Este texto resulta basicamente de um dos capítulos da minha tese de doutoramento Viagem pelo(s) Documentário(s). Reporta a acontecimentos com mais de uma década, o que desde logo obriga, numa visão actual, a um esforço de distanciamento. Há, como não podia deixar de ser, informações datadas e até desatualizadas. A leitura, tantas vezes solicitando a consulta de anexos e documentos tão numerosos que seria impossível tê-los aqui presentes, pode suscitar alguma dificuldade. Para mais, sendo a publicação feita em blocos, dada a extensão do trabalho, as notas remissivas acabaram sendo alteradas. No entanto, aquilo que me parece fundamental, é a reflexão levada a cabo quer para efeito da concretização da Odisseia nas Imagens quer para a avaliação sistemática que dela foi sendo feita. Nesse sentido, tratando-se, que eu saiba, da única tese de doutoramento que envolve o Porto 2001- Capital Europeia da Cultura, pareceu-me oportuno dar a conhecer os seus traços fundamentais e, desse modo, suscitar algumas questões que continuam a parecer-me pertinentes em termos da definição de políticas culturais - quero acreditar que ainda faz sentido falar em políticas culturais. Por isso, à medida em que for recolhendo os elementos essenciais, irei acrescentando textos a este texto. Se, porventura, aquilo que foram sendo as minhas propostas tivesse tido alguma aceitação, estou em crer que o Porto poderia ser hoje algo diferente em termos de Cinema, Audiovisual e Multimédia - desculpas pela imodéstia. Em todo o caso, é com gratidão que verifico que, ao fim e ao cabo, aqui e ali, sobretudo na área do ensino superior, há marcas da Odisseia na Imagens, mesmo que nenhuma referência lhe seja feita. Para os interessados, fica então este ponto de encontro, o qual não teria sido possível sem os magníficos colaboradores que tive a sorte de ter e com quem muito aprendi. Nota final: entre os 10 eventos tidos por mais relevantes da Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, dois são do âmbito da Odisseia nas Imagens: O Olhar de Ulisses e Violência e Paixão - Uma Retrospectiva dos Filmes de Luchino Visconti.
ODISSEIA NAS IMAGENS
Uma das
debilidades reconhecidas da cidade do Porto e da sua área metropolitana reside
na sua relação com os universos do cinema, do audiovisual e do multimédia,
áreas da visibilidade simbólica por excelência. Essa debilidade, cujas raízes
tanto se encontram na excessiva centralização do estado com reflexo nas
políticas culturais, quanto na incapacidade dos agentes culturais, ligados ou
não ao poder autárquico, para darem corpo às suas aspirações e reivindicações,
acaba por afectar o desenvolvimento da região no seu conjunto. Contudo, durante
um determinado período do governo do Partido Socialista de António Guterres e
da gestão municipal do também socialista Fernando Gomes houve vontade e abertura
para contrariar esta situação. Foi neste contexto, que o Porto foi Capital
Europeia da Cultura. O evento Odisseia nas Imagens a ele associado surgiu, assim, como uma
possibilidade de propor medidas e tomar iniciativas em si mesmas portadoras de
um projecto de futuro suficientemente flexível para que a partir dele os
eventuais tomadores pudessem prosseguir políticas próprias no âmbito do cinema,
audiovisual e multimédia – e do ensino associado a estas áreas – em condições
mais favoráveis. Pela primeira vez, tendo em conta a capacidade de produção instalada
e os saberes existentes foram avançadas hipóteses de políticas descentralizadas
com reflexos a vários níveis, nomeadamente no serviço público de televisão, na
criação de áreas de produção de excelência, entre as quais se apontava o
documentário, e no ensino superior. Concomitantemente, foi pensada uma
programação multifacetada que permitisse dar consistência no plano conceptual aos
objectivos definidos. É disso que aqui se fala. Disso e da viagem pelo(s)
documentário(s) que a Odisseia nas Imagens também foi. Toma-se como ponto de partida a
matriz do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura para, num momento posterior,
relatar e fazer a avaliação dessa experiência, fundamentalmente naquilo que ao(s)
documentário(s) diz respeito. Em todo o caso, uma vez que por razões de
coerência a Programação foi pensada de modo integrado, far-se-á referência ao
conjunto dos seus articulados, pois só assim se compreenderá o seu alcance
geral e a proposta de acção dela decorrente.
1.0 Porto 2001 - Capital
Europeia da Cultura: candidatura e enquadramento
A actriz Melina
Mercuri, na altura ministra da Cultura da Grécia, fez em 1985 uma proposta de
nomeação anual de uma Capital Europeia com o intuito de dar a conhecer as realizações
da cidade nomeada abrindo espaço, dessa maneira, à divulgação do imenso
mosaico, construído ao longo de séculos, que constitui o património cultural europeu
comum. A proposta assentava no consenso alcançado em torno de um conjunto de
argumentos a seguir resumidos.
Uma Europa
sólida, capaz de enfrentar os desafios do futuro, requer o conhecimento
recíproco da diversidade cultural dos povos e países que a integram. Esse
conhecimento investe na aceitação da diferença obstando, desse modo, a que essa
mesma diferença venha a revelar-se elemento de desagregação. Como tal, a uma cidade
Capital da Cultura cabe, entre outros desígnios, expressar a sua identidade,
mas fazê-lo de modo a cruzar os particularismos locais com as tendências e
abordagens mais cosmopolitas e universais.
À data da
apresentação da sua candidatura a Capital Europeia da Cultura o Porto reunia
condições excepcionais para responder a esse desafio. Com uma população de 300
mil habitantes e pouco mais de 44 km2 construiu a sua identidade, à semelhança
de outras cidades da Europa de dimensão média, ao longo de uma História
recheada de episódios que amiúde lhe conferiram um estatuto de privilégio.
Contudo, esse
percurso nem sempre foi linear. Pelo contrário, segundo se afirma no texto da
candidatura apresentado no Luxemburgo a 7 de Novembro de 1997, “após quase dois
séculos de protagonismo e modernidade, o século XX foi para o Porto, sobretudo
com o centralismo despótico do regime de Salazar, uma travessia do deserto [1]”.
E acrescenta-se: “Só após a revolução de 25 de Abril de 1974, que restabeleceu
o regime democrático e reanimou o poder local, foi possível ao Porto sair do
marasmo de quase 100 anos e preparar-se para enfrentar o século XXI [2]”.
Diversos
factores, com relevância para o trabalho desenvolvido pelo poder local na
última década do século passado, contribuíram para que isso viesse a acontecer.
No âmbito das realizações do poder local, eventualmente associado ao governo
central, contam-se a reabilitação urbana e a dinamização cultural.
Em Dezembro de
1996 a Assembleia Geral da Unesco atribuiu ao Centro Histórico do Porto – uma
área de 1,3 km2 correspondente na sua quase totalidade à cidade medieval entre
muralhas – a classificação de Património Cultural da Humanidade:
“Aí encontram-se
vestígios dos romanos e dos povos do norte; salienta-se o barroco introduzido
pelo italiano Nasoni, a expansão urbana iluminista, o neoclássico de influência
inglesa, o engenho e a arte de Eiffel, o urbanismo de Barry Parker, a que se
seguiram intervenções da Architecture des Beuax-Arts, alguma Art Deco e os primeiros
edifícios modernistas [3]”.
Com isto, os
portuenses fizeram uma cidade única, “que só podia ser construída naquele lugar
exacto, com aquela topografia e aquele rio, com o granito e o ferro, com a arte
minuciosa dos seus artesãos, como uma forma própria de viver e conviver [4]”.
Neste contexto, a candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura valorizou os
aspectos patrimoniais sublinhando o esforço de reabilitação urbana articulado
com investimentos avultados na recuperação e construção de equipamentos
culturais, designadamente, museus, salas de espectáculos, arquivos e
bibliotecas.
Essa estratégia,
ao desencadear novas dinâmicas em termos de um apoio crescente à criação
artística e às indústrias culturais com impacto na criação de novos públicos,
muitos dos quais provenientes de uma população de 60 mil estudantes do ensino
superior, tornara possível estabelecer um calendário anual de acontecimentos
relevantes e participados [5].
A candidatura apresentava,
ainda, como razão de merecimento de descriminação positiva, a situação duplamente
periférica da cidade, no plano nacional e no contexto internacional, bem como a
notoriedade e importância de um conjunto significativo de criadores e de agentes
culturais [6].
Identificava, seguidamente, os seus princípios orientadores, basicamente
subordinados a dois eixos: cruzar localismo e internacionalização e capitalizar
o evento a favor da cidade e da sua população [7].
Estabelecida uma
proposta de modelo organizativo para a Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia
da Cultura e após considerações sobre a previsão orçamental, o documento de
candidatura entrava na matéria específica da programação cultural, a qual, em
função das características e desígnios da cidade, haveria de articular-se em
torno de um conceito cuja ressonância metafórica suscitasse uma identificação
imediata no âmbito da tradição, conferindo-lhe, no entanto, um sentido
prospectivo. Daí o tema das pontes e a consigna Pontes para o Futuro.
Com efeito, o
Porto é a cidade das pontes sobre o rio Douro. Todas elas correspondem a
momentos determinantes da sua história. A ponte de Gustave Eiffel (1887) é um
dos raros exemplares da arquitectura do ferro associado à revolução industrial
tardia que o Porto conheceu e marca tanto o imaginário da cidade quanto a sua
representação simbólica. O mesmo sucede com a ponte Luís I (1886), inseparável
da memória de uma época de prosperidade mercantil. A ponte da Arrábida (1963) coincide
com outro momento de expansão da área metropolitana e com a afirmação vencedora
da lógica do automóvel. Da autoria de Edgar Cardoso, o seu arco de betão armado
foi, à época, o maior do mundo. Trinta anos mais tarde, o mesmo Edgar Cardoso
construiu uma nova ponte, desta vez ajustada às necessidades dos comboios de
alta velocidade.
Em suma, “a
metáfora das pontes, e dos rios que sob eles correm, possui uma coerência e uma
riqueza que a criatividade cultural pode explorar, quase explorar infinitamente
[8]”.
As pontes do Porto, portanto, “são expressão da particularidade do sítio e das
vicissitudes históricas da cidade que aqui se instalou e, ao mesmo tempo,
impregnam uma mensagem universalista e inovadora que lhes conferem as suas
características e os seus criadores; um, Gustave Eiffel, europeu e universal;
outro, Edgar Cardoso, portuense e, porque não arriscar, também europeu e também
universal [9]”.
A prazo, as Pontes
para o Futuro, entendidas como eixos de
intervenção estratégicos, criariam condições para projectar o Porto como cidade
europeia periférica de dimensão média capaz de dinamizar uma área metropolitana
de 1.200.000 habitantes em função da sua competência criativa, científica e
tecnológica. Neste contexto, inscreviam-se, naturalmente, propósitos de
qualificação do desenvolvimento sócio-económico, de relançamento de negócios e
do turismo cultural e da criação ou reforço de áreas de emprego qualificado
ligadas às indústrias da cultura e do lazer.
Esperava-se, em
suma, reforçar a visibilidade da cidade do Porto no espaço europeu e, como tal,
contribuir para a construção da Europa Social e Cultural.
[1] . Texto de apresentação da Candidatura do Porto a
Capital Europeia da Cultura apresentado no Luxemburgo a 7 de Novembro de 1997,
sem páginas numeradas.
[5] . Desse calendário constavam, nomeadamente, o Festival
de Cinema do Porto (Fantasporto), o Festival de Música Celta, o Festival de
Teatro para a Infância e Juventude, o Festival Internacional de Marionetas do
Porto, o Festival de Teatro de Expressão Ibérica, o Festival Ritmos/ Festa do
Mundo, o Concurso Internacional de Música (piano), o Festival de Jazz do Porto,
o Portugal Fashion, o Salão Internacional de Banda Desenhada e as Jornadas de
Arte Contemporânea. - Nota do Autor.
[6] . Entre outros eram citados os nomes de Agustina Bessa
Luís, Manoel de Oliveira, Siza Vieira, Eugénio de Andrade, Sofia de Mello
Breyner, Abi Feijó, Fernando Lanhas, Júlio Resende, Ângelo de Sousa, Pedro
Burmester, Álvaro Salazar e António Pinho Vargas. - Nota do Autor.
[7] . Transcreve-se a seguir a parte do texto de
candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura onde esta matéria é
abordada:
“A - Cruzar
localismo e internacionalização
organizando um leque coerente de manifestações culturais que
dêem prioridade às áreas de produção e apetência de
maior enraizamento na cidade;
apresentem produções nacionais e internacionais
inéditas;
actualizem a memória patrimonial e histórica do
Porto, procurando contacto com a realidade contemporânea e as indústrias
culturais emergentes;
fomentem o partenariado com instituições locais – já
inseridas no processo – e o envolvimento da população da cidade;
utilizem, além dos equipamentos funcionalmente
vocacionados, espaços não codificados ou cuja função original se perdeu;
assumam a dimensão festiva da efeméride, diluindo as
fronteiras entre ‘actor’ e ‘espectador’;
evitem a tentação do espectacular demasiado efémero,
sem descurar a repercussão que algumas deverão nitidamente assumir, quer pelo
impacto mediático, quer pelo alargamento de horizontes que proporcionam;
harmonizem actividades capazes de atrair o grande público e experiências de
pesquisa, vanguarda e inovação;
impliquem o público escolar, através de iniciativas
que lhe sejam especialmente dirigidas;
assumam a vocação do Porto como centro de uma
metrópole regional, estendendo actividades às cidades vizinhas e recebendo as
suas contribuições;
concretizem o tradicional espírito de ligações
internacionais do Porto, convidando para programas específicos a desenvolver em
2001 as quatro cidades geminadas com o Porto: Vigo, Bristol, Bordéus e Jena, e
as cidades geminadas do nordeste brasileiro e da África lusófona;
B - Capitalizar o evento a favor da cidade, da sua população e da sua cultura”. - in
Texto de apresentação da Candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura,
sem páginas numeradas.
[8] . Texto de apresentação da Candidatura do Porto a Capital
Europeia da Cultura apresentado no Luxemburgo a 7 de Novembro de 1997, sem
páginas numeradas.
2.0 Pontes
para o Futuro
O desafio era
difícil, entre outros motivos, porque havia pouco tempo para pôr a Capital da
Cultura no terreno sendo certo, igualmente, que o lado mais conservador da
cidade, ligado a fortes tradições que tinham de ser respeitadas e até valorizadas,
podia vir a constituir-se como reserva de incompreensão face a uma programação
cultural mais ousada e inovadora. Mas era, igualmente, aliciante porque se
tratava de reforçar e introduzir práticas culturais cujas consequências se
pretendia fossem para além de 2001, renovando o imaginário e contribuindo para
a capacidade de afirmação da cidade junto de outras cidades europeias [1].
Acresce que o
evento era encarado como uma ocasião única para levar a cabo um ambicioso
projecto de reabilitação urbana. No relatório da Comissão Instaladora respeitante
ao ano de 1998, afirmava-se:
“A vida e o
consumo culturais, como factores efectivos de desenvolvimento não devem
confundir-se com o uso pretextual das actividades genéricas de cultura para a
legitimação póstuma do esvaziamento vivencial dentro da cidade. Em oposição à
cidade marcada pelas grandes superfícies, caberá ao Porto 2001 propôr uma acção
cultural que magnifique as vantagens de um conceito de cidade herdada e
aprofunde o sentido de identidade sem historicismo nem contemplação. A
consciência urbana passa, tanto pela genericamente chamada animação cultural,
como pelo estímulo à criação em residência e em diálogo com os lugares da
cidade. Daí a necessidade de um esforço comum entre a intervenção urbana que a
capital estimulará e a Acção Artística [2]”.
Mais:
“2001 não deverá
ser a activação de festividades que alimentem no Porto a ilusão de ser uma
Capital Europeia de primeira linha, mas uma escolha estratégica de sobressaltos
que nos coloquem perante a evidência lúdica das nossas ignorâncias, que
estruturem novos desafios e novas rotinas, proporcionando-nos a sua fruição e a
confrontação com eles próprios [3]”.
E ainda:
“2001 deverá
activar o cruzamento de equipas e experiências internacionais em projectos que
só no Porto possam acontecer. Substituir-se-á, assim, à inscrição conjuntural
da cidade no obsessivo mercado internacional, a ideia de um lugar de projectos,
de encontros e desencontros que ajudem a firmar os nossos valores como
referência e desafio aos criadores, produtores e programadores estrangeiros,
cuja rota passará a cruzar-se obrigatória e estruturalmente com a nossa [4]”.
Nesta
perspectiva, entendia-se que o Porto 2001 deveria privilegiar a construção de uma
rede de relações inovadora tomando como ponto de partida os binómios
cidadão/espectador, cidade/palco e criador/obra de arte, a qual permitiria
reformular métodos de produção, realização e comunicação ligados à criação
artística. Esta teria, portanto, a cidade como pano de fundo, no sentido em que
a revitalização urbana de áreas estrategicamente identificadas era encarada
como um modo de combater a exclusão de sectores da população tradicionalmente
marginalizados no circuito da produção, realização e dos consumos culturais.
Da análise do
conjunto de recomendações da Comissão Instaladora da Sociedade Porto 2001
visando conferir coerência metodológica à Programação ressalta o intuito
reiterado de consolidar eventos já existentes, por um lado, e, por outro, a
preocupação de criar novas iniciativas numa perspectiva de continuidade para
além do horizonte temporal da Capital Europeia da Cultura [5].
A construção dessas
Pontes para o Futuro pressupunha, assim,
a disponibilidade de uma cidade em movimento, sendo que a programação cultural
teria necessariamente de integrar um conjunto complementar e diversificado de
acções de formação a partir do qual pudessem surgir profissionais qualificados
nas áreas da gestão cultural, da produção, da utilização de meios técnicos e da
mediação especializada em comunicação, marketing e animação cultural. A necessidade deste tipo de
formação impunha-se como uma evidência. Da iniciativa conjugada da autarquia e
do governo central tinha anteriormente resultado um número apreciável de grandes
e pequenos espaços culturais, todavia sem a necessária dotação de pessoal
especializado, o que conduzira, pontualmente, não só a um sub-aproveitamento
desses mesmos espaços, mas também a uma falta de profissionalismo comprometedora
da boa execução dos projectos. A formação permitiria superar as deficiências abrindo
perspectivas de trabalho qualificado a estudantes das escolas profissionais já
existentes. Admitia-se mesmo que “a
criação de uma ‘bolsa’ de profissionais nas áreas atrás definidas pode vir a
projectar-se para lá do objectivo inicial, gerando projectos privados nas áreas
de carácter empresarial ligadas à cultura e ao lazer [6]”.
No seu Relatório
a Comissão Instaladora abordava ainda aspectos respeitantes ao Envolvimento da
População, à Comunicação e Marketing, a
estudos sobre os públicos potenciais e a métodos de avaliação de resultados.
Em relação ao
Envolvimento da População tratava-se basicamente de conceber um modo de atrair
à programação as pessoas habitualmente arredadas dos espectáculos, exposições e
outras actividades culturais, se necessário indo ao seu encontro na rua ou nos
bairros. Para tanto, propunham-se essencialmente dois tipos de accções: “as que
valorizem a participação das populações dos bairros na melhoria e animação dos
seus espaços comuns, recriando tradições significativas da cultura popular com
meios técnicos e financeiros acrescidos; as que, pela informação e
sedução/provocação que transportem, possam induzir nos cidadãos a vontade de
participarem em outros eventos incluídos na programação geral do Porto 2001,
mesmo quando realizados noutras zonas na cidade e em equipamentos culturais a
que habitualmente não acedem [7]”.
Para levar a cabo estes propósitos recomendava-se o envolvimento de instituições
públicas e privadas, como as escolas, clubes e associações, às quais deveria
ser proporcionado acompanhamento técnico qualificado de modo a incentivar as
iniciativas individuais ou de grupo.
Contava-se, também,
com a acção de um gabinete de Comunicação e Marketing, ao qual, a par de promover o envolvimento da
população, foi cometida a tarefa de planear a estratégia adequada a promover e
dar visibilidade à Capital Europeia da Cultura quer no plano nacional, quer no
plano internacional.
Reconhecia-se,
finalmente, a necessidade do trabalho dos decisores, gestores e programadores
assentar em dados concretos para efeito da definição de estratégias de
comunicação e de captação de públicos. Nesse sentido, a Comissão Instaladora da
Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura decidiu encomendar estudos
nesses domínios e propôs a criação de uma Comissão de Acompanhamento –
entendida como um pólo de reflexão independente e distanciado –, à qual ficaria
cometida a incumbência da elaboração de relatórios críticos e de pareceres
fundamentados sobre matérias em relação às quais fosse chamada a pronunciar-se.
Do ponto de
vista da Programação Cultural foram identificadas duas áreas de importância
estratégica: a Música e o Audiovisual e Multimédia [8].
A aposta no Audiovisual e Multimédia, de acordo com o Relatório da Comissão
Instaladora justificava-se fundamentalmente em função dos seguintes pressupostos:
“O inevitável
percurso para a Sociedade da Informação torna cada vez mais importante a
produção de ‘conteúdos’ em Portugal para salvaguardar a permanência da cultura
portuguesa no Mundo (...) num momento em que o satélite, o cabo e a difusão
terrestre digital aceleram os processos de globalização dos media e o seu impacto entre nós; a produção de conteúdos
audiovisuais e multimédia para ser feita com a qualidade que garanta a sua
eficácia e difusão internacional é um vasto campo de trabalho para criadores de
todas as áreas das artes e das letras, para investigadores e técnicos
qualificados, podendo fixar na cidade e área metropolitana a ‘massa crítica’
que tende a fugir-lhe e gerar a criação de organizações empresariais baseadas
nesse trabalho eminentemente cultural [9]”.
