo: o documentário distingue-se de outro tipo de filmes em função dos assuntos de que trata, do modo como articula objectivosponto de vista/abordagem, da sua forma, das suas técnicas e métodos de produção e da sua relação com o público (Ellis: 1989). Os assuntos remetem para acontecimentos factuais e personagens reais perante os quais o documentarista procede a uma interpretação pessoal tendo em vista informar ou persuadir o público de modo a que ele possa tomar posição sobre aquilo que lhe é proposto. A forma como o faz respeita os factos e as personagens através de uma ordenação do material fílmico à qual estão subjacentes procedimentos – como a relação com os protagonistas, ausência de actores profissionais, rodagem in loco, cenários naturais, etc. – de ordem formal, ética e estética. Mas, essa forma é sempre uma escolha sua. 

Epílogo (em aberto)

Havendo acordo de princípio quanto aos pilares do percurso histórico do documentário resultantes do enunciado de Guynn – e ele é suficientemente consensual para dispensar outros comentários – conclui-se que o documentário é, em suma, um  vastíssimo campo de experimentação do cinema que está muito para além das suas narrativas mais previsíveis. Os seus modos de enunciação, até porque se trata de declinar o real na sua infinita variedade, inscrevem-se num espaço em relação ao qual ganha relevância a voz pessoal em registos que tanto se expressam de modo mais convencional e através de códigos mais familiares, quanto descolam em direcções imprevistas criando universos de objectos estranhos que fazem dessa estranheza uma fonte de revelação conferindo novas energias à renovação do cinema. Em qualquer dos casos, há produção portuguesa relevante. Para que conste, e para citar apenas filmes muito recentes: José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes, Fanatasia Lusitana de João Canijo, Hope de Pedro Sena Nunes e 48 de Susana Sousa Dias.



BIBLIOGRAFIA

Andrew, J. Dudley – The Major Film Theories - An Introduction, Oxford University Press, London, Oxford, New York, 1976.
Arnheim, Rudolf – A Arte do Cinema, Edições 70, 1989.
Bazin, André – O Cinema - Ensaios, ed, Brasiliense, São Paulo, 1991.
Godard, Jean-Luc – Jean Luc-Godard par Jean-Luc Godard, Edition de L’Étoile, Paris, 1985.
Godoy, Hélio – Documentário, Realidade e Semiose: os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento, ANNABLUME, São Paulo, 2002.
Guynn, William – Un cinéma de Non-Fiction - Le documentaire classique à l’épreuve de la théorie, Publications de l’Université de Provence, Aix-en-Provence., 2001.
Nichols, Bill – La representación de la realidad - Cuestiones y conceptos sobre el documental, Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona, 1997.
Tudor, Andrew – Teorias do Cinema, Edições 70, Lisboa, 1985.

[1]. Bazin considera essencialmente dois tipos de montagem : a montagem narrativa, a qual, no fundo permite estruturar a história que se pretende contar, e a montagem psicológica que atende a parâmetros de espaço-tempo, de modo a acentuar a verosimilhança do relato. - Nota do Autor.





Arqueologia do documentário português

Jorge Campos



Há uma ideia segundo a qual, pelo menos até Douro Faina Fluvial (1931) de Manoel de Oliveira, a produção portuguesa de filmes documentais acompanhou o que se fazia  nesse domínio em países onde, durante o mesmo período de tempo, o cinema teve outro fôlego e outra ousadia. Essa ideia, aparentemente vinculada aos mitos que se foram criando ao longo dos anos como resultado de uma tentativa, aliás pertinente, de legitimação da identidade e especificidade do cinema feito em Portugal, na base da simples reflexão, carece de prova e é até improvável. Veiculada ao longo dos anos por cinéfilos de várias gerações, a verdade é que, até ao momento, e ao contrário do que sucede na produção teórica sobre o documentário noutros países, não se conhecem estudos centrados especificamente no domínio dos filmes factuais demonstrativos daquilo que recorrentemente se afirma. Pretendo, pois, suscitar dúvidas de cujo eventual futuro esclarecimento possa resultar um sentido mais rigoroso para o chamado documentário português.
Os filmes documentais e o filme documentário são distintos. Os primeiros reportam aos acontecimentos do quotidiano e, de um modo geral, não recriam a actualidade em função da imaginação criadora, mesmo quando neles se reconhece, hoje, a qualidade expressiva de muitas imagens a par, naturalmente, das referências costumeiras à futilidade, às fraudes e à irrelevância expressiva. O segundo, tendo pontos de contacto com os filmes documentais, visto estar igualmente vinculado ao real, requer outro tipo de abordagem porque, situando-se no campo da arte, exige a narratividade criativa. É certo que na história do documentário anterior ao advento do som não há um número muito significativo de filmes indiscutíveis. Mas, é igualmente verdade que onde esses filmes surgiram – Estados Unidos, França, Holanda, Alemanha e União Soviética, para citar os exemplos, porventura, mais evidentes – o cinema conheceu um desenvolvimento e uma expressão formal sem termo de comparação com o caso português.


No contexto dessas cinematografias avançadas, há, por vezes, uma linha evidente de superação da estratégia de newreels para um patamar de nível superior. O caso mais relevante será o de Dziga Vertov e do seu kino-pravda, um jornal de actualidades no qual, a partir de determinada altura, o experimentalismo abriu as portas a um filme documentário de novo tipo. Sabendo-se como tudo se relaciona e numa perspectiva evolutiva, parece, portanto, excessiva a equiparação dos filmes documentais portugueses “ao que de melhor se fazia lá fora” como sugeriu, por exemplo, Luís de Pina. É claro que a passagem do filme documental para o documentário não é a via única de acesso à narratividade expressiva sobre o real nem, tão pouco, a principal. Mas, mesmo olhando a outros percursos, até o filme de Oliveira, que se inscreve na linhagem das sinfonias das cidades associadas às vanguardas dos anos 20, surge com algum atraso. Para se perceber melhor a questão vejamos, a traços largos, o que foi a arqueologia dos filmes documentais dentro e fora de portas, sendo que arqueologia, aqui, reporta à avaliação de filmes e episódios da história do cinema português cuja temporalidade se situa entre o aparecimento em película das imagens em movimento  e o advento do cinema sonoro.

