textos da juventude


So Close/ Oblivion


à esquerda, minha mãe em 1946, um ano antes de eu nascer.
descobri o livro dos meus primeiros dias onde a minha mãe, amorosamente, foi relatando episódios dos meus primeiros passos nos caminhos desta vida, que é só uma. é um velho livro gasto pela passagem dos anos onde leio, por exemplo, que no dia 14 de julho de 1948 nasceu o meu primeiro dente. a minha mãe deixou a seguinte nota: foi ao médico. começou a comer 6 refeições de farinha de arroz com sumo de limão. numa delas com sal e manteiga. e assim soube desse e de outros mistérios como a cor do meu cabelo castanho claro numa madeixa de simetria perfeita no meio de uma página desbotada, tinha eu um ano. olhei o livro e voltei a a olhar, li e voltei a ler. e abracei o livro aprendendo devagar o sentido da caligrafia secreta do seu amor. os meus pais faleceram em 1973. pela primeira vez percebi o lado alucinado do tempo. há dias, recuperei pastas de textos antigos, escritos na vertigem de horas descompassadas, a morte no horizonte. desses, retirei dois, os que seguem:

so close

apenas o silêncio pode atenuar
este momento:

as avenidas estão desertas
e aves agonizam nos meus braços;

feridas,
o hálito puro rarefeito,

as aves que morrem nos meus braços
têm os olhos líquidos

de como quando o pavor
se faz espanto.

1973

Jorge Campos


oblivion

por vezes o pensamento regressa à sua forma de carvão ou pedra tal como com o tempo as folhas douradas do Outono caídas pelo chão: isso acontece sobretudo quando as palavras se inscrevem nos espaços mais cansados do silêncio e resvalam muito devagar para aquele lugar remoto onde as estações cessam e o fogo se transforma em cinzas e esquecimento.

1974

Jorge Campos






Em Abril


em abril desfizemos a terra nas mãos, desfizemos a cama, abrimos os olhos sobre o mundo em redor da casa, despertamos o vento, reinventamos o sonho, abrimos as janelas e dissemos coisas de bárbaros e partimos na vertigem do asfalto rasgado como se um incandescente raio de sol, súbito, nos revelasse a palavra, e fomos.


26.04.1974
Jorge Campos





Na penumbra da memória,
português suave

Feras amáveis e urbanas sorriem
espreitando a oportunidade de caírem implacáveis
sobre a presa. Falam de nariz no ar
como quem fareja o sangue da vítima.
E a mosca zumbe no interior das suas palavras
tantas vezes sem voz, palavras pesadas
da herança de gerações que buscaram
na vertigem da arena a sua cama
e da cama fizeram a arena do ódio pequenino
jogado em jogos nem sequer de azar,
porque no corpo a corpo do tédio que engendraram
tudo estava irremediavelmente previsto.
Indiferentes ao sobressalto dos dias,
tendo por cúmplice a pequena mosca familiar
de patas peludas cheias de merda,
por entre anéis de fumo bebem bebidas finas
e observam sem entender o reflexo fugaz
do espelho das imagens lentas e oblíquas.
No último farrapo do tempo, quando chegar a hora
da metamorfose irrevogável, fitando-os,
haverá uns grandes olhos parados
de granito facetado, que sorriem.
Será horror, será espanto?


Dezembro, 1976,

Jorge Campos


Tudo o que vemos ou nos parece vermos não é mais do que um sonho dentro de outro sonho - Edgar A. Poe

















Na penumbra da memória,
o homem com qualidades

Ei-lo, o pequeno acrobata do gesto
e da palavra, o exemplar chefe de família
tão meticuloso no horário e empertigado
na gravata, o infatigável insecto devorador de papel azul,
timbrado de preferência, e nele embrulhado
no cumprimento de tarefas absurdas
como se nelas celebrasse o ritual inacessível
dos gestos sem história e das palavras sem enredo
do dia a dia dos favores de circunstância.
Ele é o funcionário zeloso
de um tempo de silêncio e chumbo,
quando a morte autoriza ainda matar sem paixão
e o vento dos cadáveres sopra favorável
aos beatos da intriga em nome
dos altos valores da nação.


Setembro, 1973
Jorge Campos



a imagem é do joão abel manta, claro. o texto faz parte de um outro tempo. não sei ao certo a razão pela qual decidi recuperar da arca dos desperdícios estas coisas. ou serão elas que resolveram saltar cá para fora?














Na penumbra da memória,
soldados


Quando chegou a hora do combate
a manhã inteira estremeceu.
Incertos do papel que lhes cabia
no palco onde outros encenavam
tragédias de traidores e de heróis,
os soldados ocuparam posições.
Depois o tempo ficou suspenso
ditando suas leis elementares.
Tal como outras do passado,
guardadas na penumbra da memória
à margem da história oficial,
foi uma batalha terrível.
Apregoados os feitos sonoros,
calaram-se as armas
e um vento mortífero soprou.
E no o campo da anunciada glória
ficaram só pedras e raízes expostas
e mortos de olhos abertos
feridos de um súbito, insustentável
espanto.


Dezembro de 1977

Jorge Campos






Na penumbra da memória,
em busca de um país inocente


Eis a límpida fonte da alegria,
o fogo verde dos pinheiros quando o verão desagua
no espelho do mar e reflecte o mistério daqueles
que pregaram estrelas na cúpula do tempo
e inventaram o ritmo dos sonhos
no ritmo dos animais em movimento.

Eis a leve mão tão leve
soltando o pássaro pacífico da manhã,
lá onde o sol aquece a boca e o ar é puro
e as palavras são como peixes no lume das águas abrindo
sulcos em dunas de cores inomináveis e bravias.

Eis a doce vertigem das marés, seu delicado movimento
levantando a brisa, depois o vento,
como se no ângulo aceso das horas se ouvisse uma dança
de corpos vagabundos, depois um tropel de cavalos maravilhados
cavalgando o galope dos rins violentos.

Ei-los, os viajantes do tempo sem tempo, sem norma
nem clausura, trazendo no abandono dos olhos,
despojados e nus,
o súbito clarão da ternura.

Eis um país inocente.


Verão, 1973
Jorge Campos