Estes
pressupostos, associados à ideia que aqui se retoma segundo a qual a
programação deveria decorrer de uma “escolha estratégica de sobressaltos que
nos coloquem perante a evidência lúdica das nossas ignorâncias, que estruturem
novos desafios e novas rotinas [10]”,
constituíram o ponto de partida para a explicitação da lógica da Programação da
área Audiovisual e Multimédia, a qual fez do Documentário a opção prioritária.
Uma vez feita
essa opção, por razões de coerência teórica e metodológica, considerou-se
essencial valorizar o papel do Cinema, pelo que se entendeu alterar a
designação da área para Cinema, Audiovisual e Multimédia, a qual viria
posteriormente a ser conhecida por Odisseia nas Imagens.
[1]. A Programação Cultural da Sociedade Porto 2001, sob a
coordenação de Manuela Melo, numa primeira fase, ficou a cargo de Álvaro
Domingues (Relações Institucionais), Paulo Cunha e Silva (Ciência e Literatura;
Relações com Roterdão), Pedro Burmester (Música), Miguel Von Haffe Pérez (Artes
Plásticas), Jorge Campos (Cinema, Audiovisual e Multimédia), Isabel Alves Costa
(Artes de Palco), João Teixeira Lopes (Envolvimento da População) e Júlio
Moreira (Animação da Cidade). Posteriormente, as equipas iniciais foram
reforçados com novos elementos. - Nota do Autor.
[2] . Relatório da Comissão Instaladora da Sociedade PORTO
2001 S.A. de Setembro de 1998, sem páginas numeradas.
[5] . É a seguinte a lista de recomendações avançadas no
Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 S. A.:
“- sedimentação de eventos e/ou áreas de criação já existentes (ou com
potencialidades) na cidade, e criação de novos eventos cíclicos em áreas estratégicas, que nasçam com uma qualidade a
manter depois de 2001”;
- fomento
da criatividade dos artistas portugueses,
através de encomendas, apresentação e divulgação do seu trabalho (inclusive em
outras áreas geográficas, com destaque para Roterdão) e, sempre que possível,
desenvolvendo no Porto projectos conjuntos com artistas de outros países;
- apresentação
de produções inéditas, seja porque
trazem à cidade pela primeira vez obras essenciais da cultura europeia e
mundial, seja pelo carácter artístico inovador que transportam;
- valorização
da cidade como espaço informal de contacto entre criadores e cidadãos, despertando o interesse global pela articulação
activa nos projectos incluídos no Porto 2001;
- integração
das programações específicas das diversas áreas, para que o programa global do Porto 2001 se desenvolva
ao longo do ano harmonicamente, seja no que respeita à distribuição dos pontos
altos, seja na sua ligação a projectos de menor dimensão que os possam
amplificar (no campo dos criadores e dos públicos), seja ainda para, em cada
momento, haver uma oferta diversificada, adequada às condições dos equipamentos
culturais e dos espaços públicos que os ligam;
- articulação
da Programação Porto 2001 com projectos de instituições culturais da Área
Metropolitana do Porto, desde que se
enquadrem no conceito global definido e se encontrem formas de co-financiamento
fora do orçamento da Capital Europeia da Cultura;
- privilegiar
eventos e actividades que potenciem a requalificação urbana também integrada no Porto 2001, com destaque para a
revitalização da ‘baixa’, a criação de ‘circuitos culturais’ ancorados nos
equipamentos e no património existente, o centro histórico, as frentes
ribeirinha e marítima e espaços informais (fábricas, armazéns, jardins, pátios
de bairros, etc.);
- estabelecer
pontes entre a criação artística e o universo empresarial, para que a criatividade de designers, arquitectos,
estilistas e artistas plásticos possa conferir a indústrias (tradicionais ou
emergentes) uma marca própria de qualidade e contemporaneidade de que cada vez
mais necessitam;
- não
esquecer o carácter festivo e lúdico
que toda a cidade deve apresentar ao longo do ano, para o que é necessário
cuidado especial com a defesa (pelos cidadãos e pelas entidades responsáveis)
do ambiente, nomeadamente com a limpeza de ruas e a renovação do imobiliário
urbano, da qualidade do alojamento, restauração e locais nocturnos de diversão,
da sinalização cuidada e cenográfica de obras, eventos e actividades diversas
incluídas no Projecto Porto 2001”. - in Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA de Setembro de 1998,
sem páginas numeradas.
[6] . Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA
de Setembro de 1998, sem páginas numeradas.
[8] . O Relatório da Comissão Instaladora segue de perto,
nesta matéria, o conteúdo das Linhas Gerais da Programação da Área Audiovisual
e Multimédia in Anexo III pp.
15-23. - Nota do autor.
[9] . Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA
de Setembro de 1998, sem páginas numeradas.
3.0. Ponto de
partida da Odisseia nas Imagens
Na declaração de
abertura contida no Relatório de Avaliação Final elaborado pelo responsável da Odisseia
nas Imagens, afirma-se:
“O ponto de
partida para a Programação de Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade
Porto 2001 foi, no âmbito do quadro conceptual definido para o evento Capital
Europeia da Cultura, a prestação de um serviço público a partir do qual pudesse
equacionar-se a projecção da visibilidade da cidade e da região em função de
uma área estratégica, ou negligenciada pelos vários poderes ou encarada numa
perspectiva meramente instrumental e à margem do que são hoje os requisitos a
partir dos quais se pensam as políticas do audiovisual. Pretendeu-se, pois,
lançar as bases de um debate no sentido de indagar qual o papel do Porto no
panorama do audiovisual português promovendo, simultaneamente, as bases de uma
política descentralizada nesse domínio, bem como as possibilidades de
integração de uma produção local na esfera do mercado global. Nessa medida,
toda a Programação foi construída em torno de um evento de grande potencial de
inovação, pluridisciplinar, de carácter estruturante e de longa duração
denominado Odisseia nas Imagens [1]”.
Porém, até chegar ao
conceito da Odisseia nas Imagens foi
necessário percorrer um longo caminho de identificação prévia do sector e dos
seus protagonistas, em particular da RTP, bem como recuperar a tradição do Porto
na História do Cinema Português, aliás, nascido na cidade pela mão de Aurélio da
Paz dos Reis.
Importava, por isso, reconhecer um conjunto de episódios suficientemente
relevantes para serem invocados como factores de legitimação das propostas que
viessem a ser apresentadas [2].
Nesse sentido, deviam ser tidos em conta o passado remoto e recente, o
presente, os principais criadores, as universidades, os festivais de cinema da
área metropolitana do Porto e o serviço público de televisão, neste caso por
forma a escrutinar e desafiar o seu papel regulador no quadro de uma paisagem
audiovisual prospectivamente descentralizada.
3.1 O Porto na História do Cinema Português
A História do Cinema
Português passa pelo Porto, mas, salvo um ou outro episódio, a cidade foi
sempre periférica em relação à produção global do País. A par do pioneirismo de
Paz dos Reis e das experiências da Invicta Film e da Caldevilla Film, já
destacados em capítulos anteriores, cumpre chamar a atenção para o papel desempenhado
por algumas revistas que surgiram no período áureo correspondente ao ciclo do
Porto, para a tradição cineclubista que ganhou peso a partir do final dos anos
50 e que viria a estar ligada à luta política de resistência à ditadura e para algumas
figuras cujo expoente é Manoel de Oliveira. Numa fase posterior à Revolução de
Abril vieram os festivais de cinema.
Durante algum
tempo as revistas especializadas tiveram expressão relevante. O Porto
Cinematográfico, fundado em 1919 por
Alberto Armando só viria a extinguir-se em 1925. Em 1923, acompanhando de perto
a actividade da Invicta Film, Roberto Lino fundou a Invicta Cine, a qual foi publicada regularmente até 1936. Qualquer
das revistas investiu no apoio ao cinema português, sem perder de vista aquilo
que ia pelo mundo e dedicando parte do seu espaço à crítica. A Invicta
Cine envolveu-se na polémica que envolveu o
advento do som assumindo um papel pioneiro em sua defesa. Foi devido ao
entusiasmo de alguns dos seus responsáveis “que se criou, no Porto, a primeira
associação cinematográfica, pioneira do futuro movimento cineclubista [3]”.
Essa Associação dos Amigos do Cinema, fundada em 1924, apesar de relativamente
limitada na acção que desenvolveu, propunha-se “defender o cinema nacional,
moralizar o cinema por meio da palavra escrita ou falada, fomentar o entusiasmo
pela Arte do Silêncio e produzir películas logo que a situação financeira o
permitisse [4]”.
O movimento
cineclubista teve o seu momento mais alto nos anos 60. Desde o final da Invicta
Film até essa altura a produção deixara praticamente de existir, salvo algumas raras
excepções. As mais notáveis são dois filmes de Oliveira Aniki-Bóbó (1941) – uma obra forte a ponto de ainda hoje ser
parte do imaginário do Porto – e O Pintor e a Cidade (1956), uma curta-metragem de cunho documental que
tem como ponto de partida as aguarelas de um artista muito conhecido, António
Cruz, porventura o maior aguarelista português. Em qualquer dos filmes, muito
diferentes entre si, o Porto tem uma presença filtrada através do olhar do cineasta
que descobre nele características peculiares como, aliás, acontecera já com Douro,
Faina Fluvial. Episodicamente, um ou outro realizador
rodou cenas de filmes no Porto, mas sem que isso correspondesse a algum
interesse particular de descoberta. Manuel Guimarães, porém, com a Costureirinha
da Sé (1958), inteiramente rodado na
cidade, embora seguindo a fórmula então em voga das operetas que serviam para
fazer aparecer na tela os cançonetistas mais populares, conseguiu fazer passar
um retrato sociológico da população da sua zona histórica. Já O Passarinho
da Ribeira (1959) de Augusto Fraga nada
trouxe de relevante.
Nos anos 60 o
Cineclube do Porto, através da sua Secção de Cinema Experimental, começou
também a produzir alguns filmes. Lopes Fernandes filmou o Auto de Floripes (1960), um ritual popular da aldeia das Neves, em
Viana do Castelo, mas, de um modo geral, essa produção não deu lugar a outras
obras relevantes embora se discuta o seu valor enquanto documento. Em
contrapartida, Manoel de Oliveira fez a partir do Porto mais três
curtas-metragens que são outras tantas obras-primas do cinema português: O Acto
da Primavera (1962), eventualmente
inspirado no filme de Lopes Fernandes, que foi seu assistente neste filme, A
Caça (1963) e as As Pinturas do
Meu Irmão Júlio (1965). Nesta altura, o
Cineclube do Porto era já o mais importante do País, sendo Henrique Alves Costa
a sua figura mais destacada. Foi ele o artífice, em 1967, da Semana do Novo
Cinema Português, evento que contou com a presença da maioria dos jovens
realizadores e cujas conclusões viriam a ter uma importância determinante no
futuro da cinematografia nacional.
Com o passar dos
anos, após a Revolução de Abril de 1974, a actividade do Cineclube do Porto,
minada por disputas partidárias e incapaz de se adaptar a um cinema que ia
colocando novos desafios, foi esmorecendo. Houve ainda uma cisão que deu origem
ao Cineclube do Norte, mas ao tempo da Capital Europeia da Cultura, ambas as
instituições tinham uma presença meramente residual no contexto da vida
cultural portuense.
Se durante o
período do cinema mudo a produção fora relevante a verdade é que “em 70 anos de
cinema sonoro, apenas 14 longas-metragens (o que dá um filme por cada 5 anos!)
escolheram a cidade como tema e cenário da intriga. Dessas, 3 são da autoria de
Saguenail, um realizador de origem francesa que vive e fez a sua obra no Porto,
e que é, por sinal, um dos mais interessantes, originais e desconhecidos
autores que alimentaram o imaginário cinematográfico português [5]”.
Feitas as
contas, pensando em filmes indissociáveis do imaginário da cidade, sobram meia
dúzia de títulos e de entre todos destacam-se três filmes de Oliveira Douro,
Faina Fluvial, Aniki-Bóbó e O Pintor e a Cidade. Qualquer deles faz parte do património monumental
do Porto, mas o primeiro é algo de inseparável da sua memória e do seu
imaginário [6]. Depois da
pateada na estreia em 1931, apesar dos elogios da crítica estrangeira e de
alguns dos mais destacados intelectuais portugueses, como José Régio [7]
e Adolfo Casais Monteiro, Douro, Faina Fluvial só viria a ser reposto em sala em 1934, no Teatro de
São João do Porto, como complemento do filme Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro, onde foi, então,
espontânea e prolongadamente aplaudido.
Mais tarde, Oliveira
esteve de passagem pelo Porto, nomeadamente em Inquietude (1988), Paulo Rocha filmou O Rio do Ouro (1998) e António Pedro Vasconcelos em Jaime (1999) voltou a colocar a cidade no centro das
atenções. Um ou outro cineasta estrangeiro também passou pelo Porto, mas nenhum
deles realmente interessado na sua identidade. John Malkovitch, por exemplo,
encontrou nele ambientes urbanos semelhantes aos da América do Sul e em The
Dancer Upstairs (2000) algumas ruas da
cidade passaram a fazer parte do Peru e do Equador.
A Revolução de
Abril tinha, entretanto, aberto as portas a outras iniciativas, entre as quais
há a destacar o aparecimento dos festivais de cinema, os quais, sobretudo no
caso do cinema de animação, viriam a ter impacto numa produção local cujo
desenvolvimento foi acompanhado da obtenção dezenas de prémios conquistados nos
principais festivais de todo o mundo.
[1] . Relatório de Avaliação Final do Departamento de
Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da
Cultura, sem páginas numeradas.
[3] . Costa, Alves – Breve história do cinema português
– 1896-1962, Biblioteca Breve,
Instituto de Cultura Portuguesa, Ministério da Educação e da Investigação
Científica, Lisboa, 1978.
[5] . Vasconcelos, António Pedro in Andrade, Sérgio C. – O Porto na História do Cinema, Porto Editora/Porto 2001, 2002, p. 7.
[6] . Vale a
pena retomar em pormenor o que foi a estreia do filme no Salão Foz, em Lisboa,
no decorrer do Congresso Internacional da Crítica: “Esta ante-estreia foi um
escândalo. Perante a surpresa dos congressistas estrangeiros, os espectadores
portugueses, na sua maioria, vaiaram ruidosamente o filme. O tema, o ritmo, a
montagem rápida de algumas sequências, irritaram o público (em grande parte
selecto e burro). A projecção foi sublinhada com constantes assobios e terminou
com uma estrondosa pateada. Ao intervalo e, ainda, já terminado o espectáculo,
muitos espectadores e alguns dos críticos (!?) portugueses ferviam de
indignação: ‘um sem jeito aquelas imagens vertiginosas! uma vergonha mostrar a
estrangeiros aquelas mulheres enfarruscadas, com carretos de carvão à cabeça,
de pé desclaço... aquelas nojentas vielas do Porto... aqueles prédios leprosos
do Barrêdo’ (Parece que ninguém se indignou por existirem aquelas desumanas
condições de trabalho dos carregadores do porto... parece que ninguém se
indignou por se viver ainda em péssimas condições de habitação e salubridade no
velho, degradado e populoso bairro do Barrêdo...)” - in
Costa, Alves, op. citada, p.
[7] . De Douro, Faina Fluvial disse Régio: “A moderna
poesia do ferro e do aço, o encanto da natureza através dos seus vários
aspectos e ‘nuances’, a tonalidade das horas, a alegria e a miséria do homem
sócio do animal na luta pelo pão de cada dia – tudo, ao longo de um dia de
actividade na margem do Douro, nos é dado com verdadeira grandeza. Precioso
como documentário o ‘Douro’ excede assim, e em muito o valor dum mero
documentário”. – Andrade, Sérgio C. – O
Porto na História do Cinema, Porto
Editora/ Porto 2001, 2002, p. 46.
3.1.1 Os Festivais
de Cinema enquanto elementos de regulação
Em Espinho, situado
na área metropolitana do Porto, reside um dos melhores festivais europeus de cinema
de animação, o Cinanima o qual não só permite uma informação actualizada de
tudo quanto de melhor se faz, mas também serve de âncora e estímulo à produção nacional:
“... quando há
vinte e cinco anos se lançou o Festival, muito mais do que o exercício lúdico
que também foi essa iniciativa havia nos promotores uma enraizada ideia de
contemporaneidade atenta a formas de dizer até então se não proscritas pelo
menos silenciadas ou limitadas a uma circulação restrita e marginal. A Banda
Desenhada ou o Cinema de Animação, por exemplo, ocupavam um território
relativamente desqualificado ou, na melhor das hipóteses, confinado a um
público infanto-juvenil considerado o destinatário natural de bens simbólicos
supostamente mais acessíveis do ponto de vista da significação e elaboração
artísticas. Mesmo à esquerda, entendida enquanto espaço de progresso e
liberdade por oposição ao conservadorismo da direita, durante muito tempo
prevaleceram concepções autorais radicadas em modelos do século XIX, cujas
consequências resultaram em conclusões apressadas e, como tal, inadequadas ao
ritmo e à compreensão das dinâmicas criativas emergentes. Basta recordar a
frequência com que a BD ou a Animação foram sumariamente remetidas para a
chamada cultura de massas e, por essa via, imediatamente desqualificadas [1]“.
Foi, portanto, necessário o sobressalto democrático de
Abril, que foi também um agitador no plano da criação artística, para que a
situação evoluísse numa outra direcção. Pioneiros como Vasco Granja e António
Gaio, entre outros, entregaram-se à tarefa de fazer crescer uma arte que há
muito os seduzia e que, nessa altura, muito por mérito deles próprios, se
encontrava numa fase explosiva de divulgação, afirmação e legitimação. Desse
impulso resultaram os primeiros workshops
de cinema de animação, nos quais participaram os maiores especialistas do mundo
e os quais contribuíram para formar a primeira geração de animadores cujo
reconhecimento internacional não tardaria, casos de Abi Feijó, Pedro Serrazina
e Jorge Neves e, um pouco mais tarde, Regina Pessoa. O Cinanima foi, portanto,
o grande responsável pelo salto em frente dado pelo cinema português de animação,
atestado, como se disse, pela atribuição de numerosas distinções um pouco por
todo o mundo.
As curtas metragens de ficção, por seu turno, constituindo
uma parte significativa dos conteúdos simbólicos produzidos pelo audiovisual
europeu, têm no jovem cinema português um número significativo de representantes.
Atraindo um número sempre crescente de cineastas e desenvolvendo um discurso
próprio dão a conhecer os novos criadores que, em Portugal, têm no Festival
Internacional de Vila do Conde [2]
um fórum especializado. À semelhança do Cinanima também neste caso o festival
desempenhava um papel de regulação quer no plano simbólico quer no impulso à
produção, na medida em que através da sua Agência da Curta Metragem lhe cabia a
responsabilidade da distribuição da produção portuguesa no estrangeiro.
O Fantasporto –
Festival de Cinema do Porto – provavelmente o mais popular do País, sendo
embora de certo modo atípico na medida em que não tem impacto estruturante
comparável ao dos outros festivais mencionados, tem prestígio internacional e é
uma bandeira da cidade. Na ressaca da Revolução de Abril, o público começou a
deixar as salas, as actividades cineclubistas entraram em declínio e a
televisão introduziu uma mudança de hábitos disponibilizando conteúdos de
massas até então inéditos, como as telenovelas brasileiras. O Fantasporto contribuiu,
de algum modo, para contrariar essa tendência. Logo na sua primeira edição, em
1981 [3],
apresentou uma notável retrospectiva de clássicos aparentados com o que então
timidamente se designava por cinema fantástico [4].
“Apesar do
fantástico aparecer claramente associado à imaginação e ao maravilhoso, numa
linha que remonta a Méliès, e num contexto que nenhum cinéfilo desprezaria, a
verdade é que o Fantasporto logo apareceu associado nas páginas dos jornais à
ideia de sangue, vampirismo, terror e outras enormidades. Na verdade, o que
havia era uma programação a pensar na captação de públicos, ora articulando a
exibição de filmes recentes aguardados com expectativa com obras de referência
da História do Cinema, ora dando a conhecer cinematografias menos conhecidas ou
propondo uma releitura de filmes relativamente marginais, sem deixar de convocar
os cineastas portugueses [5]”.
Portanto, numa
altura em que se acentuavam sinais de depressão, o Fantasporto veio marcar nova
viragem na História do Cinema do Porto e da sua área metropolitana ao ousar
novos caminhos que permitiram a captação de muitos jovens, cúmplices da
aventura empreendida. O Fantasporto juntava-se, assim, ao percurso iniciado alguns
anos antes pelo Cinanima – a partir do qual, como se disse, viriam a lançar-se
as bases da mais importante produção cinematográfica do norte do País, o cinema
de animação, em torno de produtoras como a Filmógrafo e a Alfândega Filmes – e,
posteriormente, prosseguido pelo Festival Internacional de Curtas Metragens de
Vila do Conde.