Os primeiros filmes documentais
A figura do caçador de imagens é uma presença de sempre no imaginário dos documentaristas. No início, o acto de filmar mais não era do que animar o instante fixado na imobilidade da fotografia. Mas, a reprodução do movimento, só por si, depressa deixou de ser uma prioridade. Quando os irmãos Lumière mandaram os seus operadores Mesguich e Promio filmar os quatro cantos do mundo aperceberam-se de que o interesse do público não residia no real, mas na imagem desse real transformada pelo olho da câmara. Nesse momento, terá surgido, intuitivamente, a ideia sincrética de um real imaginado. Vinte anos mais tarde falar-se-ia de fotogenia, essa espécie de alquimia potencialmente emocionante que permite reverter em espectáculo o que não é espectacular, como sejam operários saindo de uma fábrica ou chegadas e partidas de comboios, no fundo, o desenvolvimento de outras experiências pioneiras como a dos obsessivos estudos de Muybridge, em 1880, sobre o movimento dos cavalos através da projecção de fotografias com o auxílio de uma adaptação da lanterna mágica.
Em L’Arrivée d’ un Train en Gare (1895), filmada em La Ciotat, no sul de França, uma câmara de Louis Lumière captou a aproximação de um comboio a ponto dos espectadores se assustarem perante a ameaça da locomotiva aparentemente incapaz de se deter. Ao desembarcarem, passando diante da câmara de filmar, os passageiros pareciam confundir-se com o público numa prodigiosa sensação de proximidade e profundidade, tão diferente da experiência proporcionada a esse mesmo público nas salas de teatro. Algo de novo acontecia: uma composição da imagem em função da qual, devido ao movimento dentro do quadro, se antevia já a escala dos planos.
Tamanho foi o impacto do cinematógrafo que seis meses após a estreia em Paris, segundo Erik Barnouw o cinematógrafo estava em Inglaterra, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria, Hungria, Suiça, Espanha, Itália, Sérvia, Rússia, Suécia e Estados Unidos e, pouco depois, na Argélia, Tunísia, Egipto, Turquia, Índia, Austrália, Indochina e Japão. Ao cabo de dois anos, os operadores dos irmãos Lumière viajavam por todos os continentes, à excepção da Antárctida [1].


No final de 1897, com mais de uma centena de caçadores de imagens espalhados por todo o mundo, o cinematógrafo atraía milhões de espectadores com os seus filmes documentais ou panoramas. Pela mesma altura, primeiro Méliès e depois Porter, utilizando câmaras com mais metros de filme começaram a contar histórias, nas quais, ao contrário do que acontecia nos panoramas, uma incipiente ligação de imagens ia deixando antever o embrião de uma gramática do cinema. No entanto, pelo menos até 1908, é relativamente consensual que a produção de actualidades se sobrepôs a qualquer outra, sendo embora evidente um desfasamento temporal entre aquilo que se passou, nomeadamente em França e nos Estados Unidos, onde a produção industrial de filmes de enredo arrancou mais cedo e, seguramente, com outros meios e outras possibilidades, e a grande maioria dos países com menor capacidade técnica e financeira, entre os quais se incluía Portugal.
As fitas documentais da primeira fase do cinema, supostamente retratos do quotidiano, depressa perderam a inocência primitiva. Rapidamente se estabeleceu uma espécie de comércio entre os poderosos do mundo e os caçadores de imagens, com os primeiros dispostos a pagar com facilidades de protecção e de acesso a determinados locais e acontecimentos a visibilidade que os segundos lhes pudessem proporcionar. Assim, nasceu uma vasta filmografia na qual se reconhece o embrião da propaganda, à qual, de resto, o jornalismo e o filme documentário viriam a estar amiúde associados. Sabe-se da existência, por exemplo, nos arquivos de cinema da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos de um avultado volume de takes do presidente Theodore Roosevelt reunidos por ele próprio para efeito de promoção pessoal.
Sabe-se, também, que os países grandes produtores de filmes documentais eram o centro de impérios coloniais propensos a darem a conhecer os nativos das suas colónias como seres pitorescos e agradecidos aos seus senhores tutelares. E sabe-se, ainda, que a fraude e a impostura são quase tão antigas quanto os primeiros filmes. Companhias como a Vitagraph ou a Biograph não hesitavam em utilizar uma trucagem que hoje nos pode parecer grosseira, mas que ao público do início do século ou terá passado despercebida ou não terá merecido grandes reparos. Segundo Barnow, fumo de cigarros, explosões provocadas, labaredas de fósforos, soldados equipados a rigor caindo diante das câmaras, tudo serviu para dar notícia de acontecimentos como espectaculares erupções de vulcões, terramotos arrasadores e batalhas sangrentas. Vale a pena citá-lo:
 “As reconstituições e imposturas alcançaram um impressionante registo de ‘êxitos’. Se há memoráveis imagens genuínas do terramoto de 1906 de San Francisco, outras alegadamente respeitantes a esse acontecimento, foram forjadas a partir da manipulação de miniaturas e foram igualmente muito apreciadas. (...) As neves de Long Island e de New Jersey ofereciam as condições adequadas para empreendimentos como A Batalha de Yalu, filme da Biograph de 1904 e para um outro de Edison Escaramuça Entre as Forças Avançadas Russas e Japonesas, que competia com o da Biograph. Nesta última película viam-se soldados a passar diante de uma câmara imóvel, enquanto alguns outros iam caindo. Para ajudar o público a identificar as forças em presença, os russos estavam vestidos com uniformes brancos e os japoneses com uniformes de cores escuras” [2].
Os primeiros jornais cinematográficos ou newsreels são de 1908, sendo exibidos nas salas semanal ou quinzenalmente. A Pathé e a Gaumont foram pioneiras, mas depressa surgiram empresas com intuitos semelhantes um pouco por toda a parte. Durante muito tempo considerou-se que esta produção, ao invés de potenciar a criatividade dos operadores, depressa se revelaria quase sempre rotineira, falha de imaginação, conformista em relação aos assuntos tratados e incapaz de proporcionar uma visão integradora à escala humana. Hoje, este ponto de vista carece de revisão. Há, na verdade, uma produção rotineira e falha de imaginação, a maioria, de resto, mas também há imagens que valem mais do que o mero documento.
Esta primeira fase das películas documentais, às quais os franceses chamavam genericamente documentaire, deixou antever alguns dos desenvolvimentos futuros do filme documentário, nomeadamente por via dos travelogue, filmes de viagens eventualmente associados a aventuras e a proezas de exploradores em paragens remotas. A cinematografia francesa, por exemplo, produziu numerosos filmes no deserto do Sara e Herbert G. Ponting captou imagens da trágica expedição do capitão Scott ao Pólo Sul, imagens essas posteriormente recuperadas pela Gaumont e mostradas com enorme êxito em todo o mundo, em 1912. Um pouco mais tarde, em 1914, imagens de Frank Hurley dariam origem a uma reportagem sobre a expedição de Ernest Shackleton ao Antárctico. No ano seguinte, com In the Land of the War Canoes, Edward S. Curtis fazia o documentário antropológico seminal abrindo caminho a Nanook of the North (1922) de Robert Flaherty.