A partir das
considerações em torno da presença do Porto na História do Cinema Porttuguês,
da sua memória e do seu presente, surgiu uma primeira sistematização de
questões a ter em conta para efeito da definição das linhas gerais da
Programação. Essas questões foram as seguintes:
- Qual o grau
de identificação da realidade existente com a memória e tradição da cidade em
matéria de produção cinematográfica?
- Qual o
papel dos cineclubes e o seu grau de adequação às exigências da modernidade no
cinema e ao fomento da produção nacional?
- Qual a
importância relativa dos festivais existentes na área metropolitana do Porto no
quadro das tendências, consensos e políticas europeias para o cinema e audiovisual
que apontam para o incremento de uma produção diferenciada e competitiva em
relação à grande produção americana?
[4] . “Alguns títulos: “O Vento”, de Sjostrom; “O
Testamento de Orfeu” e “A Bela e o Monstro”, de Cocteau; “A Atlãntida”, de
Jacques Feyder; “O Gabinete do dr. Caligari”, de Robert Wiene; “Metropolis”, “A
Mulher na Lua” e “Dr. Mabuse”de Fritz Lang; “Nosferatu”, de Murnau; “O Feiticeiro de Oz”, de Victor
Flemming. Da selecção faziam ainda
parte cineastas como Hitchcock, Vadim, Malle, Fellini, Tarkovsky, Bergman e
Polanski, aos quais se juntavam Werner Herzog, De Palma, Peter Weir, Kaufman e
Nicholas Roeg. bem como alguns dos filmes de culto da Hammer Films, entre os
quais “Dracula”. – Nota do Autor.
3.2 O Audiovisual e o Ensino Superior
A par dos
festivais de cinema, cuja consolidação era um dado adquirido, outros factores
contribuíam para introduzir alterações na paisagem audiovisual da cidade, entre
os quais as universidades e o ensino superior politécnico com os seus cursos de
Imagem e Som, Cinema e Vídeo e, também, de Jornalismo e Comunicação Social. A
partir de meados da década de 80, mas, sobretudo nos anos 90, o meio
universitário foi sensível ao mundo das Ciências da Informação e da
Comunicação, tendo igualmente manifestado um interesse renovado pelas áreas
criativas. Surgiram cursos de Jornalismo na Escola Superior de Jornalismo do
Porto e na Universidade Fernando Pessoa, cursos de Cinema e Vídeo na Escola
Superior Artística do Porto e um curso de Imagem e Som na Universidade Católica
Portuguesa. Na Universidade do Minho, com sede em Braga, havia também uma
especialização em Jornalismo no âmbito de um curso de Ciências da Informação e
Comunicação. E no Instituto Politécnico do Porto surgira o Curso de Tecnologia
da Comunicação Audiovisual do qual saía um número apreciável de técnicos para o
sector audiovisual.
Por outro lado,
uma nova geração de protagonistas formados nestas escolas foi ocupando lugares
nos departamentos de Informação e de Programação dos operadores televisivos, ao
mesmo tempo que outros iam dando corpo a uma indústria embrionária de conteúdos,
nalguns casos com elevado potencial de internacionalização como o cinema de
animação produzido pela Filmógrafo ou os seriados televisivos de animação em 3D
da autoria da Miragem, cujo Major Alvega
viria a revelar-se um êxito de vendas no exterior, pelo menos tendo em conta a
habitual omissão de Portugal nos mercados mais representativos.
Em torno destas
matérias e da sua articulação com os pontos anteriores, surgiu um segundo
conjunto de questões:
- Onde e como
se criam e desenvolvem os saberes?
- Qual a
relevância da produção escolar?
- Que se
produz no Porto em matéria de cinema, audiovisual e multimédia, quem produz,
como se produz e em função de que capacidades instaladas e saberes existentes?
- Que
potencial de internacionalização tem essa produção?
- Em função
das capacidades instaladas e dos saberes existentes o que valeria a pena
produzir para o mercado global e com que protagonistas?
- Faria
sentido a aposta em nichos de mercado?
3.3 O Serviço
Público de Televisão: uma perspectiva descentralizada
Entendeu-se que
a resposta às questões enunciadas deveria ser equacionada em função da
possibilidade de uma proposta de redefinição estratégica do papel do serviço
público de televisão, cuja componente regional denotava a par de uma evidente capacidade
de produção instalada um manifesto sub-aproveitamento dessa mesma capacidade.
No texto de base [1] elaborado
para servir de ponto de partida à proposta de integração da RTP/Porto nos
projectos do Porto 2001, numa altura em que estava ainda no poder o governo do
Partido Socialista que sucedera aos governos de centro-direita de Cavaco Silva,
podia ler-se:
“Qualquer avaliação do Centro de Produção do Porto da
RTP é indissociável das medidas levadas a cabo nos últimos anos do cavaquismo.
Dir-se-á que foram medidas avulsas, implementadas conjunturalmente, sem uma
estratégia previamente definida, enfim, sem uma ideia relativa
aos objectivos a atingir, embora orientadas por um princípio geral de contornos
indeterminados ao qual poder-se-ia chamar crescimento. A situação actual parece ser a de uma gestão
precária da herança recebida [2]”.
Acrescentava-se
de seguida:
“Aparentemente,
as decisões tomadas ao longo dos tempos foram resultantes de actos
voluntaristas, num quadro reivindicativo bipolar, ou seja, às tendências
tradicionalmente centralizadoras de Lisboa foi respondendo o Porto, e mais por
intervenção da classe política, com desígnios de uma autonomia crescente do seu
Centro de Produção. Ninguém terá procurado responder com rigor a uma pergunta
tão simples quanto esta: autonomia para fazer o quê [3]”?
Nunca
tendo sido dada resposta adequada a esta pergunta, o crescimento do Centro de
Produção do Porto da RTP teve um efeito paradoxal: “uma notável capacidade
instalada de produzir televisão ora sub-aproveitada ora simplesmente desactivada [4]”.
Face a este diagnóstico, e tendo em conta a introdução das tecnologias do cabo
e do digital, bem como a abertura da televisão aos operadores privados,
resultava evidente a caducidade de modelos e processos longamente
interiorizados pela RTP. Assumia-se que por razões políticas e de cidadania a
questão do serviço público adquiria novos contornos e maior relevância,
nomeadamente em termos do reconhecimento de uma identidade a preservar e de uma
cultura a defender “na base de uma diversidade que valoriza o regional,
exige a excelência do discurso e prossegue a via da internacionalização [5]”.
Como
corolário do exposto, afirmava-se no documento:
“É
neste quadro que deve encontrar-se uma solução para o Centro de Produção do
Porto, de tal modo que o seu estatuto
de dependência crónica seja revisto e transformado num estatuto de parceria e complementaridade no âmbito da RTP. Essa revisão não deve, no entanto,
ser feita a partir de um registo de cedências ou reivindicações, antes deve ser
encarado como uma necessidade do serviço público no seu conjunto, por forma a exponenciar as mais-valias da sua
componente regional [6]”.
Resultava
daqui um terceiro conjunto de questões:
- Qual o
papel a desempenhar pelo Centro de Produção do Porto da RTP?
- Qual a
capacidade e vontade de intervenção do Centro de Produção do Porto enquanto
elemento regulador de uma produção audiovisual de âmbito local e regional?
- Quais as
possibilidades de internacionalização do Centro de Produção do Porto da RTP,
nomeadamente em termos de co-produções, num quadro de televisão segmentada e de
conquista de nichos no mercado global?
- Qual a
abertura da RTP para aceitar debater políticas de intervenção descentralizadas?
Naturalmente, a
abordagem destas matérias revestia-se de aspectos delicados. Sendo certo que o
documento contemplava questões cuja relevância era indiscutível para alguns
sectores da RTP, sobretudo aqueles mais ligados à sua componente regional, nem
por isso deixava de se correr o risco de outros verem nas considerações
avançadas uma tentativa de intromissão na vida interna da empresa. Fortemente
centralizada e quase sempre encarada numa perspectiva instrumental pelo poder
político, a RTP tinha uma longa tradição de resistência a reflectir sobre si
própria. De qualquer modo, apesar do risco de eventuais más interpretações,
lançar Pontes para o Futuro no domínio
do Cinema, Audiovisual e Multimédia não poderia deixar de interpelar o serviço
público de televisão [7].
4.0.
Elucidação de objectivos da Odisseia nas Imagens
A reflexão a propósito
da História do Cinema no Porto, dos Festivais, das Universidades e do Centro de
Produção do Porto da RTP, bem como as questões suscitadas, tiveram expressão no
documento respeitante ao último trimestre de 1999, no qual se procedia a uma
primeira abordagem daquilo que poderia viria a ser a Programação de Cinema,
Audiovisual e Multimédia [1].
O documento dava conta, a abrir:
“A primeira
ideia que ocorre no âmbito dos eventos a programar para o Porto 2001 - Capital
Europeia da Cultura é a ideia da visibilidade. Numa primeira leitura, estaríamos perante um conceito cujo valor
instrumental seria testado em função do tempo e do espaço dedicados à
divulgação em antena, ou através dos circuitos da sociedade da informação, do
conjunto de iniciativas constantes da programação global. Este pôr o
Porto no mapa exige, porém, o entendimento, a um outro nível, de
uma vertente complementar dessa dimensão instrumental. Essa vertente respeita
ao(s) discurso(s), de cuja excelência depende o alcance e o impacto da divulgação
pretendida. Só a qualidade do(s) discurso(s), ancorada na convergência da
criatividade com o domínio das técnicas e das linguagens, permitirá, com
efeito, prosseguir a estratégia de internacionalização consequente dos
objectivos delineados [2]”.
Afirmava-se seguidamente:
“Na mesma linha
de pensamento importa reconhecer o Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura
como potencial e, porventura, decisivo agente de mudança da paisagem
audiovisual e multimédia local e regional, tendo em conta não apenas as capacidades
de produção instaladas, mas também os saberes dispersos pelos diversos
protagonistas, sejam eles da área empresarial, pública ou privada, ou das áreas
dos festivais e da universidade. A mudança pretendida, no sentido de conferir
maior e melhor presença à globalidade do sector, se recusa qualquer prática de
intervencionismo, aliás, ilegítima, nem por isso deixa de exigir, da parte
Sociedade Porto 2001, a capacidade de lançar um conjunto de desafios nos quais
os potenciais parceiros da Capital Europeia da Cultura possam encontrar motivos
mobilizadores [3]”.
Do exposto resultavam
alguns pressupostos e outras tantas intenções de cuja articulação era
previsível chegar a uma malha coerente de programação. Assim, a aposta na
excelência do discurso impunha critérios rigorosos em relação àquilo que se
pretendia dar a ver, sendo que o dar a ver teria de corresponder a opções de
ordem estratégica alicerçadas num intuito fundador de promover a criação de
novos públicos, dos quais, por sua vez, era suposto poderem sair novos agentes
culturais com intervenção, nomeadamente no plano da produção e, logo, com
impacto no tecido empresarial da indústria audiovisual. Por outro lado, as
opções de ordem estratégica teriam sempre de ser definidas em função das
capacidades instaladas e dos saberes existentes valorizando, portanto, os
festivais, as universidades e o Centro de Produção do Porto da RTP.
Contudo, a par
da lógica de reforço do trabalho desenvolvido, haveria também que conferir
sentido prospectivo à programação procurando identificar um território de novas
apostas fosse em termos das linguagens transversais, fosse no domínio de
modalidades discursivas e narrativas, como o documentário, cujas
características pareciam adequadas a um investimento de reprodutibilidade
previsível a médio prazo. Tratava-se, em suma, de acertar o passo com novos e
velhos desafios numa perspectiva de envolvimento e desenvolvimento de parcerias
criativas, o que só poderia ser feito no quadro de uma programação de alta
qualidade, deliberadamente interpelativa e, por isso mesmo, obrigada a
acautelar os aspectos lúdicos e conviviais sem os quais correria o risco de se
encerrar num anacrónico espaço de especialistas voltados sobre si mesmos.
Como corolário resultava
que “da aceitação desses desafios, bem como do percurso que cada qual for capaz
de fazer, construindo pontes entre o público e o privado, entre as empresas e a
Universidade, entre o mercado nacional e o mercado internacional, é suposto
surgir algo de qualitativamente diferente a ponto de tornar a cidade num porto
de acolhimento de eventos e criadores, cujo horizonte temporal se pretende
projectar para além de 2001 [4]”.
Em função deste
enquadramento o passo seguinte iria no sentido de desencadear as iniciativas preliminares
que permitissem montar a logística indispensável à concretização dos objectivos
propostos. Desde logo, numa primeira fase, estabelecer contactos tendo em vista
a criação de parcerias estratégicas com a RTP, com os estabelecimentos de
ensino superior da área metropolitana do Porto e com os festivais de cinema.
No primeiro
caso, tratava-se, por um lado, de propor um tipo de intervenção que de algum
modo pudesse reflectir uma proposta de reorientação estratégica do serviço
público de televisão de âmbito regional privilegiando os aspectos de regulação
da paisagem audiovisual numa perspectiva de descentralização, e de assegurar,
por outro lado, a cobertura televisiva da Programação e actividades da Capital
Europeia da Cultura, sendo que estas duas vertentes deveriam ser articuladas de
modo a possibilitar o aparecimento de conteúdos qualitativamente diferentes.
No segundo caso,
tratava-se de envolver as universidades para efeito da criação de novos
públicos encarados como potenciais geradores de criadores e agentes culturais,
sendo que este envolvimento de professores e estudantes deveria obedecer à
perspectiva de os familiarizar com as áreas simbólicas de interesse estratégico
fazendo deles, simultaneamente, actores de um processo de transformação que
deveria passar pela sua participação em acções de formação e de produção
audiovisual e multimédia no âmbito dos respectivos cursos.
Finalmente,
quanto aos festivais tratava-se de os integrar na Programação oficial da
Capital da Cultura como elemento de valorização procurando, simultaneamente,
promover novas sinergias. Aliás, as primeiras opções quanto àquilo em que
valeria a pena apostar iam no sentido do reconhecimento do trabalho por eles
efectuado ao longo dos anos, nomeadamente no domínio das curtas metragens e do
cinema de animação. O documentário viria logo a seguir, constituindo-se como
paradigma do que valeria a pena divulgar e produzir.
A opção pelo
documentário obedeceu a critérios de vária ordem [5].
Tratando-se de algo se não proscrito pelo menos relativamente marginal em
termos de produção e distribuição cinematográfica pareceu oportuno recuperá-lo
e dá-lo a conhecer na amplitude das suas modalidades e numa perspectiva de
poder vir a interessar novos públicos e futuros criadores. Tanto mais que
graças à televisão – e apesar dela – o documentário atravessava uma fase de
rápido desenvolvimento com expressão no número de festivais existentes e nos
níveis de produção dos países da União Europeia, com destaque para o Reino
Unido. Por outro lado, não exigindo meios avultados e sendo uma espécie de
álbum de família dos povos, como lhe chamou Patrício Guzmán, o documentário poderia
transformar-se num meio privilegiado de dar a conhecer a cidade. A prazo, à
semelhança do que já estava a acontecer com Barcelona, o Porto poderia vir a
ser a capital do documentário em Portugal, com todas as vantagens daí
decorrentes no domínio das infraestruturas produtivas e das superestruturas da
credibilidade e da visibilidade.
Esta
ideia era reforçada em função de tendências identificadas no quadro audiovisual
europeu:
“Essas
tendências apontam para uma produção genuinamente europeia, no âmbito da qual
se verifica a revalorização do local e do regional entendidos como base do
universal. No plano simbólico, faz-se, portanto, a defesa da visibilidade das
diferentes parcelas do conjunto da União Europeia. Esta unidade na diferença é
reforçada e estimulada pelo facto das tecnologias da informação e da
comunicação, em particular o digital, terem pulverizado o universo televisivo
generalista, dando lugar a uma televisão temática, segmentada e especializada.
Trata-se de uma mudança radical, pois não apenas se subverte o quadro de
difusão tradicional, mas também se induz uma verdadeira revolução no plano das
linguagens [6]”.
Nesta
perspectiva, o espaço documentário nas suas sempre complicadas relações com a
televisão, uma vez ultrapassada a fase histórica do domínio do modelo generalista,
deveria merecer um novo enfoque. Como é sabido, num primeiro momento, o
documentário teve largo acolhimento no meio televisivo. Posteriormente, porém,
a ditadura das audiências levou à imposição de formatos condicionadores da
liberdade de criação e, nalguns casos, afastou-o, quando não o baniu da
programação. Subsistiram, de modo mais ou menos generalizado, sequelas desse
processo, cuja principal consequência no plano da linguagem foi a
desvalorização da lógica das imagens a favor do primado da palavra, de algum
modo à semelhança daquilo que levou René Clair a comparar algumas fitas da
época do advento do cinema sonoro a um gramofone com ilustrações. Algumas experiências
televisivas viriam, no entanto, a revelar-se interessantes, sobretudo porque,
dirigindo-se ao grande público, não só mantiveram padrões elevados em termos
artísticos, mas também se revelaram de indubitável interesse informativo,
formativo e pedagógico.
A par desta
constatação foram igualmente levadas em conta as previsíveis consequências da
revolução digital, bem como da segmentação e especialização da oferta
televisiva, elementos a considerar para efeito de pensar o documentário. Tal
como acontecera com os formatos de eficácia reconhecida, devido ao aumento da
procura e da exigência de parâmetros qualitativos mais elevados ao nível dos
canais culturais e temáticos, parecia legítimo admitir a possibilidade de abrir
uma janela de oportunidades para o reaparecimento de tendências – que pareciam
perdidas – orientadas para recuperação do primado da aventura do olhar, recuperando,
portanto, a tradição do cinema do real.
Assim sendo, e
reconhecendo no cinema a matriz essencial do documentário estabeleceu-se uma
nova parceria estratégica, desta vez, com a Cinemateca Portuguesa, da qual viria
a resultar o elo mais forte da Odisseia nas Imagens, o ciclo O Olhar de Ulisses [7].
[5] . A maioria da razões para a opção pelo documentário
encontram-se já enunciadas na Introdução. Ver Anexo III – pp. 46-49. - Nota
do Autor.
4.1 Parcerias
e áreas de intervenção estratégicas
No último
trimestre de 1999 estavam identificados os pilares estratégicos da Programação.
Era ponto assente que a Odisseia nas Imagens deveria ser construída em torno de um evento pluridisciplinar de
carácter estruturante e de longa duração, distribuído por locais tão
diversificados quanto possível por forma a ir ao encontro das pessoas – embora
os seus eventos mais emblemáticos devessem ter sede fixa [1]
–, e numa perspectiva de work in progress. Dado o seu carácter experimental pareceu ser esse o método mais
eficaz de enquadrar os ensinamentos respeitantes a cada módulo ou iniciativa
por forma a produzir alterações nos módulos ou iniciativas seguintes,
permitindo, se necessário, introduzir novas variáveis e inflexões de percurso
em função dos resultados alcançados e da experiência adquirida.
Havia igualmente
a previsão desse evento ser organizado em cinco módulos [2],
os quais por sua vez se desdobrariam em ciclos e iniciativas complementares,
beneficiando do apoio da Cinemateca Portuguesa [3]
e das parcerias com iniciativas consolidadas como o Fantasporto [4],
o Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde e o Cinanima, as
quais asseguravam à partida não só uma programação diversificada e dirigida a
diferentes públicos, mas também a extensão de parte dessa mesma programação a
outros municípios da área metropolitana do Porto [5].
Foi igualmente
negociado o apoio do Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM),
organismo dependente do Ministério da Cultura, para efeito da promoção e
divulgação das encomendas da Porto 2001 em festivais internacionais. Finalmente,
partiu-se para uma segunda linha de parcerias e acordos complementares,
nomeadamente com o Instituto Francês do Porto, Goethe Institut, Centre National
de la Recherche Scientifique (CNRS) de Paris e Festival du Scoop et du
Journalisme de Angers e Faculdade de Ciências da Comunicação da Universidade de
Santiago de Compostela cuja importância viria a revelar-se determinante para a
concretização e relevância de um número significativo de eventos [6].
Na presença do
quadro descrito chegou-se, portanto, a uma malha conceptual que apontava para
uma lógica de Programação cujas prioridades davam, resumidamente, acolhimento ao
seguinte:
-
identificação do que promover como modalidades discursivas estratégicas em
função das capacidades instaladas e saberes existentes;
- criação de
novos públicos em função dessas mesmas modalidades e em articulação com uma
forte componente de formação traduzida, quer na realização de workshops, quer no
estabelecimento de protocolos com estabelecimentos de ensino superior e com os
festivais de cinema;
- aposta na
excelência do discurso;
-
participação da RTP tendo em vista o seu papel regulador;
- alargamento
da Programação à área metropolitana do Porto através da integração de algumas
dessas iniciativas na Odisseia nas Imagens;
- aceitação
de projectos externos desde que compatíveis com o orçamento disponível no
quadro de prioridades definido;
-
estabelecimento de parcerias ajustadas ao modelo de Programação adoptado;
- lançamento
de bases para uma redefinição da paisagem audiovisual da cidade e da sua área
metropolitana abrindo janelas de oportunidade para futuras associações,
empresas e criadores;
-
desenvolvimento de estratégias de internacionalização adequadas à conquista de
um espaço de afirmação da cidade do Porto no audiovisual do noroeste
peninsular.
As preocupações
respeitantes à internacionalização foram equacionadas procurando estabelecer desde
logo relações com a cidade de Roterdão. A Capital da Cultura pensada pela
cidade holandesa obedecia, no entanto, a parâmetros muito diferentes. Enquanto
no Porto a prioridade era lançar um conjunto de iniciativas estruturantes de
modo a gerar dinâmicas culturais inovadoras, nomeadamente através do fomento de
novos equipamentos como a Casa da Música e o melhoramento de outros já
existentes, em Roterdão, uma cidade culturalmente bem equipada, as linhas gerais
da programação obedeciam a critérios, sobretudo de carácter civilizacional,
ocupando o multiculturalismo um lugar dominante.
Em todo o caso,
foram estabelecidos contactos com produtores holandeses tendo em vista a co-produção
de filmes e de programas de televisão. Em relação a estes últimos, devido aos
custos elevados e à dificuldade em encontrar parceiros entre os operadores de
televisão a hipótese foi rapidamente descartada. Em relação ao cinema, porém,
foi estabelecido um acordo tendo em vista retomar uma série de sucesso
denominada City Life e, nessa medida,
acertar a produção de oito filmes de jovens realizadores sobre as cidades do
Porto e de Roterdão assegurando, em simultâneo, a sua estreia mundial conjunta
no Rotterdam International Film Festival, um dos mais importantes da Europa, no
dia de abertura da Capital Europeia da Cultura holandesa [7].
Concomitantemente,
beneficiando da experiência dos festivais da área metropolitana do Porto, casos
do Cinanima e, sobretudo, do Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila
do Conde, outros contactos foram estabelecidos tendo em vista a possibilidade
de colaborações mais alargadas no âmbito da Odisseia nas Imagens. Esses contactos foram relevantes para a programação
da área multimédia, território de experimentação de novas linguagens e um pólo
de interesse prioritário do universo escolar.
Identificadas as
principais parcerias, lançado o concurso de projectos e estabelecidas as
prioridades em função da estratégia delineada entendeu-se que a Programação
deveria ser entendida como um percurso, cujo itinerário poderia ser alterado,
inflectido ou rectificado consoante as necessidades criadas pela sua própria
circunstância, de modo a:
a)
Proporcionar uma Programação de grande qualidade e elevado grau de exigência
b) com vista
a abrir caminho à concretização dos objectivos estrategicamente delineados
c) procurando
valorizar a componente formativa,
d) mas sem
descurar a dimensão lúdica e espectacular,
e) de modo a
fidelizar públicos para modalidades discursivas alternativas ajustadas a uma
política de nichos de mercado
f) de cuja
afirmação pudesses resultar uma nova dinâmica produtiva para o Porto, conferindo um sentido prospectivo à sua
tradição e memória de Cidade de Imagens,
g) numa
perspectiva de internacionalização.
Para que esta
lógica pudesse produzir resultados entendeu-se dar início à Odisseia nas
Imagens ainda durante o ano de 2000.
4.1.1 Work
in Progress
Por razões de
urgência a primeira parceria concretizada foi com a RTP. Tratava-se da
possibilidade de poder beneficiar em tempo útil de fundos comunitários do
INTEREG e de começar a delinear o protocolo entre a Sociedade Porto 2001 e a
RTP [8]
na base dos pressupostos enunciados. Quanto aos fundos comunitários a Sociedade
Porto 2001 diligenciou junto de Santiago de Compostela, Capital da Cultura em
1999 e de Salamanca, Capital da Cultura em 2002, no sentido de estabelecer um
acordo visando dar passos para o estabelecimento de uma plataforma audiovisual
do noroeste peninsular. Nesse sentido, houve uma consulta prévia à Comissão de
Coordenação da Região Norte, a qual disponibilizou informações sobre os fundos
disponíveis, alertando, no entanto, para constrangimentos decorrentes de prazos
muito apertados para a formulação de candidaturas.
Estes constrangimentos
inviabilizaram à partida a participação de Salamanca, na altura ainda numa fase
muito embrionário da preparação da sua Capital da Cultura, mas não impediram a
manifestação da vontade de avançar por parte dos outros parceiros. A Sociedade
Porto 2001 apresentou então o esboço de uma proposta designada Televisões
Periféricas no Mercado Global [9].
Pretendia-se, fundamentalmente, dar um primeiro passo no sentido da cooperação
entre os operadores de televisão de serviço público de Portugal e da Galiza, de
modo a envolver ambas as capitais da cultura e a beneficiar da presença das
universidades do Porto e de Santiago de Compostela. A componente universitária deveria
permitir levar a cabo estudos em função dos quais fosse possível identificar os
contornos de um mercado audiovisual comum ao norte de Portugal e da Galiza e
fazer opções em matéria de co-produções. O projecto deveria ser financiado por
fundos europeus. O prazo para a apresentação da candidatura, efectivamente
muito apertado, viria, no entanto, a expirar antes do processo poder ser
concluído [10].
Contudo, alguns
dos pressupostos subjacentes à elaboração da proposta respeitante às Televisões
Periféricas no Mercado Global viriam a ser integrados tanto no primeiro quanto
no segundo protocolos assinados com a RTP. Esses pressupostos resultavam da
tentativa de identificar o lugar de uma cidade de dimensão média como o Porto
no contexto da produção audiovisual europeia. Procurou-se relevar o papel
regulador do serviço público de Televisão enquanto instrumento de políticas
para o audiovisual, nomeadamente no âmbito da produção e distribuição de conteúdos.
O regional, elemento de diferenciação no mercado global, surgia associado à
identificação de nichos de mercado a partir dos quais poderia pensar-se em
produções especializadas.
Seguindo a mesma
linha de orientação o protocolo contemplava o acolhimento de iniciativas da
responsabilidade da RTP como o MAT (Mostra Atlântica de Televisão) e a reunião
anual do CIRCOM, organismo representativo de cerca de 400 televisões de serviço
público de âmbito regional. Estas iniciativas seriam palco de mostras nas áreas
do documentário, da grande reportagem e de outros formatos televisivos, bem
como de seminários e conferências com enfoque em tendências do audiovisual
europeu centradas no local e regional [11].
Paralelamente
decorreram negociações com os cursos do ensino superior do Porto tendo em vista
a sua integração e participação na Odisseia nas Imagens na linha dos pressupostos enunciados
em documentos preliminares:
“A
Universidade tem vindo a desenvolver cursos de Jornalismo, Comunicação Social,
Multimédia e Imagem e Som. Passa, por outro lado, por uma fase crucial: a
dotação plena de tecnologias da informação, da qual não se ausenta a
necessidade de afirmação na sociedade da comunicação. A este nível, é gritante,
por exemplo, a precariedade das intervenções em suportes próprios e da
responsabilidade da própria Universidade e dos seus diversos actores. Nesse
sentido, o Porto 2001 pretende lançar o desafio de articular os cursos
existentes com iniciativas exteriores à Universidade. Essas iniciativas poderão
conhecer diversos rumos, sejam eles do domínio da formação ou da produção de
conteúdos, da divulgação ou da pesquisa, mas, em todo caso, serão sempre
iniciativas orientadas em termos do reforço da ligação ao meio, por um lado, e
de reforço das próprias estruturas universitárias em matéria de audiovisual e
multimédia [12]”.
O universo dos
estudantes universitários seria, assim, o alvo natural para efeito da criação
de novos públicos, bem como o núcleo a partir do qual deveriam gerar-se
dinâmicas de criação e de produção em torno das modalidades de relevância
estratégica: o documentário, as curtas metragens de ficção e o cinema de
animação, sem prejuízo de incursões noutros domínios [13].
Por essas razões os protocolos assinados com as universidades [14]
contemplavam a integração da Odisseia nas Imagens nos planos curriculares dos respectivos cursos, comprometendo-se
a Sociedade Porto 2001 a reservar uma percentagem da lotação das salas, consoante
a sua capacidade, para estudantes devidamente credenciados.
Por outro lado,
as escolas deveriam fomentar a produção escolar destinada a ter visibilidade
pública num festival competitivo com o qual se encerraria, no plano simbólico,
a opção estratégica feita pela Sociedade Porto 2001 na área audiovisual e
multimédia. Essa produção seria parcialmente financiada pela Capital Europeia
da Cultura no pressuposto de que as verbas atribuídas seriam investidas em know
how e infraestruturas.
Se as parcerias
com a RTP, com os festivais e com as universidades resultaram da iniciativa da
Sociedade Porto 2001 outras poderiam resultar da iniciativa da sociedade civil
na sequência da abertura de um período para aceitação de projectos externos, os
quais seriam avaliados em função da sua compatibilidade com a lógica global da
Capital Europeia da Cultura e das opções estratégicas definidas pela área do
Cinema, Audiovisual e Multimédia.
[1] . As iniciativas da Odisseia nas Imagens realizaram-se
nos seguintes 32 Espaços:
Associação Os Filhos de Lumiére; Auditório Municipal de Vila do Conde; Bar
Labirintho; Bar Trintaeum; Bar Voice; Biblioteca Almeida Garrett; Casa das
Artes; Casa Tait; Centro Multimeios de Espinho; Cinema Trindade; Coliseu do
Porto; Escola Superior Artística do Porto; Escola Superior de Artes e Design;
Escola Superior de Jornalismo do Porto; Estação de S. Bento; Faculdade de Belas
Artes da Universidade do Porto; Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;
Filmógrafo; Fnac; Fundação de Serralves; Galeria Artes em Partes; Hard Club;
Instituto Nacional de Engenharia de Sistemas e Computação; Moagens Harmonia;
Porto Palácio Hotel; Rivoli Teatro Municipal; RTP Porto; Teatro do Campo
Alegre; Universidade Católica do Porto; Universidade do Minho; Universidade
Fernando Pessoa; Universidade Popular do Porto. - Relatório de Avaliação Final
do Departamento de Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001 –
Capital Europeia da Cultura, sem páginas numeradas.
[2] . Na verdade, a previsão pecou por excesso de
optimismo e logo após o primeiro módulo da Odisseia nas Imagens se constatou a impossibilidade, por razões de vária
ordem, de concretizar os cinco módulos, que passaram a quatro. – Nota do
Autor.
[3] . Ver Anexo III – p. 44. O Protocolo assinado com a
Cinemateca Portuguesa tinha fundamentalmente o objectivo de beneficiar da sua
larga experiência para efeito da Programação de Cinema, nomeadamente no
respeitante aos ciclos respeitantes do filme documentário. Previa ainda a cedência
de filmes, textos e fotos para catálogos, intercâmbio com outras Cinematecas e
apoio em matéria de relações internacionais. Outro objectivo era lançar as
bases para uma programação regular da Cinemateca Portuguesa no Porto. – Nota
do Autor.
[4] . Ver Anexo III – pp. 42-43. O protocolo com o
Fantasporto foi o mais difícil de concretizar. Em causa, para além de
desencontros em termos das contrapartidas financeiras desejadas pelo festival,
parece ter pesado o clima de tensão, entretanto criado entre a Sociedade Porto
2001 e o Ministério da Cultura, cujo titular da altura, Manuel Maria Carrilho,
sempre demonstrou apreço pelo papel desempenhado pelo Fantasporto. Nos jornais
surgiam sistematicamente notícias sugerindo a incapacidade da Sociedade Porto
2001 para dar corpo a uma programação, chegando mesmo a aventar-se a hipótese
de remodelação dos programadores. Após a audição destes por parte de uma
comissão parlamentar, a partir da qual se ficou com uma ideia mais precisa dos
objectivos da Programação Cultural, o Fantasporto diria ter havido até então um
défice de comunicação e daria o contencioso por encerrado. - Nota do Autor.
[5] . Ver Anexo
III – pp. 18-19. Os protocolos assinados com os Festivais de Cinema do Porto e
da sua área metropolitana tinham fundamentalmente os seguintes objectivos:
- Cinanima
- Reforçar o Cinanima como corolário da aposta estratégica da Porto 2001 no
Cinema de Animação. Integrar o Cinanima na Programação da Odisseia nas
Imagens. Apoiar a edição em livro e
CD-ROM da História da Animação em Portugal no âmbito das comemorações dos 25
anos do Festival. Promover ciclos em articulação com a Odisseia nas Imagens: Cinema de Animação e Arte e Cinema de Animação e
Música. Atribuir um Prémio Porto 2001 para o melhor filme de animação em
português em competição na 25ª edição do Cinanima. Aproveitar o Cinanima para
promover e divulgar a Odisseia nas Imagens junto dos seus convidados.
- Fantasporto - Promover a abertura em conjunto do Fantasporto 2001 e da Odisseia nas
Imagens no dia 17 de Fevereiro de
2001, no Coliseu do Porto, com a execução da Sinfonia Fantástica de Berlioz
pela Orquestra Nacional do Porto, sob a direcção do Maestro Frédéric Chaslan.
Integrar o Fantasporto na Programação oficial da Capital Europeia da Cultura. Atribuir
um Prémio “Porto 2001” para a melhor longa metragem portuguesa estreada em
2000. Estrear no Fantasporto os filmes da série City Life (designação posteriormente alterada para Estórias De
Duas Cidades). Aproveitar o Fantasporto para a promoção e divulgação da Capital
Europeia da Cultura.
- Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila
do Conde - Reforçar o FICMVC em função
da aposta estratégica da Sociedade Porto 2001 nas curtas metragens de ficção.
Apoiar a realização do Ciclo 15X15: A Herança Cinematográfica Europeia.
Patrocinar a realização de O Nosso Século em Curtas, em Julho de 2000, no
Teatro Rivoli (extensão do 8º. Festival Internacional de Curtas Metragens de
Vila do Conde). Atribuir um Prémio Porto 2001 para a melhor curta metragem
portuguesa em competição no 9º. Festival Internacional de Curtas Metragens de
Vila do Conde. Integrar na Odisseia nas Imagens o Filme Concerto sobre filmes de Charles Bowers.
Aproveitar o Festival de Vila do Conde para efeito de promoção e divulgação da
Odisseia nas Imagens. - Nota do Autor.
- Instituto Francês do Porto, para efeito de cooperação cultural e apoio a viagens
e estadias;
- Goethe Institut, para efeito de cooperação cultural e apoio a viagens e estadias;
- Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS – Images/Media) de Paris, para efeito de
programação do ciclo O Olhar de Ulisses e lançamento de bases de cooperação com
a Universidade do Porto;
- Festival du Scoop et du Journalisme de Angers, para efeito de participação no ciclo Como Salvar o
Capitalismo/ Outras Paisagens ;
- Faculdade de Ciências da Comunicação da
Universidade de Santiago de Compostela,
para efeito de programação do módulo Apocalípticos e Integrados e do ciclo Como
Salvar o Capitalismo/ Outras Paisagens através de Margarida Ledo Andión e da
participação de estudantes com filmes a concurso na competição de escolas da Odisseia
nas Imagens. - Nota do Autor.
[8] . Na verdade, viriam a ser assinados dois protocolos
com a RTP. O primeiro ainda no tempo de Artur Santos Silva à frente da
Sociedade Porto 2001 e de Brandão de Brito enquanto presidente do Conselho de
Administração da RTP. Desse primeiro protocolo é dada conta no Anexo III – p.
32. O segundo foi assinado bastante mais tarde, já com Teresa Lago e durante a
vigência do mandato de José Carlos Silva à frente do operador de serviço
público. Este segundo protocolo viria a substituir o primeiro, o qual, por
razões mal esclarecidas, parece ter sido negligenciado por parte de elementos
da Direcção da RTP a ponto de a SIC se colocar na posição de poder vir a ser
reconhecida como televisão oficial da Capital Europeia da Cultura. A intervenção do presidente do
Conselho de Administração da RTP João Carlos Silva, bem como da tutela, terá
inviabilizado esse intuito. - Nota do Autor.
[10] . Também neste caso a RTP optou por uma posição
expectante. A televisão da Galiza, pelo contrário, chegou a designar pessoas e
disponibilizar verbas para a concretização da candidatura às verbas do INTEREG.
- Nota do Autor.
[11] . Além do acolhimento na Odisseia nas Imagens do MAT e do CIRCOM a RTP comprometia-se à
comparticipação na série de curtas metragens City Life, designação posteriormente alterada para Estórias de
Duas Cidades, bem como na realização de programas e reportagens sobre o dia a
dia da Capital Europeia da Cultura . - Nota do Autor.
[13] . Os
protocolos assinados com os estabelecimentos de ensino superior tinham
fundamentalmente os seguintes objectivos:
- Universidade Católica - Criação de uma Pós-Graduação em Realização Televisiva,
com especialização em Documentário e Curtas Metragens de Ficção. Produção e
realização de 10 documentários de 26’ 00” e de 10 curtas metragens de ficção.
Integração da Programação da Odisseia nas Imagens no plano curricular da Pós-Graduação em Realização
Televisiva. Criação de novos públicos.
- Universidade Fernando Pessoa - Integração da Odisseia nas Imagens no plano curricular do Curso Superior de Ciências da
Comunicação e da Informação, na área de Televisão. Produção e Realização de 2
documentários e de 4 grandes reportagens com a duração de 26’ 00’’. Criação de
novos públicos.
- Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
- Integração da Odisseia nas
Imagens nos objectivos programáticos
das disciplinas de Cine-Vídeo e Desenho Gráfico. Produção de 6 obras de vídeo
arte, 6 obras multimédia e 6 projectos multimédia de arte pública. Produção e
Realização do documentário “O puzzle volta ao Porto” de Hugo Miguel Vieira da
Silva. Criação de novos públicos.
- Escola Superior de Jornalismo do Porto - Assunção como objectivo primordial da actividade
académica nos anos lectivos de 1999/2000 e 2000/2001 dos temas relativos ao
Porto 2001, Capital Europeia da Cultura. Integração da Odisseia nas Imagens nos planos curriculares das disciplinas de Televisão e
Imagens e Sons. Produção e Realização de 2 documentários e de 4 grandes
reportagens de 26’ 00’’. Co-Produção com a Sociedade Porto 2001 e com a
colaboração do Festival du Scoop et du Journalisme de Angers da competição de
escolas da Odisseia nas Imagens. Criação de novos públicos.
- Escola Superior Artística do Porto - Integração da Odisseia nas Imagens no plano curricular do Curso de Cine-Vídeo nos anos
lectivos de 1999/2000 e 2000/2001. Produção e Realização de 9 documentários com
duração de 26’ 00’’ a 30’ 00’’, 4 curtas metragens de ficção e 20 vídeos
experimentais de 1’ 00’’. Desenvolvimento de acções de Formação: Realização de
Documentários (por Malek Bensmail), Produção de Documentários sobre a Natureza
(por Jan Arnold), Novas Tecnologias na Criação Audiovisual (por Joe Davidow),
Argumento para Cinema e Televisão (por John Furia Jr.), Direcção de Fotografia
(por Francisco Vidinha). Criação de novos públicos. - Nota do Autor.
[14] . O primeiro protocolo foi assinado com a Universidade
Católica do Porto e envolvia o seu Curso de Imagem e Som. A prioridade
atribuída à Universidade Católica tinha a ver com o facto de ser, na altura, a
instituição de Ensino Superior mais bem apetrechada para responder aos
requisitos exigidos pela produção de filmes e à formação de pós-graduação. Ver
Anexo I – pp. 3-4 e 9-13. - Nota do Autor.
4.1.2 Projectos, encomendas e acções de formação
Foi recebida
cerca de uma centena de propostas. Algumas dessas propostas viriam a merecer
descriminação positiva. Entre elas, duas assumiam particular relevância: uma, da
Produtora Filmógrafo, na área do cinema de animação, visando criar a Casa da
Animação; outra, da Universidade do Minho, tendo por objectivo a constituição
do Museu da Pessoa [1]. Projecto
multimédia, o Museu da Pessoa seria um museu virtual para contar na Internet a
história da cidade e dos seus lugares através de estórias de vida e de
testemunhos de anónimos, mas explorando, simultaneamente, suportes
tradicionais, como o livro e a televisão [2].
Quanto à Casa da Animação a proposta teve origem em elementos fundadores da
produtora Filmógrafo, entre os quais o cineasta Abi Feijó, responsável por
parte dos melhores filmes portugueses de animação realizados até à data, e
envolvia um ambicioso conjunto de iniciativas [3].
Dirigido essencialmente aos públicos mais jovens, dele faziam parte,
nomeadamente, retrospectivas dos Estúdios Aardman, de Ladislas Starevich e do
cinema de animação canadiano, reposições de clássicos, estreias de filmes
ausentes do circuito comercial português, visitas de estudo e diversos workshops orientados, entre outros, por criadores como Normand
Roger e Jayne Pilling [4].
A maioria dos
projectos apresentados, porém, ou tinha orçamentos proibitivos ou não se
enquadrava nas linhas gerais delineadas para a Odisseia nas Imagens. Entre as propostas mais ambiciosas contavam-se
algumas da área multimédia apresentadas pelo Instituto de Engenharia de
Sistemas e Computadores do Porto (INESC) e pela Associação Portucale XXI, de
relevância indiscutível [5],
mas impossíveis de concretizar devido aos custos. A própria Casa da Animação,
considerada prioritária e de interesse estratégico, foi objecto de aturadas
negociações e reajustamentos, bem como do envolvimento do governo central e da
autarquia, sem o qual teria sido impossível a sua concretização.