Ao longo desta fase, porém, é perceptível uma tensão entre fórmulas mais informativas, digamos assim, e experiências mais inovadoras, eventualmente conducentes a narrativas híbridas e até ao filme documentário, como abreviadamente adiante se verá.

Newsreels e outros percursos
Na antecâmara da I Guerra Mundial, apesar da maior parte do material filmado ser institucional, a importância do cinema informativo era um dado adquirido. A Pathé e a Gaumont dominavam o mercado mundial e, na Europa, os seus filmes representavam, em conjunto, 90 por cento do material exibido nas salas. Mas, no mercado estavam ainda Hearst, a Universal, a Paramount, a Mutual e a Fox.
A guerra seria fatal para a produção cinematográfica europeia, especialmente para a francesa. Muitos artistas, realizadores e técnicos europeus, perante o cenário desolador de uma indústria praticamente destruída, emigraram para os Estados Unidos. Charles Pathé optou por desmantelar de forma inteligente e proveitosa o seu outrora todo poderoso império. Os pujantes estúdios americanos impuseram a sua hegemonia. Mas a guerra permitiu, igualmente, treinar muitos operadores e realizadores americanos de newsreels que, uma vez de volta a casa, foram engrossar o número daqueles que trabalhavam no cinema, sobretudo em Hollywood. Entre europeus e americanos nessas condições, Raymond Fielding apresenta uma lista na qual se incluem, nomeadamente Joseph von Sternberg, Hal Mohr, Victor Fleming, Ernest Schoedsack, Farciot Edouart, Ira Morgan, Fred Archer, Harry Thorpe, George Hill e Eddie Snyder [3].
Com abundante mão-de-obra qualificada pareciam finalmente reunidas as condições para um salto qualitativo em termos de uma linguagem cinematográfica ajustada aos desígnios do jornalismo. O que aconteceu, porém, foi algo de contraditorio. Nos Estados Unidos, foram importados para o universo das empresas de newsreels os modelos e rotinas produtivas da imprensa. Muitas vezes, os técnicos e realizadores de cinema foram preteridos a favor de jornalistas. A preponderância destes últimos, a par da influência exercida pela companhia liderada por Hearst, foi, segundo Fielding, a principal responsável por um formato que em tudo procurava transpor os métodos e o estilo dos jornais impressos para o cinema informativo, nomeadamente a célebre técnica da pirâmide invertida, o que era evidente nos títulos, subtítulos, apresentação e hierarquização das matérias [4]. Simultaneamente, haveria de prevalecer a tendência para o entretenimento e o faits divers em resultado da lógica competitiva em que se desenvolveram os meios de comunicação nos Estados Unidos.
Daí uma certa negligência no tratamento das imagens na fase de montagem, apesar da excelência e temeridade – chegavam a arriscar a vida em busca da espectacularidade – de muitos operadores de câmara, as quais contribuíram para a imagem mitologizada de uma profissão exemplarmente tipificado em The Cameraman (1928) de Edward Sedgwick e Buster Keaton. É nesta fase, e não mais tarde, quando a televisão se impôs como medium dominante, que se encontram as raízes da expressão que qualifica depreciativamente de trabalho jornalístico aquilo que no cinema do real não corresponde a parâmetros mais exigentes de ordem estética.


Contudo, apesar da linha dominante do entretenimento, encontram-se, igualmente, peças moldadas de acordo com critérios de maior exigência  e obedecendo a parâmetros mais rigorosos no plano da narrativa. Mais tarde, nos anos 30, March of Time de Louis de Rochemont, sendo bastante controverso, haveria de adoptar procedimentos do documentário, palavra, de resto, execrada pelo próprio Rochemont. Noutros casos, na base da tradição de newsreels e travelogues iriam surgir filmes épicos como Grass (1924) de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack já alinhados  com a narratividade criativa. 
Perante este breve quadro geral de tendências da arqueologia do cinema documental, resulta evidente, a par de uma linha marcada pela facilidade, uma evolução, mesmo se contraditória, em função da qual é perceptível um movimento que nalguns casos aproxima newsreels e documentários. Importa, agora, perceber o que aconteceu em Portugal para se fazer uma ideia comparativa.

Paz dos Reis e os primórdios do cinema documental português
Num dia de Setembro de 1896, na Rua de Santa Catarina, no Porto, um homem alto, pela aparência identificado com a burguesia da cidade, afadigava-se em torno de uma caixa de madeira envernizada apoiada num tripé em tudo idêntico ao utilizado pelos fotógrafos profissionais. Diante dele, a porta principal da Camisaria Confiança. À hora do almoço, operários – homens e mulheres – começaram a sair. O homem imprimiu então um movimento de rotação tão uniforme quanto possível a uma manivela destacada do corpo da caixa.
Os transeuntes não o sabiam, mas acabavam de assistir ao nascimento do cinema português. Se assim rigorosamente foi ou não, pouco importa. Paz dos Reis poder-se-ia ter feito acompanhar por um familiar e fotógrafo profissional, Magalhães Bastos, e ter sido este a manivelar o filme. Admite-se, até, ter havido outros, antes dele, a interessarem-se pelo cinematógrafo, do qual, aliás, os portugueses já tinham conhecimento através de Erwin Rousby. Seja como for, ressalvado o campo das hipóteses e postas de lado as questões de pormenor, Aurélio da Paz dos Reis tornou-se naquele momento o pai do cinema português.
Tanto quanto se sabe seria um espírito atento à modernidade no contexto peculiar da sociedade portuense de tradição liberal e individualista. Terá pertencido à Maçonaria, em cujas lojas se encontrava a maioria dos mais destacados republicanos da época. Em plena crise da monarquia constitucional, foi preso após a revolta de 31 de Janeiro de 1891 – um movimento popular cujos paisanos e soldados investiram contra os portões do quartel de Infantaria 18 e responderam ao fogo da Guarda Municipal do Porto –, mas deverá ter sido absolvido visto o seu nome não constar da lista de condenações do Conselho de Guerra de Matosinhos, onde os conjurados foram presentes. A sua notoriedade social ter-lhe-á valido os cargos de vereador e de vice-presidente da Câmara do Senado do município, bem como a presidência do Ateneu Comercial do Porto.
Como fotógrafo amador foi premiado por diversas vezes em Portugal e no estrangeiro, sendo da sua autoria algumas das imagens mais impressivas das movimentações republicanas no Porto. Igualmente da sua autoria, ficou célebre uma série de postais denominada Artistas Portugueses, cuja popularidade acabou por contribuir para lhe dar ainda maior notoriedade. Sempre curioso, experimentou a fotografia estereoscópica, ou seja, em relevo, produzindo um número significativo de duplos clichés indispensáveis à obtenção dos efeitos pretendidos e investiu num negócio de equipamentos fotográficos fornecidos pela Lumière & Jougla.
Contemporâneo de Louis e Auguste Lumière, Paz dos Reis mostrou a Saída do Pessoal Operário da Camisaria Confiança a 12 de Dezembro de 1896 numa sessão no Palácio do Príncipe Real, no Porto, da qual constavam igualmente outros filmes da sua autoria. O Jornal de Notícias desse dia anunciava a mostra de “12 perfeitíssimos quadros, sete nacionais e cinco estrangeiros [5]”. Os quadros portugueses, além do já mencionado, eram O Jogo do Pau, Chegada de um Comboio Americano a Cadouços, O Zé Pereira nas Romarias do Minho, A Feira de São Bento, A Rua do Ouro e Marinha. Exibidos durante o intervalo de uma zarzuela, muito do agrado do público da época, os quadros tiveram maior êxito do que o até então obtido pelas vistas estrangeiras.