Feita a opção pelo documentário, as curtas metragens e o
cinema de animação, uma opção consequente com a avaliação das capacidades
instaladas e os saberes existentes e, como tal, susceptível de desenvolvimentos
no futuro em termos de produções de excelência, é natural que as encomendas
levadas a cabo se inscrevessem essencialmente nesse domínio e procurassem
envolver, desde logo, o mais representativo cineasta português, Manoel de
Oliveira, a quem foi proposto que revisitasse o Porto através de um filme
documentário seguindo os passos de Douro, Faina Fluvial (1931).
Ao nome de Manoel de Oliveira está associada toda a
história do cinema português e, em particular, a história do cinema feito no
Porto, cuja memória a Odisseia das Imagens
procuraria recuperar, conferindo-lhe sentido prospectivo. A encomenda, para
além da homenagem ao cineasta, tinha o papel simbólico de representar o
renascimento da produção do filme documentário feito a partir da cidade. O
Porto da Minha Infância (2001) [6]
seria, como foi, a obra de maior relevância produzida no âmbito da Programação
de cinema. [7].
Das encomendas
feitas pela Sociedade Porto 2001 destaca-se igualmente a já mencionada série City
Life constituída por quatro curtas
metragens de autores portugueses, inicialmente associadas a outras tantas de
autores holandeses, num registo de cumplicidade de olhares cruzados sobre as
duas cidades [8]. Estes
filmes, pensados em função do impacto que poderiam ter em termos de promoção de
ambas as Capitais Europeias da Cultura, deveriam fazer o percurso dos
principais festivais europeus de cinema do ano 2001, bem como serem objecto de
difusão televisiva nacional e internacional. A parte holandesa, porém, não
cumpriu os objectivos, produzindo apenas dois filmes. Mesmo assim, os seis
filmes estrearam em salas cheias no Festival de Roterdão. A partir daí os
filmes portugueses ganharam autonomia sob a designação Estórias de
Duas Cidades e os seus quatro filmes
acabaram por justificar o investimento realizado, visto terem sido objecto de
exibição em festivais de todo o mundo [9],
com passagem em canais televisivos, nomeadamente na RTP. Estórias de
Duas Cidades – integrando os filmes Distância (2001) de Pedro Serrazina, Acordar (2001) de Tiago Guedes / Frederico Serra, Corpo
e Meio (2001) de Sandro Aguilar e Sereias (2001) de Paulo Rocha – abriram o Fantasporto em 21
de Fevereiro de 2001 [10].
O Porto da Minha Infância
Sobre o filme
escreveu Jacques Parsi: “Com a liberdade de inspiração e o rigor de escrita que
o caracterizam, Manoel regressa à sua cidade natal, a cidade do Porto. Ela já
tinha inspirado o seu primeiro filme, Douro Faina Fluvial, em 1931, e o filme que marca o seu regresso atrás
da câmara em 1956, O Pintor e a Cidade. Nestas duas obras Oliveira havia filmado aquilo que prendia o seu
olhar. Em Porto da Minha Infância,
ele escolheu filmar aquilo que já não existe e que só os olhos da memória, da
“sua” memória podem ainda ver. À imagem daquele primeiro plano onde uma
orquestra invisível toca uma música misteriosa. O Porto da Minha Infância é ainda o Porto de antes do nascimento: uma cidade
carregada de história, uma cidade de artistas e pensadores. E, como que
por um movimento em espiral, o filme desenvolve-se desde as ruínas da sua casa
natal, à cidade do Porto, a toda a sociedade onde se trava a guerra dos sexos,
à Europa. O último plano do farol que se abre sobre o infinito do mar e do
mundo é a réplica, ou a rima se se quiser, a cores, do primeiro plano do
primeiro filme do jovem Oliveira, setenta anos antes... o Porto é também a
cidade que viu nascer, depois de 1896, o cinema em Portugal [11]”...
Uma outra encomenda feita no sentido de evocar a memória cinéfila do Porto foi Cinema (2001) de Fernando Lopes, uma homenagem a Aurélio da Paz dos Reis. Pensado a partir de um poema de Carlos de Oliveira e com desenhos de Jorge Colombo este filme, bem recebido pela crítica, recupera a memória do pioneiro portuense das imagens em movimento em Portugal, mas transcende esse objectivo, situando-se no plano de uma liturgia sobre o próprio cinema. Exibido no Festival de Veneza e estreado em Portugal a 15 de Março de 2001 no ciclo O Olhar de Ulisses, o filme de Fernando Lopes contribuiu igualmente para projectar externamente a imagem da Capital Europeia da Cultura [12].
Foram ainda
encomendas ou filmes apoiados pela Odisseia nas Imagens: Casa da Música (nunca exibido) de Pierre-Marie Goulet, Oresteia na
Prisão (2001) de Saguenail e Regina Guimarães, Desassossêgo (2001) de Catarina Mourão, O Puzzle Volta
ao Porto (2001) de Hugo Vieira da Silva e Novo Mundo (2001) de
António, Jorge Neves e Pedro Abrunhosa. Com excepção de Novo Mundo, uma curta-metragem de animação, todos os restantes
filmes são documentários.
Em simultâneo com a concretização das parcerias, encomendas e selecção
de projectos desenvolveram-se os primeiros esforços no sentido de lançar um
programa de acções de formação. Num primeiro documento enviado à Comissão
Executiva da Sociedade Porto 2001, afirmava-se:
“Na União Europeia, o sector do audiovisual e multimédia é reconhecido
como sendo dos mais interessantes do ponto de vista da criação de emprego. Por
outro lado, dele depende a afirmação, no plano simbólico, das diversas
realidades parcelares constituintes da realidade que é, hoje, a Europa.
Elemento fundamental da promoção da visibilidade local e regional num contexto
de internacionalização, o discurso, seja ele audiovisual ou multimédia, exige
parâmetros de elevado nível [13]”.
Acrescentava-se em seguida:
“Tendo em conta a indispensabilidade de amplificar o efeito Porto -
2001, quer interna, quer externamente, e reconhecendo-se a necessidade de
melhorar significativamente a capacidade discursiva existente, entende-se ser
de todo o interesse avançar com acções de formação nas quais seja possível
envolver tanto profissionais em exercício, quanto candidatos a um emprego.
Essas acções deveriam envolver as empresas e as universidades, dentro de um
espírito de articulação de saberes e na perspectiva de gerar sinergias fazendo
convergir agentes frequentemente muito fechados sobre si próprios [14]”.
As acções de formação, levadas a cabo no âmbito de um programa
negociado com o Instituto de Emprego e Formação Profissional, em colaboração
com a Associação Empresarial de Portugal, acabariam por constituir-se num dos
pólos de atracção da Odisseia nas Imagens.
Distribuídas pelas áreas do cinema, televisão, jornalismo e multimédia realizaram-se
42 acções de formação [15],
para as quais se inscreveram cerca de 1.100 candidatos, número muito superior
ao número de vagas existentes [16].
Devido à procura, dentro de um quadro de razoabilidade, foi alargado o limite
de inscrições de um número significativo de workshops, embora, noutros casos, tal não tenha sido possível dadas as
características das acções de formação e dos respectivos destinatários. No
total, até ao encerramento da actividade da Odisseia nas Imagens tiveram formação 440 candidatos seleccionados em áreas tão
diversificadas quanto o cinema, a televisão, o cinema de animação e o
multimédia [17].
Como se depreende, todas as encomendas, projectos externos e acções de
formação destinavam-se a integrar articulada e corentemente os diferentes
módulos da Programação. Dois exemplos: por razões simbólicas, e dada a
relevância atribuída ao documentário, o filme de Manoel de Oliveira
destinava-se a abrir oficialmente o I Festival Odisseia nas Imagens integrado no módulo Como Salvar o Capitalismo/ Outras Paisagens; as acções de formação complementavam ciclos de cinema ou iniciativas
multimédia no âmbito do aprofundamente das relações com o público escolar e
universitário
[1] . O
protocolo assinado com a Universidade do Minho tinha fundamentalmente os seguintes objectivos:
Instalação do Museu da Pessoa de Portugal através do
Grupo de Especificação e Processamento de Linguagens do Departamento de
Informática da Universidade do Minho. Integração da Odisseia nas Imagens em iniciativas do Departamento de Comunicação Social
da Universidade do Minho. Produção e Realização de 4 documentários de 26’ 00’’
no âmbito das recolhas de Histórias de Vida para o Museu da Pessoa. Criação de
novos públicos. - Nota do Autor.
[2] . Na verdade, o protocolo respeitante ao Museu da
Pessoa foi desdobrado em três de modo a dar acolhimento a nova parcerias com a
Universidade Popular do Porto e o Museu da Pessoa de São Paulo. Basicamente, a
Universidade do Minho seria a entidade tomadora, competindo-lhe a abertura do
site do Museu da Pessoa. À Universidade Popular do Porto cabia abrir o site
Memórias do Trabalho, desenvolvendo, para o efeito, as acções de formação
correlativas. Quanto ao museu da Pessoa de São Paulo, entidade pioneira com
experiência adquirida no domínio da democratização da memória, teria por função
fornecer orientação através de workshops. - Nota do Autor.
Instalação no Porto de uma infraestrutura de nível
consonante com a produção de cinema de animação já existente no Porto,
incluindo um núcleo de projectos na área da formação e programação para jovens
e público em geral, videoteca, biblioteca e outras valências; dinamização de
práticas de profissionalização interna ao cinema de animação; programação para
o ano de 2001 integrada na Odisseia nas Imagens com o melhor da actualidade nesta área; acções de
Formação em 2001; criação de novos públicos. - Nota do Autor.
[4] . Para além da inclusão do Cinanima na programação oficial
o conjunto de iniciativas da Casa da Animação revelar-se-ia um dos pontos
fortes da Odisseia nas Imagens.
Ver, por exemplo, o Anexo I – pp. 71-72, pp. 146-149, pp.156-159, pp. 258-259,
pp. 261- 268. - Nota do Autor.
[7] . Produzido por Paulo Branco, este filme teve desde
logo um momento de consagração quando da estreia mundial no Festival de Veneza
onde foi exibido perante um público de mais de 1500 pessoas que apladiu de pé,
durante sete minutos, Manoel de Oliveira. Da comitiva Portuguesa ao Festival de
Veneza faziam parte, nomeadamente o Ministro da Cultura Augusto Santos Silva e
o Director da Cinemateca Nacional João Bénard da Costa. O facto de O Porto
da Minha Infância ser uma encomenda da
Sociedade Porto 2001 muito contribuiu para a projecção da Capital Europeia da
Cultura. Posteriormente, todas as exibições deste filme em Portugal
constituíram um enorme êxito, nomeadamente a ante-estreia nacional na abertura
oficial do módulo 4.0 da Odisseia nas Imagens. A crítica, por seu turno, considerou o filme uma obra
prima. 70 anos depois de Douro, Faina Fluvial, o Porto passava a dispor de outro monumento
iconográfico sem paralelo na História do Filme Documentário Português. - Nota
do Autor
[9] . Estórias de Duas Cidades foram pensadas não apenas em termos do incentivo à
produção de curtas metragens, mas também como factor de promoção e divulgação
da cidade do Porto. Tiveram ampla divulgação - passaram em 26 Festivais na
Europa e na América - o que permitiu projectar e promover o Cinema Português.
Para isso contribuiu também o facto de alguns dos filmes terem sido premiados
ou distinguidos em Festivais Internacionais. O seu percurso pode ser observado
no Anexo I – pp. 69-70. - Nota do Autor.
[16] . Relatório de Avaliação Final do Departamento de
Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da
Cultura, sem páginas numeradas.
5.0 A Programação dos quatro módulos da Odisseia nas Imagens
Vejamos agora, em termos de Programação de iniciativas e eventos, as
formas encontradas para dar resposta ao conjunto das questões preliminares
anteriormente elencadas. Fá-lo-emos em dois momentos, sendo que no primeiro
serão abordados aspectos gerais e no segundo as matérias relacionadas com a
programação dos documentários. Em relação a qualquer deles, e especialmente em
relação ao segundo, procuraremos introdudir algumas notas críticas, por forma a
elucidar argumentos que possam contribuir para a pertinência das conclusões.
O primeiro módulo da Programação decorreu de 2 a 10 de Maio de 2000.
Anteriormente, por razões de ordem simbólica e dada a importância atribuída ao
ensino e à formação, principiara na Universidade Católica a 1ª Pós-Graduação em
Documentário e Curtas Metragens de Ficção e tivera lugar uma iniciativa da Coordenação
Europeia de Festivais Europeus denominada 15x15: O Património
Cinematográfico Europeu, que juntou diversos realizadores
e especialistas entre os quais André Delvaux, Paulo Rocha e o representante da
Coordenação François Ballay [1].
Para trás ficava
um período durante o qual, para além de todo o trabalho preparatório, fora
necessário ultrapassar alguns problemas delicados, nomeadamente o conflito
aberto entre o Ministério da Cultura e a Sociedade Porto 2001 que levara à
demissão do seu presidente Artur Santos Silva e à nomeação de uma nova
responsável, Teresa Lago. Foi nessa altura, quando subiam de tom as críticas e
insinuações sobre uma alegada incapacidade de dar corpo à Programação, que uma
fuga de informação dando a conhecer em detalhe o trabalho realizado e as linhas
gerais do que iria acontecer veio reforçar a posição dos programadores e
dissipar dúvidas quanto ao projecto cultural. No jornal Público de 27 de
Novembro de 1999 o crítico Augusto M. Seabra, num artigo intitulado Isto é uma
Capital Cultural!, escreveu:
“Pois bem,
programação cultural há. As linhas gerais do Porto 2001 devem ser saudadas como
o mais sério esforço até hoje feito em Portugal de pensar uma cidade em termos
culturais, isto é, atender às suas tradições, dimensão, localização
internacional, necessidades de requalificação urbana e de oferta de
espectáculos, valorização e estímulo do potencial criador e mobilização da
diversidade de públicos [2]”.
5.1 O
Homem e a Câmara
Com a situação
interna relativamente estabilizada, o evento inaugural do primeiro módulo da Odisseia
nas Imagens foi agendado para o Coliseu do
Porto, a maior sala de espectáculos da cidade: o filme O Homem da
Câmara de Filmar de Dziga Vertov com música
ao vivo da Cinematic Orchestra [3].
Três mil pessoas esgotaram a lotação. A crítica foi unânime. Para citar apenas
dois exemplos, no Diário de Notícias, Marcos Cruz afirmava: “Uma noite mágica
caiu sobre o Porto fazendo com que todos os caminhos do encantamento fossem dar
ao Coliseu [4]”. No Público,
Amílcar Correia dizia que “o resultado não podia ter sido mais surpreendente [5]”.
Na Visão, reportando ao primeiro módulo O Homem e a Câmara [6]
João Mário Grilo comentava: “Com um arriscado, mas imaginativo, figurino de
programação, começou, no Porto, a Odisseia nas Imagens, o programa audiovisual
da Capital da Cultura [7]”.
Foi também o
início do primeiro módulo de O Olhar de Ulisses [8],
em colaboração com a Cinemateca Portuguesa, cuja programação deveria incidir
essencialmente sobre o filme documentário, mas proporcionando olhares cruzados
e, por vezes inesperados, com filmes marcantes da História do Cinema. Este
ciclo, de pendor manifestamente cinéfilo, cujo título recupera o filme homónimo
de Theo Angelopoulos realizado em 1995 sobre a errância de um cineasta (Harvey
Keitel) à procura daquele que seria o filme seminal da cinematografia grega,
transformar-se-ia, desde logo, numa referência do conjunto da Programação.
No seu primeiro
catálogo [9],
a par de informações detalhadas sobre filmes e participantes [10],
explicitavam-se os propósitos da Odisseia nas Imagens:
“A programação
de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura
é concebida como um percurso durante o qual o dado a ver exige a participação,
promove a descoberta e estimula a aventura. É um desafio centrado na
fulcralidade da Imagem enquanto elemento de revelação. Entendida em termos
dinâmicos, a Programação é aqui tanto objecto de prazer, quanto elemento
detonador do saber e do saber fazer. Nela cabe, naturalmente, em primeiro
lugar, a cidade de imagens que o Porto sempre foi e, como tal, o olhar
retrospectivo que permite reconhecer a sua identidade. Mas essa cidade de
imagens, sendo também um lugar de futuro, exige, de igual modo, um olhar
prospectivo, ousado e universal. (...) À cidade caberá sempre decidir, em
função do desafio que lhe foi lançado, sobre os contornos e os limites da
mudança que lhe é proposta [11]”.
O Homem da Câmara de Filmar com música ao vivo
da Cinematic Orchestra. A propósito da sessão inaugural da Odisseia nas
Imagens escreveu Amílcar
Correia no jornal Público: “Sete décadas separam O Homem da Câmara de Filmar realizado por Dziga Vertov em 1929 e Motion a banda sonora para um filme imaginário que a
Cinematic Orchestra editou no ano passado. Apesar da distância temporal e
estética entre as duas obras, a equipa responsável pela programação audiovisual
do Porto 2001 vislumbrou eventuais pontos de confluência entre o vanguardismo
do cineasta russo e o jazz heterodoxo do colectivo de Jason Swinscoe. E o
resultado não podia ter sido mais surpreendente [12]”.
O Homem e a
Câmara, designação deste primeiro módulo,
comum à Odisseia na Imagens e a O
Olhar de Ulisses, recuperou o título do
filme tese de Dziga Vertov pretendendo reeditar, actualizando, a
cine-sensação do mundo enquanto factor de
descoberta e elemento de elucidação do real, sendo que esse real seria sempre
um real imaginado. Dando conta da gramática emergente das imagens em movimento
e da sua relação com o olho este
primeiro programa integrou uma componente de Imagens da Ciência da autoria de Jean-Michel Arnold, responsável do
Centre Nationale de la Recherche Scientifique-Images/ Media, de Paris, a quem
foi dada carta branca para uma selecção de filmes [13].
Escrevendo sobre a Arqueologia e Desvios do Cinema Científico [14],
dizia Jean Michel Arnold:
“Enquanto que os
operadores da Société Lumière – meio jornalistas, meio fotógrafos – descobriam
a grande reportagem, os cientistas, ao apoderarem-se do cinema, afirmaram a
modernidade deste. (...) O programa proposto tentará, pois, contar por imagens
esta maravilhosa aventura: a invenção do cinema (instrumentos e linguagem)
pelos cientistas. É formado por partes de documentos raros e preciosos,
conservados nos institutos de investigação ou nos arquivos internacionais
especializados. Estas obras são, na sua maioria, desconhecidas do grande
público e, muitas vezes até, da comunidade científica apesar de, no início do
século, terem constituído para esta a fonte de investigação [15]”.
Este primeiro
módulo teve ainda um filme concerto com Berlim, Sinfonia de uma Cidade (1927) de Walter Ruttmann com música ao vivo de DJ
Spooky & Freight Elevator Quartet e uma extensão do Festival de Curtas
Metragens de Vila do Conde denominada O Nosso Século [16].
Tratando-se da primeira grande iniciativa da Programação Cultural do Porto 2001
a Comunicação Social dedicou-lhe relevante espaço e, de um modo geral, as
apreciações foram positivas [17].
[17] . Ver alguns exemplos no Anexo I – pp. 9-20. Na
verdade, escrutinadas as dezenas de recortes de imprensa sobre O Homem e a
Câmara não se encontra qualquer nota
negativa, embora a crítica tenha manifestado reservas quanto ao modo como DJ
Spooky equacionou a sua partitura para Berlim, Sinfonia de uma Cidade. - Nota do Autor.
5.2 O Som e
a Fúria
O segundo módulo
O Som e a Fúria [1],
cujo núcleo principal decorreu entre 17 a 25 de Setembro de 2000, mas que em
rigor se desmultiplicou em iniciativas até meados de Março de 2001, poderia ter
tomado de empréstimo o título da obra homónima de William Faulkner, mas a
verdade é que foi a pensar no II capítulo da História do Documentário de Erik
Barnow que se chegou a essa designação. No respectivo catálogo de O
Olhar de Ulisses [2],
igualmente intitulado O Som e a Fúria – a partir desta altura, por razões de ordem conceptual, nomeadamente
devido à introdução de abordagens do documentário no quadro de outras
disciplinas não estritamente da esfera do cinema, este ciclo e a restante
programação da Odisseia nas Imagens
deixariam de obedecer às mesmas designações –, escrevia-se:
“Se o primeiro
módulo O Homem e a Câmara remetia para
as teses vertovianas da cine-sensação
do mundo no quadro de uma gramática
emergente das imagens em movimento, agora, em O Som e a Fúria, a elucidação e organização do real apontam para um
olhar reestruturado a partir de um conjunto de sinais e de regras de
articulação desses sinais relacionados quer com o olho, quer com o ouvido. Com
o advento do sonoro, a linguagem do cinema torna-se audiovisual e, portanto,
plurissintáctica. O olhar, enquanto modo de revelação, resulta, pois, do acto
combinatório de diferentes sistemas de significação convergindo na coerência de
um propósito. As coisas, claro, podem não ter a simplicidade aparente que
releva das categorias consagradas. Alguém será capaz de evitar ouvir, por exemplo, "O Vento" (1928) de Sjöstrom
[3]?”
Este segundo
módulo de O Olhar de Ulisses [4]
contou entre os seus convidados com Marceline Loridan, a viúva de Joris Ivens [5]
e daria também lugar ao primeiro texto de fundo sobre a questão do filme documentário
da autoria de João Bénard da Costa intitulado Os filmes que nos vêem/
os olhos que nos filmam [6].
Contestando pressupostos teóricos da ideia do documentário –. na verdade, pondo
em causa a própria ideia do documentário –, desvalorizando os filmes do
movimento documentarista britânico ou demolindo, por exemplo, os filmes
militantes de Joris Ivens, concluía dizendo, nomeadamente: “Este texto, muito
provavelmente, vai arranjar-me mais inimigos do que todos quantos escrevi na
minha vida [7]”.
Sendo muito
diversificado – incluía o Fantasporto (já na fase de transição para o terceiro
módulo Apocalípticos e Integrados
porque, em rigor, lhe coube inaugurar oficialmente a Odisseia nas
Imagens no ano 2001) [8],
uma primeira grande retrospectiva de cinema de animação dos Estúdios Aardman [9],
um filme-concerto Metrópolis
(1925-26) de Fritz Lang com música ao vivo de MuteLifeDept. [10],
o colóquio Tendências do Audiovisual Europeu [11],
a estreia mundial dos filmes da série Estórias de Duas Cidades [12],
as iniciativas preliminares do Museu da Pessoa [13]
e, ainda, um número significativo de workshops e de acções de formação [14]
– o segundo módulo espelhava já as dinâmicas anunciadas na fase de preparação
não deixando, no entanto, de revelar os primeiros indícios de contradições ou,
pelo menos, de diferentes concepções sobre a História e Teoria do Documentário,
cujas repercussões se fariam sentir nos módulos seguintes.
Um primeiro
sinal terá sido o artigo de João Bénard da Costa. Outro, o aparecimento de workshops sobre o documentário de televisão, algo justificadamente
ausente de O Olhar de Ulisses,
mas cuja relevância no plano das relações institucionais, nomeadamente a RTP e
as universidades, não deveria ser ignorado. Esse seria, aliás, um ponto de
partida para a discussão do lugar do documentário na programação televisiva,
tanto mais que, em simultâneo, era lançada uma grande iniciativa denominada
Tendências do Audiovisual Europeu [15]
na qual, a par do papel do serviço público de televisão encarado numa perspectiva
de descentralização, se procurava introduzir um debate em torno dos nichos de
mercado pensados em função da opção pelos documentários, curtas- metragens e
cinema da animação. Numa entrevista ao Jornal de Notícias de 7 de Dezembro de
2000 Manuela Melo, a responsável pelo conjunto da Programação Cultural do Porto
2001 falava da possibilidade de um grande centro de produção audiovisual e
admitia a hipótese de criação de um Media Park, afirmando a determinada altura:
“Nos últimos
anos criou-se uma dinâmica que faz com que haja cada vez mais cineastas,
actores, técnicos e outros profissionais que, também pelo apoio logístico
conseguido, se vão valorizando. O audiovisual, nesta altura mais do que nunca,
sintetiza uma série de expressões artísticas. E, para nós, não interessa apenas
a sobrevivência de todas elas, mas também a possibilidade de criar emprego
qualificado e estável. A aposta da Porto 2001 nesta área foi lançar desafios e
proporcionar meios, em termos de acções de formação, que pudessem oferecer alguma
coerência a este conjunto disperso de coisas [16]”.
Na mesma linha
de pensamento, no final do ano 2000, o relatório fazendo o balanço do trabalho
desenvolvido [17], avançava
um prognóstico, bem como algumas condições para a sua concretização:
“Através
do envolvimento universitário, das parcerias institucionais que têm vindo a ser
levadas a cabo, nomeadamente com a Cinemateca Portuguesa e com o serviço
público de Televisão, e dos múltiplos contactos internacionais que têm vindo a
ser estabelecidos, o Porto passará a ter condições para se afirmar de uma forma
progressiva e sustentada como uma verdadeira Cidade dos Media. Para tanto, a
par da ligação dos eventos programados a uma lógica de produção, entende-se
como complementar e fundamental a abertura a novas iniciativas tendentes a
fomentar actividades empresariais capazes de gerar negócios orientados em
função da identificação de nichos de mercado [18]”.
Em função do
trabalho realizado [19]
e das múltiplas formas de feedback provenientes
tanto de parceiros externos quanto do interior da Capital da Cultura o ano de
2000 terminava com legítimas expectativas, mas deixava no ar algumas
interrogações sobre os conteúdos, das quais resultava evidente a necessidade de
alargar e diversificar a Programação com novos ciclos e iniciatvas como, aliás,
se destacava no relatório de balanço mencionado. De um modo geral, a imprensa,
sem deixar de referir os problemas existentes, nomeadamente os atrasos
verificados quanto à Casa da Animação [20],
reflectia uma atitude positiva e, embora mostando-se pouco sensível a eventos
menos espectaculares do ponto de vista mediático, traçava um quadro optimista
para o ano de 2001 [21].
[1] . Anexo I – pp. 57-79.
[2] . Anexo I – p. 60.
[3] . Anexo I p. 57.
[4] . Anexo I pp. 59-63.
[5] . Ver entrevista com Marceline Loridan in Anexo I – pp. 94-95.
[6] . Anexo I – pp. 86-87.
[7] . Anexo I – p. 87.
[8] . Anexo I – pp. 75-79.
[9] . Anexo I – pp. 71-72.
[10] . Anexo I – pp. 63-65.
[11] . Anexo I – pp. 67-69.
[12] . Anexo I – pp. 69-70.
[13] . Anexo I –pp. 74-75.
[14] . Anexo I – pp. 65, 66, 72, 73, 74 e 79.
[15] . Ver Anexo I – pp. 96-97.
[16] . Anexo I – p. 96.
[17] . Anexo III – pp. 67-73.
[18] . Anexo III – p. 69.
[19] . Ver Anexo III – pp. 70-73.
[20] . Anexo I – p. 85.
[21] . Ver, por exemplo, o artigo de Rodrigues da Silva no
Jornal de Letras, Artes e Ideias de 10 de Janeiro de 2001 in Anexo I – pp. 98-99.
5.3 Apocalípticos
e Integrados
O terceiro
módulo da Odisseia nas Imagens, que
decorreu entre 14 de Março e 19 de Julho de 2001, adoptou a designação de Apocalípticos
e Integrados podendo ler-se nas últimas
páginas do catálogo de O Olhar de Ulisses um texto introdutório [1],
no qual se afirmava:
“Apocalípticos e
Integrados, o clássico de Umberto Eco sobre a cultura de massas publicado em
1964 é hoje muito mais do que um título: é uma expressão recorrente em função
da qual se perspectivam posições antagónicas a respeito do modo de
relacionamento do homem com o mundo e dos homens entre si. Do lado do
Apocalíptico perfila-se a insubmissão: subjaz ao conceito um intuito redentor.
Do lado do Integrado emerge o conformismo: o paradigma é a norma. Reportando a
Eco: “O Apocalipse é uma obsessão do dissenter, a Integração é a realidade concreta daqueles que não
dissentem”. É isto que fundamentalmente nos
interessa, mas entendido num sentido literal que se não prescinde do quadro de
referências do debate da época sobre a cultura de massas também não faz dele,
longe disso, o centro das preocupações do 3º módulo da Odisseia nas Imagens [2]”.
Acrescentava-se depois:
“Por exemplo, a
partir da exposição da Magnum a propósito da rodagem de Misfits, de John
Huston, é possível empreender um percurso através do qual seguramente se
deparam muitos dos temas abordados não apenas por Eco, mas também por Morin ou
Barthes, como sejam o Olimpo das estrelas de cinema ou o papel dos mitos na
efabulação do quotidiano. Mas para além desse catálogo do óbvio importa-nos
alargar o sentido conotativo de Apocalípticos e Integrados a outros
territórios, seja no domínio da relação entre o eu e o outro, que é uma das entradas da Programação do Porto 2001
- Capital Europeia da Cultura e que tem expressão em ciclos como os de Visconti
e Errol Morris, seja na esfera do trabalho de criação, nomeadamente no que respeita
às linguagens de ruptura das tecnologias multimédia, seja, ainda, em torno dos
temas elencados nas masterclasses
que integram os Lugares da Imagem [3]”.
E adiante:
“Trata-se, ao
fim e ao cabo, de inflectir o debate sobre a diferença e sobre as imagens dessa
mesma diferença no universo do Cinema, do Audiovisual e do Multimédia, tantas
vezes orientado em torno de uma lógica consensual de conveniência, para um
espaço mais interpelativo e menos integrado [4]”.
Filmes de Errol Morris
Ter tomado de empréstimo o título da obra de Umberto Eco obedeceu a razões de vária ordem, todas elas convergindo no sentido de explicitar plenamente os intuitos previamente delineados. Pela primeira vez, um módulo da Odisseia nas Imagens deixava de ter um título comum a O Olhar de Ulisses, cuja designação – A Utopia do Real – aparecia em subtítulo [5]. Desse modo, sem retirar importância à iniciativa apoiada pela Cinemateca Portuguesa, chamava-se a atenção para o carácter pluridisciplinar da Programação, até então quase exclusivamente centrada no cinema, e procurava-se não só chegar a outros públicos, mas também ir ao encontro de expectativas reiteradamente feitas sentir por outros parceiros da Odisseia nas Imagens.
Apocalípticos
e Integrados recuperava um tempo histórico
contemporâneo da afirmação da televisão enquanto medium dominante, bem como de uma panóplia de media interagindo num contexto de cultura de massas em
relação ao qual a política dos autores surgia, de algum modo, como contraponto
em todos os territórios da significação, da fotografia ao cinema, da televisão
à banda desenhada, das artes plásticas à literatura. Nessa medida, se importava
revisitar uma época marcante do mundo contemporâneo, importava igualmente
fazê-lo sem complacência nem nostalgia, evitando a tentação de alimentar mitos instalados,
e procurando, ao invés, proceder a uma interpelação no quadro dos desafios da
arte e comunicação do novo milénio.
Um filme como Misfits (1961) realizado por John Huston com argumento de Arthur Miller numa altura em que “os estúdios começavam a investir na produção de séries televisivas, criando as condições ideais para a experimentação à margem das grandes produções [6]”, bem como a exposição da Magnum com 48 fotografias de oito fotógrafos (Cornell Capa, Eve Arnold, Henri Cartier-Bresson, Bruce Davidson, Elliott Erwitt, Ernst Haas, Erich Hartmann, Inge Morath e Dennis Stock) respeitantes à rodagem e tendo como principais protagonistas Marilyn Monroe, Clark Gable e Montgomery Clift, pareciam, pela relevância dos temas e pelo conteúdo icónico, especialmente indicados para abrir um debate necessário.
Razões semelhantes justificavam a presença da exposição de fotografias de Gerard Malanga e Andy Warhol [7], bem como o ciclo de masterclasses designado por Lugares da Imagem, sempre com lotações esgotadas no Pequeno Auditório do Rivoli - Teatro Municipal, no qual participaram António Pedro Vasconcelos, Román Gobern, Joan Fontecuberta e Margarida Ledo Andión [8]. Ocupando a imagem e o olhar um espaço central no mundo contemporâneo, suscitavam-se questões como as seguintes: “Que relação estabelecemos nós com as imagens? Como contribuem elas para a construção da realidade e o conhecimento do mundo? E o olhar? Que códigos subjazem às modalidades discursivas que remetem para o olhar? E não convergem estas interrogações para o plano da cidadania? E da Arte [9]”?
Por outro lado,
o conceito de Apocalípticos e Integrados
permitia programar, num contexto ousado, um conjunto de eventos de grande
impacto mediático combinando os aspectos aparentemente mais convencionais do
cinema com intervenções noutros domínios numa perspectiva de cruzamento de
linguagens. Estas abordagens transversais, para além de múltiplas iniciativas
multimédia (Digital Cinema [10],
Instalações de Tim Macmillan [11],
Música Electrónica de Joel Ryan [12],
Performance Cinemática de Hexstatic
[13],
Stereovision-Ciclo de Cinema em 3D
[14]
e a estreia mundial, em colaboração com a Casa da Música, do álbum Drawn
From Life de Brian Eno [15])
tiveram dois momentos especialmente significativos em Nanook of the
North (1922) de Robert Flaherty com música
ao vivo do grupo de jazz
experimental de Nils Petter Molver [16]
– uma encomenda da Odisseia nas Imagens – e em Juha (1999) filme
mudo do mais conceituado realizador finlandês Aki Kaurismaki com música ao vivo
da Anssi Tikanmäki Filmorchestra [17].
Quer num caso, quer no outro as referências críticas foram positivas [18].
No mesmo sentido foram delineadas duas retrospectivas. Uma, de Luchino Visconti, questionando o cinema moderno a partir de uma das suas figuras de referência, dividia-se pelos dois últimos módulos da Programação, sobrando para o módulo final apenas O Leopardo (1963) destinado a encerrar simbolicamente a Odisseia nas Imagens. A outra, de Errol Morris, uma novidade para o público português, cujos filmes e programas de televisão não seriam compagináveis com os critérios de O Olhar de Ulisses, como, aliás, aconteceu igualmente com a maioria dos documentários americanos de última geração.
No catálogo [19]
de Mr. Death, a América de Errol Morris [20],
depois de se afirmar que a Programação abria “as portas a um dos mais
controversos criadores contemporâneos [21]”,
escrevia-se:
“Uma Programação
aberta, como esta, para além de atender à diversidade dos públicos, não pode
deixar de ser interpelativa e provocatória. Por isso, neste capítulo da
Odisseia nas Imagens (...) procurou jogar-se um jogo de contrários quer no
plano da diversidade das abordagens temáticas, quer no plano das linguagens que
suportam os discursos propostos. Será Morris um produto da cultura de massas? E
será apocalíptico, porque tudo põe em causa, ou, pelo contrário, será integrado
na medida em que os seus filmes suscitam a adesão do grande público e parecem
responder a uma procura que se identifica com as estratégias desenvolvidas no
contexto dos dispositivos da televisão? Quem é, afinal, Errol Morris? Quem é
esta personagem cujos interesses nos remetem para um território de limites
confinantes com os do universo do sensacionalismo tablóide e, contudo, dele se
distanciam através de uma trama urdida em torno de personagens e acontecimentos
em relação aos quais há tanto de simpatia humana, quanto de vontade de
conhecimento? Será Morris um cineasta? Ou estaremos em presença de um demiurgo
de outra condição [22]”?
Quanto a Violência
e Paixão: os Filmes de Luchino Visconti,
ciclo organizado em colaboração com a Scuola Nazionale de Cine de Roma e a
Cinemateca Portuguesa, procurou-se, antes de mais, dar a conhecer a um público
mais vasto e, sobretudo, às novas gerações, um autor controverso, cujos filmes
foram objecto de acesa discussão e de avaliações contraditórias, demonstrando,
nessa medida, as contingências dos critérios do gosto. Talvez por isso, fora
dos círculos cinéfilos, Visconti permanecia ainda relativamente mal conhecido
em Portugal:
“Alguns dos seus
filmes anteriores a 1974 não estrearam em Portugal, tendo acontecido mais que
uma vez a sua apresentação pública com cortes da censura. Para tanto muito
contribuiu a sua filiação no pensamento marxista. Mas é bom não esquecer que
estamos perante um cineasta sem dogmas, nos antípodas do panfletário que
subverte o primado da arte para sustentar o jogo da batota ideológica. Por
isso, quando entrou em ruptura com o Partido Comunista Italiano, também não
faltou quem pretendesse colar-lhe o labéu de fascista. Agora, de uma forma mais
serena, a obra completa de Visconti é dada a ver tal qual é: uma profunda
reflexão sobre o Homem e sobre a História de uma assombrosa e, por vezes,
pungente beleza [23]”.
Apesar de uma
retrospectiva da Fundação Gulbenkian em Janeiro e Fevereiro de 1977, a verdade
é que a partir de então a obra de Visconti apenas voltara a ter exposição
meramente episódica, fosse em sessões da Cinemateca Portuguesa, fosse em
cineclubes, eventualmente uma ou outra reposição no circuito comercial. As
recensões críticas de determinados sectores sobre os seus últimos filmes tinham
sido ferozes, nomeadamente na 2ª série da Revista Cinéfilo (73 e 74) “onde,
desde ‘antiquário do cinema’ a ‘costureiro confundido com cineasta’, lhe
chamaram de tudo, vendo, nos filmes desses anos, a patética confirmação de uma
senilidade decadente [24]”. Com tais antecedentes, dada a revisão
crítica de que a sua obra vinha sendo objecto, nomeadamente em Itália, e dada a
flagrante actualidade dos seus temas, Visconti encaixava na perfeição no
conceito deste módulo.
Quanto a O
Olhar de Ulisses, obedecendo a sua
programação a uma ordem temporal dos principais episódios da História do
Documentário, cruzando embora diferentes obras de autor deslocadas dos espaços diacrónicos
de referência, também o conceito de Apocalípticos e Integrados parecia poder ser explorado, tanto mais que permitia
enquadrar as inovações narrativas resultantes das tecnologias de som e imagem
desenvolvidas a partir do final dos anos 50 que foram determinantes para o
aparecimento de uma geração de iconoclastas nos Estados Unidos, Canadá, França
e Reino Unido. Contudo, o ciclo optou por uma outra designação, aliás,
igualmente coerente com o espírito da época e, porventura, mais de acordo com
uma abordagem estritamente do domínio da cinéfilia: A Utopia do Real [25].
Contando, nomeadamente, com a presença de
Albert Maysles, fez uma breve passagem pelo cinema directo, mostrou alguns
filmes britânicos do free cinema,
convocou o exemplo do canadiano de língua francesa Michel Brault, mostrou Jean
Rouch, a nouvelle vague e um
conjunto de filmes identificados com o cinema de arte ensaio:
"A Utopia
do Real" propõe filmes que questionam a relação do cinema com o real uma
vez que, cronologicamente, a programação aborda um período particularmente rico
em que se verifica, por exemplo, o reforço da utilização do não actor
(Rouquier, Visconti), a deslocação do cinema para as áreas urbanas populares
deixando as princesas de lado para filmar os operários e os marginais (Rogosin,
Free Cinema) etc. O confronto com outros filmes sensivelmente do mesmo período,
mas com abordagens radicalmente diferentes (Pollet, Reis, Pelechian) permite
descobrir outros modos de revelação do real, seja através do recurso à poesia,
seja através da própria ficção [26]”.
O ciclo abriu
com Cinema (2001) de Fernando Lopes uma
encomenda “coerente com as linhas estratégicas da Odisseia nas Imagens visto
que através deste filme se pretendeu homenagear o pioneiro portuense do cinema
português Aurélio da Paz dos Reis, de modo a evocar a memória da cidade do
Porto enquanto cidade de imagens [27]”
e voltava a dar carta branca a Jean-Michel Arnold e a Annick Demeule do CNRS de
Paris para um novo ciclo de Imagens da Ciência [28].
A par deste
núcleo duro de programação, este terceiro módulo dava igualmente sequência ao
protocolo assinado com a Casa da Animação através de uma Retrospectiva dos
Estúdios Filmógrafo [29],
uma Retrospectiva do Cinema de Animação de Ladislas Starewitch [30],
uma Retrospectiva da Animanostra [31]
e uma Retrospectiva do Cinema de Animação Canadiano [32],
iniciativas às quais estavam associadas diversas acções de formação ministradas
por especialistas portugueses e estrangeiros. Outras acções de formação diziam
respeito a workshops sobre
Interactive Media [33],
Improvisação Vídeo [34],
Direcção de Fotografia Cinematográfica [35], Web
Design [36],
A Palavra no Cinema [37]
e Imagens da Ciência [38].
O módulo
integrava ainda O Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde
com iniciativas pensadas para a Odisseia nas Imagens [39],
bem como duas iniciativas com a RTP e uma com a Federação Internacional de
Cineclubes. No primeiro caso tratava-se de dar seguimento à política de apoio a
áreas de intervenção estratégicas como eram as curtas-metragens. Quanto à RTP,
dado o intuito de prosseguir o debate em torno da descentralização do serviço
público de televisão valorizando a sua componente regional, foram integradas na
Programação duas iniciativas: a Mostra Atlântica de Televisão (MAT) [40]
e o CIRCOM [41].
Habitualmente
organizado pela RTP/Açores o MAT era um festival de documentários de Televisão
tendo o mar como temática central. Realizava-se anualmente nos Açores com o
apoio do governo regional, nele participando habitualmente todos os principais
operadores de televisão europeus, públicos e privados, nomeadamente a BBC, RAI,
TVE, FR3, televisões públicas escandinavas, bem como canais temáticos, como o Arte
e produtoras especializados, como a Thalassa. Havia ainda uma presença
significativa dos países africanos de língua oficial portuguesa e do Brasil. No
âmbito do protocolo assinado entre a Capital Europeia da Cultura e a RTP o MAT
2001 teve lugar no Porto e nele discutiu-se, efectivamente, com repercussão na
comunicação social, O Espaço Regional no contexto Audiovisual Europeu [42].
Já a reunião do CIRCOM, muito voltada sobre si própria, passou praticamente
despercebida.
Quanto
ao Congresso da Federação Internacional de Cineclubes [43]
o apoio da Odisseia nas Imagens pressupunha
a inclusão na agenda de um ciclo de cinema da Invicta Film, com o apoio da
Cinemateca Portuguesa, bem como uma homenagem a um dos pioneiros do cineclube
do Porto, Henrique Alves Costa. Pretendia-se com estas duas iniciativas retomar
a memória histórica do cinema na cidade, mas conferindo-lhe um sentido
prospectivo na medida em que apareciam associadas ao processo de recuperação de
uma produção local, na altura centrada essencialmente nas escolas.