Este tipo de reportagem ou filme documental seria a imagem quase exclusiva do cinema português do final do século XIX e do início do século XX e Paz dos Reis, que fez centenas de pequenos filmes sobre o quotidiano, na sua esmagadora maioria perdidos ou destruídos, foi o nosso primeiro cineasta e repórter de imagens em movimento. Ao contrário de Paz dos Reis a maioria dos operadores de imagem da época permaneceu no anonimato. Houve, no entanto, algumas excepções.
Manuel Maria da Costa Veiga fez em 1899 Aspectos da Praia de Cascais, eventualmente o primeiro filme com imagens do rei D. Carlos e do príncipe D. Luís Filipe. Até 1918 filmou inúmeros acontecimentos da vida portuguesa, como as visitas de estadistas estrangeiros, a instauração da República, a mobilização para a I Guerra Mundial e o advento da ditadura de Sidónio Pais. Valendo-se dos contactos da sua Portugal Filmes, com sede em Algés, vendeu para toda a Europa trabalhos sobre as visitas de Eduardo VII de Inglaterra, de Afonso XIII de Espanha, do presidente Loubet da França e do Kaiser Guilherme II.
Também João Freire Correia, um dos melhores fotógrafos de Lisboa e fundador da Portugália Filme, antigo operador de Paz dos Reis, saiu do anonimato fazendo igualmente um número apreciável de reportagens cinematográficas. O seu nome está associado a dois grandes êxitos junto do público, A Cavalaria Portuguesa e O Terramoto de Benavente, um e outro referenciados como precursores do documentário português. O Terramoto de Benavente (1909) tirou 22 cópias só para exibição no estrangeiro, um feito considerável para a época. Reportando a destruição daquela vila do Ribatejo por um sismo de grande intensidade, o filme, ao que parece, distinguia-se pelo dramatismo visual.
No ano seguinte, Costa Veiga e Freire Correia fizeram reportagens sobre a Revolução de 5 de Outubro de 1910 e a proclamação da República. Por essa altura, o cinema em Portugal era ainda encarado como um veículo de vistas panorâmicas, sem aspirar à narratividade criativa. Segundo Félix Ribeiro, à evolução da linguagem cinematográfica no estrangeiro correspondeu em Portugal uma quase completa ausência de ousadia e de liberdade formal e conceptual. Não obstante, criou-se uma corrente de opinião segundo a qual, nos primeiros tempos, a melhor produção terá sido, justamente, na área do cinema documental. Afirma, por exemplo, João Bénard da Costa:
“ (...) quase tudo o que de mais interessante se fez foi no capítulo do documentarismo, produzido pela Companhia Cinematográfica de Portugal ou pela Invicta Film de Alfredo Nunes de Matos, exibidor portuense” [6].
A palavra documentarismo é manifestamente utilizada a despropósito por Bénard da Costa porque, na verdade, dificilmente as produções quer da Companhia Cinematográfica Portuguesa quer da Invicta Filme poderiam merecer o estatuto do filme documentário. Vejamos com maior detalhe o caso desta última, justamente  porque não apenas fez numerosos filmes factuais, mas também por que se tratou da primeira empresa portuguesa a fazer filmes de enredo mais ambiciosos e, como se disse, há uma relação estreita entre a inovação e experimentação no campo do cinema e a qualidade da generalidade da produção seja qual for a sua área de inserção.