Este
módulo foi amplamente noticiado recolhendo referências positivas em toda a
imprensa. Os Cahiers du Cinema colocaram
on line no seu sítio a programação
de O Olhar de Ulisses. Na
televisão, a RTP proporcionou uma visibilidade sistemática à Odisseia nas
Imagens através do programa diário
sobre a Capital Cultural acordado nos termos do protocolo assinado com a
Sociedade Porto 2001.
Algumas
lições foram igualmente extraídas. Como se previra, uma programação delineada
nos termos em que esta o estava a ser corria o risco de assumir contornos
imprevistos em função das dinâmicas que ela própria ia criando. Uma das
dificuldades resultava da necessidade de dotar o modelo organizativo de
maleabilidade e flexibilidade adequadas aos ajustamentos que se iam revelando
aconselháveis. Isto porque o desenvolvimento de algumas iniciativas acabou por
ser consequência de uma receptividade sempre crescente em relação à Programação
– muitos eventos como O Olhar de Ulisses, os filmes concerto, as masterclasses de Os Lugares da Imagem e o ciclo Visconti, para citar apenas alguns, tiveram
lotações esgotadas ou perto disso – o que terá contribuído para múltiplas novas
solicitações por parte de parceiros e agentes sociais e culturais.
A extensão de Apocalípticos e Integrados, bem como a sua complexidade, imppôs uma clarificação de tarefas dos elementos residentes da Programação da Odisseia nas Imagens e a contratação temporária de outros colaboradores tendo em vista o cumprimento integral dos objectivos prosseguidos [44].
[1] . Catálogo O Olhar de Ulisses III – Utopia do Real,
Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto
2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2001, pp.
432-433.
[2] . Anexo I – p. 103.
[24] . Bénard da Costa, João – Luchino Visconti: o último
esteta, Catálogo Violência e Paixão: os filmes de Luchimo Visconti, Porto 2001/ Odisseia nas Imagens, Porto, 2001, p.163.
[44]. No que diz respeito aos recursos humanos, para dar
corpo à Odisseia nas Imagens
toda a organização de trabalho do departamento de Cinema, Audiovisual e
Multimédia assentou num núcleo central de seis pessoas: Jorge Campos
(Programador Responsável), Dario Oliveira (Assessor), Miguel Dias, Carla
Morais, Pierre-Marie Goulet e Teresa Garcia. A distribuição de tarefas foi
sendo determinada em função da própria lógica da Programação, ou seja, à medida
que o caminho se ia fazendo. O trabalho conceptual da Odisseia nas
Imagens foi da responsabilidade do
responsável do departamento. Coube-lhe fazer o desenho da Programação no seu
conjunto, bem como o trabalho de análise, inventariação e diagnóstico do panorama
audiovisual e multimédia da cidade – contando, na primeira fase, com o apoio do
Professor Artur Pimenta Alves, do INESC – os contactos com os protagonistas do
sector e as negociações conducentes à assinatura dos protocolos e acordos
elencados no Anexo I. Algumas destas tarefas foram apoiadas por Dario Oliveira.
Com a Programação em marcha, os elementos da equipa foram sendo
responsabilizados por eventos específicos. Dario Oliveira programou ciclos de
cinema e ficou responsável pela programação multimédia, acompanhando os workshops desta área; Pierre-Marie Goulet e Teresa Garcia
ficaram com o ciclo O Olhar de Ulisses e deram seguimento aos workshops e outras iniciativas da Associação, entretanto criada Os Filhos de
Lumière; Miguel Dias esteve igualmente
em O Olhar de Ulisses e noutros
ciclos de cinema, dando apoio a toda a programação cinematográfica; Carla
Morais não só coordenou toda a Produção como acabou por desempenhar tarefas aos
mais diversos níveis, das relações públicas ao acompanhamento de sessões; e o
responsável pelo departamento fez a coordenação geral da Odisseia nas
Imagens, assegurou os contactos
institucionais e programou os eventos mais directamente ligados às
universidades e ao Festival do Documentário. Directamente ligados à Programação
de O Olhar de Ulisses e de Como
Salvar o Capitalismo/ Outras Paisagens
estiveram igualmente ligados, respectivamente, José Manuel Costa da Cinemateca
Portuguesa e Margarida Ledo Andión da Universidade de Santiago de Compostela.
Independentemente do trabalho da equipa nuclear, em todos os módulos da
Programação, foi necessário recorrer a um número crescente de contratados. Na
primeira edição contou-se com a presença de mais dois colaboradores, na segunda
de mais cinco, na terceira foram 17 e na última 44. Nos terceiro e quarto
módulos da Programação foi ainda necessário contratar respectivamente uma e
duas empresas de serviços técnicos qualificados. Houve ainda o envolvimento do
Departamento de Produção, com o qual se estabeleceu uma relação prática e eficaz,
ainda que limitada a um número reduzido de eventos e funções. – Nota do
Autor.
5.4
Como Salvar o Capitalismo/ Outras Paisagens
O último módulo
da Odisseia nas Imagens decorreu em
vários espaços da cidade entre 10 de Setembro e 17 de Novembro de 2001. Abriu simbolicamente
com o documentário O Porto da minha Infância (2001) de Manoel de Oliveira [1]
e obedecia às orientações traçadas num texto introdutório denominado Pensar
Glocal, Projectar o Futuro [2].
Aí se afirmava:
“Obedecendo a
uma estratégia de criação de novos públicos, de dinamização do debate em torno
das questões da imagem e dos novos modos de significar, de reflexão a propósito
de um sector audiovisual cuja afirmação regional repercute em termos da
afirmação global da realidade local, a Programação foi sendo ampliada e
diversificada de módulo para módulo, aliando a componente lúdica a um quadro
conceptual exigente e interpelativo, dando a ver aquilo que habitualmente não é
visto e questionando aquilo que habitualmente não é questionado [3]”.
O texto
prosseguia em jeito de balanço dos módulos anteriores:
“Assim, ao mesmo
tempo que no ciclo ‘O Olhar de Ulisses’, em colaboração com a Cinemateca
Portuguesa, se fazia a História do Documentário e se mostrava o Grande Cinema,
eram dados incentivos às produções escolares e lançados numerosos ateliers, workshops e masterclasses nas
áreas do Cinema, da Televisão e do Multimédia, todos eles com pedidos de
inscrição muito superiores às vagas disponibilizadas. Retrospectivas de autor
permitiram revisitar Visconti e dar a conhecer Errol Morris. Ciclos temáticos
no domínio do digital e das imagens em 3D, instalações e filmes concerto, a
partir dos quais se projectou um olhar renovado sobre os clássicos, deram corpo
a um olhar experimental. Relevado o papel estruturador dos festivais, assumida
a indispensabilidade da ligação às universidades e apontado o caminho para uma
política local de incentivo à produção e exibição de documentários, animação e
curtas metragens de ficção abriram-se pistas para o futuro [4]”.
Depois de
sublinhar o objectivo de promover a produção multimédia e do documentário nas
suas múltiplas modalidades, de modo não só a projectar a visibilidade da cidade
e da região, mas também a fazer do Porto um pólo de produção, distribuição e
difusão do noroeste peninsular, afirmava-se:
“Ponto de
encontro de realizadores, produtores, operadores de televisão e outros agentes
culturais, a Odisseia nas Imagens foi
estruturada a pensar numa política virada para a identificação e aposta em nichos
de mercado assente em critérios de racionalidade económica e de excelência ao
nível do discurso. É uma forma de pensar local e agir global. É a política do glocal. Portanto, estes nichos de mercado não se esgotam em
produções de difusão limitada, antes são encarados como parte integrante de um
mercado consequente, por um lado, da segmentação e especialização televisivas,
as quais abrem novas janelas de oportunidades e, por outro, do impacto
estruturador produzido pelos festivais internacionais de cinema, televisão e
multimédia nas indústrias culturais e no tecido económico dos países da União
Europeia [5]”.
Em suma, em
função do trabalho desenvolvido nos dois anos anteriores, das parcerias
estabelecidas e do processo de internacionalização levado a cabo caminhava-se
no sentido de dar forma a um festival de novo tipo, cuja presença ficaria
assinalada não apenas através de uma grande iniciativa anual fortemente
mediática com a duração de uma semana, mas também através de iniciativas
escalonadas ao longo do ano resultantes do acordo com vários parceiros. Foi
nesta altura que se chegou a acordo com a RTP por forma a promover uma extensão
em antena da Odisseia nas Imagens, que,
pela primeira vez, se colocou a possibilidade de uma colaboração regular com a
Cinemateca Portuguesa com o intuito de trazer pelo menos parte da sua
programação ao Porto, que se intensificaram as acções de formação e que se
começou a trabalhar com as universidades em cursos de pós-graduação em
documentário.
No caso da
formação e do ensino superior, dando continuidade ao trabalho desenvolvido
anteriormente, as opções estratégicas foram criteriosamente cumpridas. A título
de exemplo: Workshop de Formação Intensiva para a Produção de Filmes [6]
pela Associação Os Filhos de Lumiére,
nascida durante a Odisseia nas Imagens; Wokshop de Pixilação
orientado por Mercedes Gaspar [7];
Workshop Novas Tecnologias na Criação Audiovisual [8];
Workshop Produção de Documentários em África [9];
Simpósio Arte & Animação
comissariado por Jayne Pilling [10];
Workshop Problemas de Autor na Europa [11]; Workshop
O Som para Cinema e Audiovisual [12];
Pós-Graduação em Documentário: O Desafio do Real [13];
Seminário O Documentário [14];
Workshop Operação da Câmara Cinematográfica
[15];
Workshop Produção de Curtas Metragens [16].
O modelo de festival
a implementar estava, portanto, já definido em Como Salvar o Capitalismo/
Outras Paisagens: seria centrado no
documentário e multimédia apostando, em simultâneo, na ocupação de múltiplos
espaços, de modo a tirar partido de factores de proximidade e das capacidades
logísticas da rede de parcerias, entretanto concretizadas; teria uma forte
componente pedagógica constituída, nomeadamente, por masterclasses e workshops, e faria da excelência o critério exclusivo da sua programação de ciclos
de cinema clássico, retrospectivas de autor, ciclos temáticos sobre a
actualidade, fórums de reflexão,
trabalhos experimentais e, naturalmente, também, de um sector competitivo no
qual se enquadraria uma secção de filmes de escolas. Os custos seriam
relativamente avultados, mas todo o trabalho de base estava praticamente
concluído e tudo indicava, da parte dos poderes públicos, o apoio à
continuidade da Programação da Capital Europeia da Cultura após 2001, parecendo
igualmente viável a obtenção de patrocínios [17].
No plano dos
conteúdos este módulo evidenciava um conjunto de características cujas marcas
deveriam ser seguidas no futuro. Em primeiro lugar, tratando-se do embrião de
um festival de documentários e inscrevendo-se estes na actualidade, entendia-se
que haveria sempre um conceito pertinente e actual a explorar no conjunto das
múltiplas manifestações da Odisseia nas Imagens. Neste caso, atendendo à conjuntura internacional – o ataque
terrorista às torres gémeas de Nova Iorque ocorreu no dia seguinte ao início de
Como Salvar o Capitalismo/ Outras Paisagens – a escolha da designação foi quase premonitória.
Sobre Como
Salvar o Capitalismo propunha-se a seguinte
entrada:
“No último
quartel do século XX, o que restava da utopia caminhou ao lado de regimes de
mãos de ferro, a humanidade envolveu-se em sanguinolentas carnificinas e o
homem conheceu um desenvolvimento científico e tecnológico sem precedentes,
avançando na aventura do espaço e do ciberespaço. Fazendo uso do mapa genético,
criou condições para se multiplicar laboratorialmente. Este admirável mundo
novo é, na verdade, um mundo de luz e sombra, porventura de Frankenstein e da
sua criatura, seguramente de ecrãs planos transportando dentro de si
personagens sem espessura numa espécie de versão pós-moderna da paisagem
orwelliana. Ruiram os mitos, tombaram os muros. Em que acreditar? Pois,
salve-se, ao menos, o capitalismo! Por entre o amontoado de cacos e telelixo,
reminiscências de um tempo que se acreditou poder ser justo, na desordem
aparente que sugere uma nova barbárie ou, se preferirmos, nessa ordem aparente
que promete uma ordem nova, haja, pois, lugar para um olhar oblíquo,
transversal, provocatório [18]”.
Nesta linha foi
ponderado um conjunto de iniciativas no qual se destacava uma retrospectiva de
filmes de Willliam Klein [19]
associada a uma série de exposições fotográficas do mesmo autor [20],
bem como a um conjunto de masterclasses destinadas
prioritariamente a discutir o documentário [21]
num contexto de multiplicação de sinais de regresso ao real como contraponto da
vacuidade da televisão e de um cinema de evasão de massas incapaz de reflectir
sobre o mundo. Além de William Klein, as masterclasses foram ministradas por Nina Rosenblum, Dennis
Watlington, Llorenç Soler, Javier Rioyo Amir Labaki e Brian Winston.
As declarações de William Klein sobre o ataque terrorista às torres gémeas após a exibição do seu filme Mr. Freedom (1967-68) foram largamente comentadas. Disse William Klein: “Se querem saber o que penso dos acontecimentos de 11 de Setembro, penso muitas coisas, e uma delas é que os americanos estavam a pedi-las; nos últimos dez anos, sempre que não têm nada para fazer, bombardeiam o Iraque [22]”. Nina Rosenblum, numa entrevista ao jornal Público, afirmava: “A missão do documentário é salvar a humanidade, mostrar os heróis, as pessoas que nunca recebem atenção dos media convencionais [23]”. Llorenç Soler proclamava a necessidade de libertar o documentário das leis do mercado e de encontrar uma distribuição alternativa e independente, de modo a recuperar “o velho grito de guerra: a câmara é uma arma [24]”. Sendo controversas estas e outras declarações contribuíram para gerar o clima de estímulo ao debate pretendido pelo ciclo.
Complementarmente
foi programado um Fórum denominado O Choque das Imagens [25]
organizado em três painéis – Imagens Globais, Equilíbrios Instáveis e Propagandas Silenciosas – destinado a debater o estado do mundo e a sua
representação mediática com a participação, entre outros, de Ignacio Ramonet [26]
e Margarida Ledo Andión. O Fórum Choque das Imagens convivia com Imagens de Choque [27],
uma exposição de fotojornalismo da responsabilidade do Festival du Scoop et du
Journalisme de Angers através da qual “o público pode ficar a conhecer a
actualidade mundial do ano que passou: uma espécie de ‘stop and go’ que nos
permite determinar o estado em que se encontra a nossa sociedade: documentos
frequentemente chocantes, por vezes difíceis, são o reflexo da humanidade:
reflexo esse que nunca poderíamos obter sem os jornalistas pois eles têm, como
todos nós, o dever de informar [28]”.
Quanto a O
Olhar de Ulisses [29]
manteve-se no quadro de uma programação cinéfila, compondo um mosaico de filmes,
muitos deles raramente vistos em Portugal:
“A partir do
momento em que André Bazin viu o cinema como ‘uma janela aberta sobre o mundo’,
o cinema dominante teve uma clara tendência a transformar-se num jogo de vídeo
em grande ecrã e o ecrã de televisão a tomar cada vez mais a forma de um buraco
de fechadura ou seja o ‘visual’ tende a ocupar o lugar da ‘imagem’ como dizia Serge
Daney. Nesse contexto, o quarto e último acto de ‘O Olhar de Ulisses’ procura
construir redes de relação e leitura entre os filmes – faróis da história do
cinema, pontos de referência indispensáveis – e as obras contemporâneas que
teimam em respeitar quem as vê. Por isso este último andamento de O Olhar de
Ulisses chama-se Resistência [30].
A programação do
ciclo era encabeçada por uma citação de Jean-Luc Godard “Não pode haver resistência...
sem memória” e apresentava filmes de
Federico Fellini, Jacques Demy, Nicholas Ray, Boris Barnet, Robert Kramer, Luc
Moullet, António Reis e Margarida Cordeiro, John Ford, Akira Kurosawa, Charles
Laughton, Pedro Costa, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Jacques Tati,
Chantal Akerman, Charlie Chaplin, Chris Marker, Jean-Luc Godard, Olivier
Smolders, Abbas Kiarostami, Serguei Dvortsevoy e Johan van der Keuken, entre
outros. No catálogo, José Manuel Costa introduzia uma nota de polémica – uma
das raras em todo o ciclo – ao responder ao artigo de João Bénard da Costa Os
filmes que nos vêem/os olhos que nos filmam,
anteriormente citado. Dizia José Manuel Costa no início do seu texto:
“Para alguns
isto será mera questão de nome, e dirão que o barulho vai dar em nada: uma vez
que nenhuma destas diferenças nos impede de gostar muito, em consonância, de
muitos dos mesmos filmes, incluindo daqueles a que uma das partes chama
documentários e que a outra, diz que ‘o não são’, que interesse pode ter a
polémica? Para mim tem um: interessa-me discutir esta área do cinema na medida
em que me interessa a parte do cinema todo que nela é mais trabalhada.
Discordar sobre a existência do documentário enquanto arte ou sobre a
importância disso é perder muito mais do que um possível consenso de gosto
sobre alguns outros filmes que à partida se inscrevem aí e aos quais esse
consenso já não chega. O problema, claro, não é o documentário em si, mas a
maneira como cada um vê qualquer filme. Ninguém gosta muito de um documentário
só ‘porque é um documentário’. Mas, se se tem gosto pela área, vê-se e gosta-se
de outras coisas nela e fora dela. Não escrevia este texto se não acreditasse
que o que está em causa é uma maneira de ver o cinema todo e a história dele [31]”.
O texto não teve
réplica, mas a última frase citada, como veremos adiante, convoca questões
conceptuais cujo entendimento motivara já, muito antes da sua publicação,
opções programáticas no sentido de uma abordagem do documentário em diálogo com
áreas não estritamente cinematográficas. A relevância dada às linguagens
multimédia, embora obedecendo a critérios plurais e assumindo formas muito
distintas do documentário, foi já uma consequência dessas opções. Neste módulo,
essas intervenções ganharam maior visibilidade. Explorando o carácter
transversal das linguagens, apostando na diversidade, a programação ganhou
evidência numa multiplicidade de lugares do espaço público, procurando interagir
com os frequentadores habituais ou de circunstância desses mesmos lugares [32].
A porta de entrada de Outras Paisagens [33]
era a seguinte:
“Que
paisagens nos reserva a acção combinada dos media? Outras paisagens? Sim. Mas
que paisagens? O limite da intervenção dos novos media é justamente a ausência
de limites, porque neste território tudo é experimental. Aqui, o registo
criativo é, simultaneamente, um registo de pesquisa gramatical. Da convergência
e conflitualidade de várias linguagens resulta, pois, um peculiar modo de
recriar quer o mundo sensorial, quer o mundo conceptual, abrindo-se as portas
da percepção ao reconhecimento de lugares desconhecidos dentro do próprio homem
e solicitando-se a inteligência intuitiva tanto como forma de racionalizar essa
mesma experiência, quanto de inquirir sobre o seu destino. Outras paisagens:
tão diversas quanto o seu campo de aproximação: do interior do corpo humano ao universo
fabuloso das galáxias, do olhar sobre o tempo que passa à interrogação do tempo
futuro [34]”.
À semelhança dos
módulos anteriores, os filmes concerto [35]
atraíram um público numeroso e um deles, Nosferatu (1919) de
Frederich W. Murnau com música ao vivo dos Clã [36]
continuou a ser apresentado em diversos pontos do país, pelo menos, até 2005.
Dois outros
acontecimentos deixaram ainda uma marca para o futuro. Um respeitante ao cinema
de animação. Outro, a um dos projectos externos ao qual foi dado seguimento, o
Museu da Pessoa.
Quanto ao
primeiro, era dada como irreversível a construção da Casa da Animação, circunstância
associada à comemoração dos 25 anos do Cinanima, em Espinho. Na ocasião, a Odisseia
nas Imagens patrocinou, nomeadamente, o
lançamento de um livro e um CD-ROM ambos intitulados A História do
Cinema de Animação em Portugal [37].
No catálogo do Festival podia ler-se:
“O Cinanima está
de parabéns. Se todo o seu percurso fazia dele à partida um dos parceiros
estratégicos da Odisseia nas Imagens do Porto 2001, Capital Europeia da
Cultura, integrando nomeadamente a sua Programação Oficial, os factos
subsequentes só vieram confirmar a bondade das opções então tomadas. Na
verdade, o Cinanima comemora os seus 25 anos exactamente no ano em que o Porto
vai assistir à inauguração da sua Casa da Animação. E, em rigor, o percurso da
Casa da Animação não principiou no momento em que a Filmógrafo apresentou o seu
projecto à Sociedade Porto 2001, antes remonta ao tempo, há 25 anos, em que o
seu principal animador, Abi Feijó, começou a frequentar o Cinanima. É esta
função estruturante, feita de tempo e paciência, fazendo ver o que deve ser
claramente visto, que releva a importância
de um festival [38]”.