A Invicta Film: cinema documental e filmes de enredo
A experiência da Invicta Film, empresa com estúdios no Porto, está associada à primeira tentativa de levar a cabo uma produção nacional à escala europeia, sobretudo  a partir de 1918, quando a empresa passou a apostar essencialmente nos filmes de enredo. Alfredo Nunes de Matos, gerente do Jardim Passos Manuel – sala inaugurada em 1908, por onde passava grande parte do cinema visto na cidade – foi a figura central dessa aventura que passou à História como ciclo do Porto.
Em 1910, ano da implantação da República, Nunes de Matos começou a produzir reportagens cinematográficas, sobretudo no Norte, fazendo, simultaneamente, pequenos filmes publicitários de encomenda. A sua empresa contratou operadores talentosos como Manuel Cardoso e Thomas Mary Rosell e rodou milhares de metros cujos princípios orientadores eram a fidelidade à temática portuguesa e a urgência, à qual o jornalismo viria a chamar imediatismo, de dar a ver o que de mais importante ia acontecendo. Desse modo, Nunes de Matos conseguiu não apenas agradar a um público cada vez mais vasto, mas também interessar os jornais de actualidades da Pathé e da Gaumont, dos quais era correspondente e para os quais enviava algumas colaborações.
Há numerosos títulos produzidos nessa primeira fase. A título de mero exemplo, em 1911 fizeram-se as Festas de Aniversário da República, seguidas, no ano seguinte, de uma Visita ao Porto do Presidente da República. Com o estalar da I Guerra Mundial, numa altura em que se começava a discutir de forma virulenta se o País devia ou não entrar no conflito – uma polémica na qual se envolveram monárquicos e republicanos, por um lado, e republicanos entre si, por outro – a Invicta produziu, nomeadamente, O Embarque das Tropas Expedicionárias para Angola e Moçambique, Exercícios de Artilharia, Grandes Manobras de Tancos, todos sobre a preparação para a entrada na Guerra, e Revolução em Lisboa e Chaves - Incursões Monárquicas. A par das questões de índole política e das pequenas fitas publicitárias, Nunes de Matos e os seus colaboradores prestaram igualmente atenção à reportagem sobre acontecimentos do interesse do público da época como exercícios e operações de bombeiros, treinos de aviadores, festas e romarias, bem como às vistas panorâmicas precursoras de trabalhos documentais de carácter monográfico sobre localidades e regiões, como foram os casos de A Serra da Estrela, Viana do Castelo, Lamego, Barcelos, Bom Jesus do Monte e outros.
De toda a produção anterior a 1917 cumpre destacar O Naufrágio do Veronese, um navio italiano naufragado ao largo de Leixões em 10 de Fevereiro de 1913. Denotando sentido de oportunidade, a Invicta produziu uma grande reportagem de 300 metros, da qual foram vendidas, só para a Europa, mais de uma centena de cópias.
Em 1917, em Lisboa, virou-se nova página da história do cinema português. Foram criados os Serviços Cinematográficos do Exército que fizeram a cobertura da intervenção portuguesa na guerra, ampliando e complementando o trabalho levado a cabo pelos produtores nacionais. É também desse ano a primeira conferência sobre cinema realizada em Portugal. O conferencista foi António Ferro, mais tarde o homem forte de Salazar para a cultura e propaganda. Ferro estava ligado ao movimento futurista e, a par do desenhador Stuart Carvalhais, do crítico de arte Reis Santos, do então estudante de arquitectura Cotinelli Telmo e do jornalista Leitão de Barros, foi um dos primeiros intelectuais portugueses a ser conquistado pelo cinema. Nas salas, os jornais cinematográficos antecediam as grandes produções americanas e italianas. O público garantia boas receitas e uma massa crítica cinéfila ia ganhando expressão.
Nesta conjuntura, a Invicta Film optou por uma mudança de estratégia. A 22 de Novembro de 1917 foi fundada uma nova sociedade tendo como administrador principal Nunes de Matos e como director artístico Henrique Alegria, um português do Brasil e proprietário do cinema Olímpia. Nos seus estatutos não havia quaisquer referências de índole cultural ou artística. Tratava-se de promover “o fabrico, aluguer e venda de películas cinematográficas [7]”. O tempo viria a confirmar essa tendência.
Alguns dos filmes produzidos tiveram sucesso popular e representaram um salto qualitativo em relação ao que até então se fizera. Estão neste caso fitas de Georges Pallu como Os Fidalgos da Casa Mourisca (1920) e Amor de Perdição (1921), adaptações, respectivamente, de Júlio Dinis e de Camilo Castelo Branco, ou ainda Mulheres da Beira (1923) do realizador italiano Rini Lupo. Escreveu Luís de Pina:
“(...) o papel mais relevante desta empresa foi o de ter demonstrado a possibilidade de um cinema de qualidade ‘média’ feito sem demasiada transigência e com evidente preocupação técnica. Nas suas instalações da Quinta da Prelada, no Porto, fez-se cinema a sério com tudo o que isso implica, desde os filmes em si à infraestrutura que os produz e à verdadeira escola de prática que uma produção deste tipo permite [8]”.
Este ciclo do Porto merece algumas considerações. Em primeiro lugar, a viragem do até então eixo dominante da maioria dos filmes produzidos em Portugal, as vistas panorâmicas e as reportagens, para o domínio do romanesco. Por essa altura, o cinema começava a ser encarado como arte e linguagem exigindo, como tal, a narratividade criativa mas, sendo uma actividade dispendiosa, era igualmente encarado como uma oportunidade de negócio. Em segundo lugar, essa viragem ocorreu no Porto. Todos os associados da Invicta Film eram portuenses e estavam ligados à banca, ao comércio e a diversas profissões liberais corporizando o espírito de iniciativa da cidade. Alguns estudiosos do cinema português, como Félix Ribeiro dão até conta da recusa de facilidades, por parte dos accionistas, para a construção dos seus estúdios em Lisboa. Em terceiro lugar, ao pretender organizar a produção em bases industriais, a companhia recusou a improvisação, não hesitando em ir buscar técnicos qualificados onde sabia poder encontrá-los no estrangeiro contribuindo, dessa forma, para formar muitos agentes do cinema. Em quarto lugar, apesar das críticas que lhe possam ser feitas no sentido de ter procurado agradar a um público muito vasto e, como tal, supostamente nivelado por baixo, a Invicta Film compreendeu a importância do genuinamente português para efeito da criação de públicos. Fez-se mais português para ser mais europeu, antecipando, de algum modo, uma das linhas estratégicas das políticas do audiovisual europeu, ou seja, valorizar o regional encarando-o como base do universal. Em quinto lugar, aliando o saber fazer à construção de estúdios modernos de raiz e à aquisição dos equipamentos necessários, criou as condições logísticas indispensáveis para transformar o Porto durante alguns anos na capital do cinema português.
Entre 1818 e 1925, fosse através da Invicta, da Caldevilla Film, fundada em 1920, ou da Fortuna Film, criada em 1922, fizeram-se no Porto 25 longas metragens de ficção, um número interessante mesmo se comparado com a produção europeia da época. Todos os géneros de que o cinema português viria a ocupar-se mais tarde encontram-se já neste Ciclo do Porto, excepção feita à comédia populista, cujo período áureo havia de prolongar-se pelos anos 30 e 40. A partir de meados de 1922, a Invicta  Film começou, no entanto, a sentir dificuldades financeiras. Em competição com estruturas capitalistas poderosas à escala global, tornou-se cada vez mais difícil encontrar uma distribuição adequada. Em 1924, fez a sua última produção, um filme documental intitulado III Exposição Internacional de Automóveis, Aviação e Sport. Os seus estúdios reabriram, ainda, uma ou outra vez, a título de aluguer, como aconteceu no caso dos filmes de Reinaldo Ferreira, um jornalista famoso pelas suas reportagens sensacionalistas que marcaram uma fase do jornalismo português e que eram assinadas com o pseudónimo de Repórter X, mas tudo isso mais não foi do que o último assomo de um penoso estertor. Em Junho de 1931 fechou as portas definitivamente. Nesse ano, morreu Aurélio da Paz dos Reis e Manoel de Oliveira realizou Douro, Faina Fluvial.
Dito isto, e antes de entrar em considerações sobre a produção deste período, certamente mais importante pela quantidade do que pela qualidade, justifica-se ainda sublinhar um conjunto de perspectivas favoráveis ao desenvolvimento pelo gosto do cinema que, efectivamente, existiu em Portugal e que poderia ter contribuído para o aparecimento de obras de maior relevância.

O gosto pelo cinema, os primeiros documentários portugueses e Douro, Faina Fluvial
Durante os anos 20, de um modo geral, mesmo após a instauração da ditadura em 1926, quase toda a melhor produção internacional passou por Portugal, sobretudo na capital. Ao público cinéfilo não lhe escapava a excelência de filmes provenientes dos Estados Unidos, Alemanha, França e até da União Soviética como Tempestade na Ásia de Pudovkin e A Linha Geral de Eisenstein, ambos exibidos já em fase de consolidação do salazarismo. Para tanto convergiram razões de vária ordem.
Cumpre, desde logo, destacar, ainda na I República, o papel desempenhado por algumas revistas de cinema do Porto, as quais contribuíram para a formação de um público conhecedor e deram à estampa polémicas interessantes. A primeira foi O Porto Cinematográfico, fundada em 1919 por Alberto Armando e que só viria a extinguir-se em 1925. Em 1923, acompanhando de perto a actividade da Invicta Film, Roberto Lino fundou a Invicta Cine, a qual foi publicada regularmente até 1936. Qualquer das revistas investiu no apoio ao cinema português, sem perder de vista aquilo que ia pelo mundo e dedicando parte do seu espaço à crítica. A Invicta Cine envolveu-se na polémica relacionada com o advento do som assumindo um papel pioneiro em sua defesa. Foi também devido ao entusiasmo de alguns dos seus responsáveis “que se criou, no Porto, a primeira associação cinematográfica, pioneira do futuro movimento cineclubista [9]”. Essa Associação dos Amigos do Cinema, fundada em 1924, apesar de relativamente limitada na acção que desenvolveu, propunha-se inicialmente defender o cinema nacional, “moralizar o cinema por meio da palavra escrita ou falada, fomentar o entusiasmo pela Arte do Silêncio e produzir películas logo que a situação financeira o permitisse [10]”.
Com a ditadura, de início, o estado também não adoptou uma política cinematográfica monolítica. Para tal contribuiu não só a postura de António Ferro, um jornalista influente, admirador de Salazar, mais tarde designado para dirigir o Secretariado de Propaganda Nacional, mas também o grupo de jovens a partir do qual se iria procurar fazer a renovação do cinema português. Entre eles, contavam-se Leitão de Barros e António Lopes Ribeiro. Um e outro tinham estado na Alemanha e na União Soviética, onde se tinham inteirado dos respectivos processos criativos e produtivos. A admiração pelas cinematografias alemã e russa, aliás, já tinha sido manifestada, em 1925, por Fernando Pessoa, quando afirmou serem as únicas cujos filmes se aproximavam da ideia de arte. Por outro lado, foi essa uma época de intensa actividade intelectual que viu nascer, por exemplo, o movimento do Orfeu e a revista Seara Nova, sendo que estas iniciativas, apesar do carácter efémero da primeira, viriam a desempenhar um papel de relevo na vida cultural portuguesa. A esta abertura à modernidade não foi certamente estranha a filiação futurista da maioria dos protagonistas da tentativa de renovação do cinema português.
A difusão do gosto pelo cinema, sobretudo nos grandes centros urbanos prende-se ainda com o facto de todas as principais cidades do País, e em particular Lisboa e o Porto, terem novas salas, na sua maioria de grandes dimensões. Eram os casos, em Lisboa, do Tivoli e, no Porto, do Rivoli e do Teatro de S. João, este o maior do País com dois mil lugares. Por outro lado, as grandes distribuidoras da época, como a Paramount, a Metro e a RKO abriram sucursais em Portugal e, com o volume de negócios em alta, surgiram novos estúdios, nomeadamente da Lisboa Filmes. Sucede que foi justamente esta empresa a responsável pela maior parte da produção documental de 1928 a 1932, seguida da Ulysseia, igualmente relevante nesse domínio, sendo que, em qualquer dos casos, é difícil apontar obras cuja relevância mereça ser assinalada. Esta proliferação de filmes, bem como a sua fraca qualidade, tem uma explicação. Publicada no Diário do Governo de 6 de Maio de 1927 a chamada lei dos Cem Metros Nacionais determinava  seu artº 136:
 “Torna-se obrigatória, em todos os espectáculos cinematográficos, a exibição de uma película de indústria portuguesa com o mínimo de 100 metros, que deverá ser mudada todas as semanas e, sempre que seja possível, apresentada alternadamente, de paisagem, e de argumento e interpretação portuguesa [11]”.
Com o intuito de incentivar os produtores, ainda se isentavam de direitos alfandegários as películas virgens, negativa e positiva, “comprovadamente destinadas a ser impressionadas no País  [12]”.
Os resultados foram desastrosos. Com efeito, se aumentou a produção de curtas metragens com temáticas portuguesas, a verdade é que a esmagadora maioria dos filmes tinha orçamentos reduzidos e era de má qualidade. Distribuidores e exibidores pagavam ninharias por essas fitas e os produtores só arriscavam em projectos mais arrojados caso fossem integralmente subsidiados, ficando embora, neste caso, subordinados aos interesses dos patrocinadores públicos ou privados. Daí a proliferação de filmes informativos associados à propaganda do regime, por vezes, identificados como documentários, e de películas sobre temas diversos, mas sem inovação, durante um período de tempo que se alargou para além do advento do cinema sonoro.
O assunto não passou sem que em torno dele se tivesse levantado acesa polémica, nomeadamente nas páginas da revista Cinéfilo e por parte de António Lopes Ribeiro, que acreditava ser possível fazer em Portugal excelentes documentários, mas que a via legislativa escolhida, semelhante à promulgada por Mussolini para o cinema italiano, só poderia conduzir aos piores resultados. E, assim, a única obra de referência, indiscutível, desta fase, feita á margem dos circuitos dominantes, seria Douro, Faina Fluvial, de Manoel de Oliveira, considerado o primeiro grande clássico do cinema português.
O filme documentário, portanto, apesar de algumas condições favoráveis, nomeadamente a possibilidade de o público cinéfilo e os protagonistas e agentes do cinema terem conhecimento da boa cinematografia estrangeira, só muito esporadicamente e sem grande expressão se elevou acima da fasquia, aliás sempre baixa, dos filme documental rotineiro, ele próprio pagando a factura da falta de criatividade generalizada do cinema de enredo até ao advento cinema sonoro. Mesmo a Invicta Film, cuja produção mais significativa principia em 1919 e vai até 1923, nunca se evidenciou por qualquer tipo de arrojo estético ou de ousadia experimental, isto numa altura em que as vanguardas artísticas faziam o seu percurso em muitos países europeus. Georges Pallu, por exemplo, viera do Film d’Art francês, quase sempre medíocre, e essa seria a referencia cinéfila da empresa. Como tal, os filmes da Invicta não poderiam produzir efeitos, no plano criativo, na passagem para o filme documentário.
O filme de Oliveira fica, assim, como sendo o único que acompanhou os sinais dos tempos. Como o próprio autor reconhece, inscreve-se na tradição das sinfonias das cidades na linha de Rien que les Heures de Cavalcanti, de Berlim de Ruttman e de O Homem da Câmara de Filmar de Vertov e reverte numa reflexão sobre o próprio cinema. Começa e acaba, aliás, com a luz de um projector, que se verifica depois ser a do farol à entrada do rio Douro, o qual funciona como metáfora dos mecanismos do cinema. Há no filme uma poética de índole expressionista que joga com volumes, linhas de fuga e claros e escuros, tirando partido da plasticidade das imagens, elas próprias habilmente articuladas na montagem de modo a estabelecer um ritmo cujas acelerações e desacelerações se ajustam aos momentos do quotidiano. Mas, ao contrário do que sucede com a maioria das sinfonias das cidades, centradas no ritmo, no movimento e nas formas, Douro presta uma atenção especial à paisagem humana, sugere um erotismo subtil e, nessa medida, ganha uma singularidade que o distancia de outras obras na mesma linha. Oliveira, então com 23 anos, viu o seu filme ser entusiasticamente recebido por Lopes Ribeiro, pateado pelo público, demolido por parte da crítica e proclamado obra-prima por críticos estrangeiros, nomeadamente alguns franceses. Apesar de ter um conjunto de projectos em carteira e de ter aceitado algumas encomendas sem expressão no conjunto da sua obra, Oliveira só voltou a filmar 10 anos mais tarde para dar corpo a outro clássico, igualmente rodado no Porto, o celebrado Aniki-Bóbó (1942).


Embora longe de Douro, Faina Fluvial, é habitual mencionar ainda como exemplos dos primeiros documentários portugueses três ou quatro filmes. Em primeiro lugar, Nazaré, Praia de Pescadores (1929) de Leitão de Barros, que viria a ser considerado o primeiro da chamada trilogia do mar juntamente com Nazaré, Maria do Mar e Ala-Arriba, os dois últimos filmes de enredo, mas de cunho documental. Trata-se de um retrato da vida tradicional dos pescadores da Nazaré, ao qual a luz e a composição da imagem conferem uma dimensão de transcendência. Alguns cinéfilos reconheceram nele a influência estética da escola soviética. Um deles foi António Ferro. O realizador haveria de relativizar, a posteriori, essa influência, interpondo distâncias entre a alma eslava e o sentir português. Infelizmente não é possível ter uma ideia cabal do filme visto ter-se perdido a segunda metade. Os outros filmes são Alfama, Gente do Mar (1930), de João de Almeida e Sá e outros dois filmes de Leitão de Barros, obras de difícil catalogação, que são Lisboa, Crónica Anedótica (1930), por sinal com passagens bastante imaginativas, e Maria do Mar (1930), este último publicitado como sendo um documentário dramatizado.

Conclusão
Enfim, quando comparada com os filmes dos grandes documentaristas da primeira fase do cinema – Flaherty, Ivens, Ruttman, Vertov, para citar apenas alguns – não pode dizer-se que a produção portuguesa, com excepção de Douro, Faina Fluvial, tenha produzido obras particularmente estimulantes. O filme documental anterior ao advento do cinema sonoro está ligado a um conjunto de circunstâncias que ou não se verificaram em Portugal, ou tiveram um impacto diferente daquilo que ocorreu noutros países. Não houve nada de comparável, por exemplo, ao experimentalismo de um Paul Strand, nem ao vanguardismo de um Ivens de A Chuva ou A Ponte, nem às diferentes incursões surrealistas da autoria de artistas tão diferentes quanto René Clair, Man Ray, Germaine Dulac e Jean Painlevé, nem do impressionismo que marcou o cinema francês da época, tão pouco do expressionismo alemão e muito menos do vanguardismo soviético apontado a um cinema de carácter documental investindo na questão social.
Veja-se como em 1914 já Frank Hurley ultrapassava o mundo de newsreels sem imaginação ou como em 1915 já Curtis fazia uma primeira incursão no cinema etnográfico nos Estados Unidos com The Land of the War Canoes, de certa forma precursor do documentário seminal de Flaherty, Nanook of The North (1922). Atente-se no facto de John Grierson, o fundador do movimento documentarista britânico, ter começado a produzir reflexão sobre o filme documentário a partir de 1927, de resto, muito influenciado não só pelos extraordinários filmes soviéticos, mas também pelo trabalho teórico dos seus cineastas e, sobretudo, veja-se o destaque dado nas múltiplas histórias do documentário, que entretanto surgiram, à arqueologia do cinema documental e aos chamados filmes de factos, os quais, passando a ser melhor conhecidos, começaram a ser olhados de uma outra maneira, quer através de novos argumentos reforçando críticas habituais, quer expondo aspectos valorativos até então negligenciados e comprovativos de incursões narrativas mais ambiciosas e próximas do filme documentário.
Nada disso parece ter acontecido em Portugal. Durante a primeira República as actualidades e reportagens cinematográficas, bem como o cinema de enredo, foram marcadamente conformistas. Essa ausência de criatividade foi criticada pela nova geração, cujas ideias tinham expressão nas páginas de revistas especializadas. Mas, embora as elites cinéfilas tivessem conhecimento do melhor cinema contemporâneo, a verdade é que a produção de filmes documentais continuou a ser feita sem sobressaltos e na ausência quase total da procura de novos rumos. Não se entende, por isso, que possa ver-se nesta produção algo de semelhante ao que se fazia lá fora. Ou melhor, talvez haja uma razão para que assim seja. Na história do cinema português, só recentemente começou a prestar-se maior atenção ao cinema do real. Ainda assim, procurando vê-lo numa linha de continuidade daquilo que a partir dos anos 60 viria a ser a luta pela afirmação e identidade de um determinado cinema de autor ao qual estaria subjacente um olhar especificamente português.
Ora até ao advento do som, a cinematografia nacional não tem, na realidade, muito por onde escolher. Daí, eventualmente, essa valorização da produção documental, a meu ver suspeita e susceptível de suscitar as maiores dúvidas. Suspeita, porque equipará-la à produção estrangeira seria, dadas as características dominantes desta, desde logo, desvalorizá-la. Quanto às dúvidas não se percebe como essa produção poderia ser boa vivendo paredes meias com filmes de enredo sem interesse e tão pouco se entende que, ao contrário do que se passava noutros países, os jornais de actualidades caseiros jamais – enfim, direi muito raramente para deixar em aberto a possibilidade de alguma irreverência que só um estudo aturado poderia confirmar – parece terem sido capazes de se elevar acima da reportagem rotineira. Algo como o controverso March of Time dos anos 30, um exemplo do sentido evolutivo e da interacção narrativa entre newsreels e formas mais exigentes do cinema, seria simplesmente impensável em Portugal. E assim sendo, também não se vê como os filmes documentais pudessem estabelecer pontes de passagem para o filme documentário.




 Bibliografia

ANDRADE, Sérgio C. – O Porto na História do Cinema, Porto Editora/Porto 2001, 2002.
BARNOUW, Erik – El Documental – Historia y estilo, Editorial Gedisa, Barcelona, 1996.
BARSAM, Richard M. – Non-Fiction Film, a Critical History, Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 1992.
BÉNARD DA COSTA, João – Os Anos 40 e o Cinema Português. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1982.
- Histórias do Cinema. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1991.
COSTA, Henrique Alves – Breve história do cinema português - 1896-1962, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, Ministério da Educação e da Investigação Científica, Lisboa, 1978.
ELLIS, Jack C. and McLANE, Betsy A. – A New History of Documentary Film, continuum, New York and London, 2005.
FÉLIX RIBEIRO, Manuel – Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português (1896 - 1949). Ed. Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1983.
- Subsídios para a História do Documentarismo em Portugal. Ed. Direcção-Geral da Acção Permanente, Lisboa, 1973.
FERREIRA, Carolin Overhoff, coord. – O Cinema Português através dos seus Filmes, Campo das Letras, Porto, 2007.
FIELDING, Raymond – The American Newsreel 1911-1967, University of Oklahoma Press, 1980.
- The March of Time 1935-1951, Oxford University Press, New York, 1978
GRIERSON, John – Grierson on Documentary, Forsyth Hardy, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1966.
 – Grierson on Documentary, ed. Forsyth Hardy, Faber and Faber, London and Boston, 1966.
GRILO, João Mário – O Homem Imaginado (cinema, acção, pensamento), Livros Horizonte, Lisboa, 2006.
MATOS CRUZ, José de – Prontuário do Cinema Português. Ed. Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1982.
- Cinema Português - O Dia do Século, Grifo - Editores e Livreiros, Lisboa, 1998.
PINA, Luís de – Panorama do Cinema Português (das origens à actualidade). Ed. Terra Livre, Lisboa, 1978.
- Documentarismo Português, Ed. Instituto Português de Cinema, Lisboa, 1977.
TORGAL, Luís Reis – O Cinema sob o Olhar de Salazar, Temas e Debates, Lisboa, 2001.
WINSTON, Brian – Claiming the Real (the documentary film revisited), British Film Institute (BFI Publishing), Londres, 1995.
VIDEIRA SANTOS, A. – Paz dos Reis, Cineasta, Comerciante, Revolucionário, Ed. do autor, Lisboa, 1976.



ENTREVISTA COM LLORENÇ SOLER 

por Jorge Campos

"Há uma inquietação no documentário que não está presente na reportagem, que é jornalismo puro e duro”.  

Llorenç Soler desenvolve a sua actividade em múltiplas direcções, nomeadamente como documentarista. Entre os seus documentários mais conhecidos contam-se Francisco Boix, un Fotógrafo en el Infierno e Max Aub, un Escritor en su Laberinto. Em Los Hilos Secretos de mis Documentales publicado em Barcelona pelos Libros de Ccomunicación Global reflecte sobre a sua actividade como realizador. Esta entrevista foi gravada no Porto em Outubro de 2001 quando da sua participação na Odisseia nas Imagens e resume  algumas das questões essenciais sobre a relação do documentário com a televisão.

                                                                                La Jetée - Chris Marker

P. O que lhe agrada no documentário?

R. O que me agrada é o jogo que permite construir uma ficção a partir do real, exercer um ponto de vista, construir o meu próprio argumento, ou seja, não acredito de modo algum na objectividade: o documentário é tão subjectivo quanto a ficção.

P. A objectividade parece ser uma crença da Televisão em função do seu carácter predominantemente informativo. Será que isso dificulta a relação entre o documentário e a Televisão?

R. É, realmente, uma relação complicada, sobretudo porque há aí um conflito latente entre o percurso da gente do Cinema e o percurso dos jornalistas da Televisão. São dois mundos completamente diferentes. Pelo menos entre nós, em Espanha, para eles nós somos os artistas, os “poetas”, eles são os comunicadores, os que dão conta da verdade. Mas, as coisas não podem colocar-se desse modo. Aliás, ambas as tendências, muitas vezes, coabitam nos documentários. Mas, para isso, é necessário que a Informação sobre um tema seja apresentada de modo poético, criativo e original...

P. Porém, o que acontece a todo o momento é a sensação dos procedimentos jornalísticos contaminarem todo o espaço da Televisão e, por via disso, a reportagem aparecer muitas vezes identificada como documentário...

R. De acordo. É por isso que é indispensável delimitar os territórios. Fala-se, hoje, do documentário de criação – embora, a mim, não me agrade essa designação – e há o jornalismo audiovisual, que é outra coisa. Do meu ponto de vista, o documentário tem um valor acrescentado, que é o valor da criação. Há uma inquietação no documentário que não está presente na reportagem, que é jornalismo puro e duro.

P. Que se passa, hoje, em Espanha, com respeito ao documentário?

R. Há um ressurgimento extraordinário, sobretudo graças ao apoio das estações de Televisão.

P. Não há aí uma contradição?

R. Claro que sim, se tivermos em conta que se trata de um medium predominantemente informativo, jornalístico, onde impera o imediatismo e predominam os jornalistas. Contudo, parece que os operadores estão a descobrir este outro género que está para além do imediatismo e permite a reflexão sobre um tema.

P. Quererá isso dizer que a linguagem da Televisão pode acolher o olhar do Cinema?

R. No que eu acredito é que esta tendência introduz um olhar mais cinematográfico do que televisivo. Passam muitos filmes na Televisão, mas quando isso acontece, a Televisão funciona apenas como veículo, ou seja, não altera a sua natureza ou razão de ser. Com o documentário, porém, há uma perspectiva diferente e aí, sim, há reflexos muito interessantes. Basta atentar no facto de muitos documentários feitos para a Televisão, em Espanha, terem sido grandes sucessos nas salas de cinema.

P. É complicado para si trabalhar com formatos televisivos de 25 ou 50 minutos?

R. Não, isso não me causa qualquer problema.

P. Os problemas, então, são outros...

R. Já falamos deles. Quanto ao mais, a Televisão também tem muitos aspectos positivos. Eu, por exemplo, fiz longas metragens que foram muito mal distribuídas e, por isso, foram vistas por muito pouca gente. Mas, a partir do momento em que foram exibidas pela Televisão tiveram 300 ou 400 mil espectadores em cada passagem, ou seja, entraram em contacto com o grande público, o que é muito bom.