Quanto ao
segundo, um projecto multimédia preparado ao longo de meses pela Universidade
do Minho em colaboração com formadores do Museu da Pessoa de São Paulo, foi
oficialmente lançado na Estação de São Bento do Porto em 11 de Novembro de 2001
[39].
No plano
cerimonial o ponto culminante da Odisseia nas Imagens terá sido a sua sessão de encerramento oficial – que
não de facto – com a projecção de O Leopardo (1963) de Luchino Visconti [40],
na presença do Presidente da República Jorge Sampaio e da actriz Claudia
Cardinale, evento que esgotou com grande antecedência a lotação do Grande
Auditório do Rivoli - Teatro Municipal e ocupou durante dias as páginas dos
jornais [41]. O filme
encerrava, simultaneamente, o Ciclo Visconti iniciado no módulo anterior. Mas,
do ponto de vista da lógica da Programação o momento culminante foi o Festival
Internacional do Documentário e Novos Média do Porto [42],
bem como a Competição de Escolas a ele associado [43].
Isto, porque, no fundo, seria a partir dele que seria posssível começar a fazer
o balanço do trabalho desenvolvido. Com efeito, na fase final do Porto 2001-
Capital Europeia da Cultura, uma das questões mais vezes abordadas pelos seus
responsáveis e pela comunicação social foi a possibilidade de dar continuidade
aos eventos pensados para ficar, cumprindo, assim, as pontes para o futuro.
Nalguns casos, como sucedeu com a Casa da Música, desde o início encarada como
corolário da programação musical, em função dos compromissos institucionais a
nível do Estado, essa questão não se colocou. Contudo, noutros casos a lógica
dos eventos, embora obedecendo em termos genéricos a princípios estruturantes,
obrigava a uma espécie de conquista de espaço de afirmação, com tudo o que isso
implicava de garantia de apoios para efeito de continuidade ou para seduzir
potenciais tomadores.
As parcerias
estabelecidas pela Odisseia nas Imagens,
a excelência da sua Programação unanimemente reconhecida, bem como os contactos
informais estabelecidos através de diversos canais, pareciam abrir boas
perspectivas para a continuidade do Festival Internacional do Documentário e
Novos Média. Nesse sentido, foram feitas diversas declarações por parte dos
responsáveis: “O que nós vamos deixar é um festival completamente estruturado,
com um conjunto de parcerias devidamente elencadas. Caberá depois à cidade ser
tomadora do projecto nos moldes que entender [44]”.
A Coordenadora Geral da Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia
da Cultura, Manuela Melo, na nota de abertura do Catálogo da Odisseia
nas Imagens [45],
organizado já de acordo com o modelo do que no futuro se pretendia vir a ser o
Festival [46], seguia a
mesma linha de pensamento:
“Fica o modelo
para quem quiser fazer da Capital Europeia da Cultura uma ‘ponte para o
futuro’. O Festival, definido segundo estas linhas mestras, será, temos a
certeza, o espaço de encontro, discussão, competição, criatividade, mas também
de negócio e indução de indústrias da cultura. Um Festival que é urgente ter no
nosso país, e centrado no Porto, pelo trabalho desenvolvido ao longo de dois
anos e meio na sua concepção e criação de parcerias. (...) O que este Festival
pretende – e pode ser se for olhado pelos responsáveis de forma adequada – é
relançar o Porto e o Noroeste Peninsular na primeira linha de produção
audiovisual e multimédia, tendo em conta as novas condições dos mercados
globais [47]”.
No seu espaço
semanal da revista Visão de 25 de Outubro de 2001 João Mário Grilo, num artigo
intitulado Reticências, depois de se
referir pormenorizadamente à programação de Cinema, escrevia a propósito deste
último módúlo:
“Operação, a
todos os níveis, impressionante, que se prolonga ainda no arte-vídeo, na
instalação, no multimédia, a performance e numa pluralidade de exposições,
conferêcias e masterclasses, este derradeiro episódio de ‘A Odisseia nas
Imagens’ lança algumas bases seguras para prolongamentos futuros. Mas a maior
expectativa vai para o que desta enorme experiência e esforço irá resultar:
saber se da colheita destas imagens pode nascer uma nova geração de pessoas e
ideias de que o audiovisual português está tão desesperadamente necessitado.
Essa será, sem dúvida, a maior das Odisseias e a razão pela qual a paisagem
cinematográfica da Porto 2001 tem, para já, no seu remate, umas reticências e
um grande ponto de interrogação. Não é uma dúvida, mas um elogio e uma
esperança [48]”.
A dúvidas de
João Mário Grilo, no entanto, eram pertinentes por duas ordens de razões. Em
primeiro lugar, devido à constante volatilidade das políticas para o cinema,
audiovisual e multimédia, muitas vezes elaboradas mais em função da conjuntura
do momento, dos atritos partidários e de grupos corporativos do que
fundamentadas em princípios estratégicos de médio e longo prazo. Em segundo
lugar, porque a dimensão atingida pela Odisseia nas Imagens colocara a fasquia num patamar tão elevado, que,
internamente, havia a percepção de se estar perante uma tarefa só exequível com
meios relativamente avultados, embora, do ponto de vista da formação dos
recursos humanos, tivessem sido criadas as condições indispensáveis. Essa foi,
aliás, uma das preocupações traduzidas no Relatório de Avaliação Final [49].
Acresce que no
plano político e no plano institucional uma série de episódios marcara
negativamente a Capital Europeia da Cultura, nomeadamente o relacionamento
entre a Sociedade Porto 2001 e a autarquia portuense [50],
e embora a Programação no seu conjunto e a Odisseia nas Imagens, em particular, recolhessem um consenso alargado, a
verdade é que os indícios, para além da instabilidade resultante do conflito
mencionado, apontavam para uma mudança de ciclo político de consequências
imprevisíveis para a continuidade das políticas e projectos culturais. Fosse
como fosse, a verdade é que nesta fase se multiplicaram as manifestações de
apoio, a começar pela voz dos seus principais participantes e convidados, bem
como pela generalidade da comunicação social. O Júri da Competição
Internacional, presidido por Nina Rosenblum, afirmava na sua declaração: “Um
evento com o grau de excelência da Odisseia nas Imagens cumpre um papel
insubstituível no estímulo à produção de documentários e na esfera dos novos
media. Os nossos votos são de longa vida ao festival [51]”!
Acrescentava em seguida: “Como nenhum outro género, os documentários tornam o
mundo contemporâneo menos opaco. Um grande documentário cria uma forma própria
que espelha a excepcionalidade do seu tema, ou dos seus protagonistas [52]”.
Por sua vez, o Júri da Competição de Escolas alertava: “O Júri não pode deixar
de chamar a atenção das instituições da região para a responsabilidade de não
deixar morrer ou esmorecer esta iniciativa. Bem pelo contrário, devem
revitalizá-la e alargá-la pelo seu valor estruturante no panorama cultural,
designadamente no audiovisual [53]”.
Na imprensa, para citar apenas um exemplo, no semanário Expresso de 17 de
Novembro de 2001, António Loja Neves escrevia na abertura do seu texto A
reflexão sobre o cinema:
“Na verdadeira
saga que foi a programação, durante um ano, dividida por vários módulos, de ‘A
Odisseia nas Imagens’, integrante das actividades do Porto 2001, o Festival
Internacional do Documentário e Novos Média do Porto foi o acertado rematar de
um conceito de programação que redimensiona a forma de olhar as imagens, o
cinema, os filmes. E que reposiciona o espectador no propósito de o tornar
interventor [54]”.
O articulista
concluía assim:
“Dizia Walt Whitman:
‘Ver, ver, observar, abraçar a realidade, arrancar a máscara, esquartejar os
pedaços da realidade, devorá-los, colocá-los em cruz’. Excelente receituário
para um documentarista. Foi certamente o mote deste festival. Que o festival do
Porto continue muito para lá do epifenómeno da Capital Europeia da Cultura.
Porque é necessário [55]”.
Durante a fase
final da Programação foram estabelecidos contactos com vista a garantir o apoio
institucional indispensável à continuidade do Festival. A ideia era assegurar a
sua componente de serviço público de apoio ao desenvolvimento de iniciativas no
âmbito da produção audiovisual e multimédia que permitissem, a médio prazo, o
aparecimento de um sector industrial com alguma pujança capaz de responder a
solicitações do mercado mais tradicional, por um lado, e de desenvolver uma
identidade própria em termos de produções de excelência numa lógica de ocupação
selectiva de nichos de mercado. Em qualquer dos casos, tratava-se de prosseguir
e consolidar as bases do trabalho levado a efeito por forma a contribuir para a
definição de políticas descentralizadas para o audiovisual e, nessa medida,
conferir um maior equilíbrio à visibilidade global do país. Os contactos
decorreram, naturalmente, no contexto dos protocolos existentes e levaram,
inclusivamente, a solicitação do IPAE (Instituto Português das Artes e
Espectáculo) à elaboração de um primeiro documento tendo em vista a
possibilidade de utilização da Casa das Artes como base de desenvolvimento e
aprofundamento da Odisseia nas Imagens [56].
No jornal Público de 25 de Janeiro de 2002, o Ministro da Cultura Augusto
Santos Silva avançava já algumas ideias a propósito da futura utilização desse
equipamento cultural [57].
Mas, apesar das manifestações
de apoio provenientes de diversos sectores, o facto é que a Odisseia nas
Imagens, em boa medida devido à mudança de
ciclo político, quer ao nível do poder local quer do poder central, não viria a
ter continuidade. O último episódio desta aventura do olhar foi na RTP em cujo Canal 2 viria a conhecer uma
extensão constituída por 14 programas [58].
[17] . O orçamento global atribuído à Odisseia nas
Imagens foi de 528.500.000$00, o
equivalente a um pouco mais de 2,5 milhões de euros na moeda actual.
Considerada prioritária em termos estratégicos, a área de Cinema, Audiovisual e
Multimédia entendeu fazer a gestão dos recursos disponíveis adoptando uma
lógica de prestação de serviço público
a partir do qual se abrissem novas perspectivas, nomeadamente no que respeita à
criação de uma massa crítica capaz de gerar iniciativas autónomas aos vários
níveis da formação, criação, produção e distribuição. Sendo factor de
desenvolvimento, mobilização e auto-estima da própria cidade e sendo a área da visibilidade por excelência, a Odisseia nas Imagens procurou optimizar os seus recursos próprios no
contexto das suas múltiplas parcerias, indo buscar apoios ao exterior sempre
que a situação o permitiu. Por exemplo, a maioria das accões de formação não
teria sido possível sem o protocolo negociado com o Instituto de Emprego e
Formação Profissional, em colaboração com a Associação Empresarial de Portugal.
Também o protocolo estabelecido com a Radiotelevisão Portuguesa (RTP) foi
relevante não apenas em termos de promoção e divulgação, mas também na
co-produção da série Estórias De Duas Cidades. A Cinemateca Portuguesa contribuiu para a programação
de Cinema. Outros acordos permitiram suportar alguns custos, embora pouco
significativos em função da previsão global das despesas. De qualquer modo,
como se verifica através da análise das fichas dos projectos, por essa via foi
possível cobrir gastos de algumas viagens e estadias. Estão neste caso, por exemplo,
a comparticipação do ICAM nas despesas com a deslocação de realizadores da
série Estórias de Duas Cidades
a Roterdão, bem como do Instituto Francês, do Instituto Alemão e das embaixadas
da Finlândia e do Canadá em projectos envolvendo actividades culturais com elas
relacionadas. Em termos de gestão de orçamento o critério seguido foi de
efectuar rectificações quando se verificaram desvios, sendo o défice num módulo
descontado no orçamento do módulo seguinte. O desvio verificado no módulo
final, insusceptível de rectificação, foi compensado com a candidatura ao Plano
Operacional da Cultura do Festival do Documentário e Novos Média, a qual viria
a merecer avaliação positiva. Em todo o caso, o incumprimento do orçamento
inicial da Odisseia nas Imagens, foi uma nota negativa. - Nota do Autor.
[31] . Costa, José Manuel – Para além do documentário, in
Catálogo O Olhar de Ulisses-Resistência, Odisseia nas Imagens/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2001, p. 328.
[46] . No Catálogo apenas não estava incluída a parte
respeitante a O Olhar de Ulisses,
com catálogo autónomo, cuja função se considerava cumprida. No contexto geral
do novo Festival estava prevista uma secção semelhante ao ciclo apoiado pela
Cinemateca Portuguesa, naturalmente redimensionado e ajustado à lógica global
do evento. - Nota do Autor.
“a) O trabalho foi sendo desenvolvido na base de uma
aprendizagem permanente por parte dos elementos do núcleo central do
Departamento;
b) o quer dizer que, face às características das
tarefas que se foram colocando, apesar da larga experiência de todos os
elementos fundamentalmente no domínio do Cinema e da Televisão, foi necessário
ultrapassar situações novas em relação às quais não havia experiência
adquirida, nomeadamente na área do Multimédia;
c) por outro lado, em função da dinâmica da
Programação, e à medida em que as solicitações foram aumentando, o grupo de
trabalho foi sendo confrontado com ritmos cada vez mais absorventes e com
maiores exigências resultantes da multiplicidade das tarefas que se foram
colocando;
d) isto dificultou, por exemplo, o acompanhamento da
concretização dos projectos externos, com reflexos nomeadamente ao nível do
cumprimento de prazos e do controlo orçamental;
e) e teve, também, como consequência a necessidade
de recorrer a um número crescente de colaboradores contratados,
f) os quais, a par dos elementos constituintes do
núcleo central, acabaram por beneficiar de uma experiência a partir da qual se
criaram verdadeiras equipas de produção e programação culturais habilitadas a
desempenhar as tarefas mais complexas
h) e cujos saberes podem ser utilizados no curto e
médio prazo”. - Relatório de Avaliação
Final do Departamento de Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto
2001 – Capital Europeia da Cultura, sem páginas numeradas.
[50] . Não cabe aqui recuperar os episódios negativos
respeitantes ao conflito mencionado. Fica, no entanto, a nota que a maioria
deles teve relação com o processo de requalificação urbana levada a cabo
durante a Capital Europeia da Cultura e relevou de um choque de competências
entre as duas entidades. - Nota do Autor.
[56] . O documento, intitulado Linhas orientadoras para a
Programação da Casa das Artes, está a seguir transcrito:
“1. A Programação que se propõe para a Casa das
Artes prossegue a experiência levada a cabo pelo Departamento de Cinema,
Audiovisual e Mulitmédia da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura
no âmbito da Odisseia nas Imagens.
2. Essa experiência teve como objectivo desenvolver
dinâmicas de criação de novos públicos associadas a acções de produção
audiovisual, nomeadamente ao nível dos estabelecimentos de ensino superior, com
o intuito de repercutir, a médio prazo, em competências acrescidas em termos de
uma produção local de excelência entendida num contexto descentralizador.
3. Identificadas as capacidades instaladas e os
saberes existentes foram apontadas como modalidades discursivas estratégicas o
cinema de Animação, as curtas metragens de ficção e o documentário.
4. Todas estas modalidades discursivas dispõem, nos
festivais existentes na área metropolitana do Porto – Cinanima, Festival
Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde e Odisseia nas Imagens – de
capacidade de visibilidade, sendo que esses festivais desempenham, ou pretendem
vir a desempenhar, uma função estruturadora em termos de incentivo à produção
nacional.
5. Na lógica de programação da Odisseia nas
Imagens a Cinemateca Portuguesa
deu um contributo relevante na organização de ciclos de cinema integrados nos
planos curriculares dos cursos universitários da área metropolitana do Porto
ligados ao Cinema, Televisão e Jornalismo, reforçando, desse modo, a dinâmica
de criação de novos públicos.
6. A justeza da estratégia adoptada é confirmada
pela curva crescente de presença de público nas iniciativas da Odisseia nas
Imagens, a qual, ao longo da sua programação nos anos de 2000 e 2001, se
aproximou de um valor global, em termos de presenças, dos 80.000 espectadores.
7. A Odisseia nas Imagens revelou ainda enorme potencial de
internacionalização, estabelecendo contactos com numerosos festivais e
instituições internacionais de carácter cultural, com os quais ficou em aberto
a possibilidade de estabelecer parcerias.
Em função do exposto, cujo desenvolvimento se
encontra na memória descritiva da Odisseia nas Imagens, parece razoável propor uma programação que tire
partido e dê continuidade ao trabalho realizado, nos seguintes termos:
1. Acertar Programação com a Cinemateca Portuguesa
dentro do quadro conceptual desenvolvido pela Odisseia nas Imagens;
2. Estabelecer acordos com os festivais mencionados
tendo em vista formas de colaboração regular traduzida em Programação;
3. Desenvolver diligências junto de outras
entidades, nomeadamente o Fantasporto e os cineclubes, de modo a estudar
possibilidades de cooperação com os mesmos objectivos;
4. Aprofundar os contactos com os estabelecimentos
de ensino superior de modo a integrar a Programação da Casa das Artes nos
respectivos programas curriculares, garantindo, assim, o impulso à criação de
novos públicos;
5. Utilizar os espaços da Casa das Artes de modo
articulado e coerente, com actividades multidisciplinares, de modo a criar
atractivos e potenciar a diversificação dos públicos;
6. Desenvolver parcerias internacionais dando
continuidade ao trabalho realizado, nomeadamente com o Museu de Arte
Contemporânea de Vigo, na área Multimédia, e com os principais festivais
internacionais de Documentário;
7. Acolher o Festival Odisseia nas Imagens concebido como o corolário do trabalho desenvolvido
ao longo do ano, mantendo as suas características de Festival Internacional do
Documentário e Novos Media, com forte participação escolar e uma
internacionalização apostada no noroeste peninsular.
Estão em curso diligências no sentido de constituir
a Associação Odisseia nas Imagens.
A Associação Os Filhos de Lumiére prossegue a sua
actividade quer através da realização de workshops no Teatro do Campo Alegre,
quer com programação de Cinema na Fundação de Serralves.
Do exposto, daquilo que foi dito e daquilo que se
pode inferir, parece lícito esperar dos poderes públicos uma atitude
construtiva no sentido de dar continuidade a este projecto”.
5.5 Programação
do(s) documentário(s) na Odisseia das Imagens
O intuito de
fazer do documentário o eixo dominante em torno do qual deveria estruturar-se a
Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001 - Capital
Europeia da Cultura foi assumido desde a primeira hora. Apesar da diversidade
de iniciativas neste domínio em toda a Europa, nenhuma parecia susceptível de
servir de modelo a um propósito tão exigente e dilatado no tempo quanto se
afigurava a Odisseia nas Imagens,
pensada para cumprir um calendário de dois anos ao longo dos quais era suposto
ser capaz de criar uma rede de parcerias indispensável à sua continuidade no
futuro.
Por isso, logo
se percebeu a necessidade de lhe conferir um carácter experimental, com um
primeiro ano mais circunscrito a uma visão essencialmente cinematográfica,
assumindo, portanto, a matriz fundadora do olhar do cinema, e um segundo ano
durante o qual, mantendo embora essa mesma matriz como referência, se propunha
trabalhá-la em diálogo com outros modos de encarar o documentário. Deste modo,
esperava-se no primeiro ano não só cativar o público em geral com uma
programação de elevada qualidade, recuperando o documentário através de
episódios e filmes fundamentais da sua História, mas também possibilitar ao
público escolar uma perspectiva que se sabia ser, em muitos casos, dele
praticamente desconhecida.
Nesse sentido,
cedo se percebeu que O Olhar de Ulisses
deveria funcionar como uma espécie de parede mestra do edifício em construção.
Mas, como se depreenderá das notas dissonantes introduzidas na descrição da
programação, também cedo se percebeu ser necessário encontrar um ponto de
equilíbrio no sentido de enquadrar as diversas maneiras de encarar o documentário,
tanto mais que O Olhar de Ulisses,
independentemente da excelência dos seus filmes e da justeza da prioridade atribuída
ao cinema, sobretudo a partir do segundo módulo, começou a proceder reactivamente
quanto à possibilidade de contraponto de narrativas do presente alicerçadas em linguagens
recolhendo subsídios de outras áreas exteriores ao cinema.
A lógica da
programação do documentário em O Olhar de Ulisses foi estabelecida aceitando como ponto de partida uma organização
temporal – idêntica à concebida para a Odisseia nas Imagens no seu conjunto –, identificando episódios
fundamentais, mas sem impor qualquer tipo de espartilho conceptual, antes
permitindo aos programadores completa liberdade de acção. Estabeleceu-se que o
primeiro episódio ocuparia a História do Documentário até ao advento do cinema
sonoro, devendo chamar-se O Homem e a Câmara, numa alusão a Dziga Vertov e a um tempo em que a
imagem fora rainha. O segundo episódio, O Som e a Fúria, deveria cobrir a fase compreendida entre o advento
do cinema sonoro e o pós-guerra, uma época crítica durante a qual a voz chegou
ao documentário e este teve expressão noutros media e foi colocado de uma forma sistemática ao serviço
da propaganda. O terceiro episódio, centrado fundamentalmente na revolução
operada nos anos 60 do século passado, teria como núcleo duro o direct
cinema, o cinema vérité, bem como outros movimentos precursores como o
neo-realismo italiano e o free cinema britânico ou movimentos marcantes da época como a nouvelle
vague francesa. O quarto e último episódio
seria essencialmente dedicado ao documentário do presente.
Ficou igualmente
decidido que todos os módulos da Odisseia nas Imagens, independentemente da ampla divulgação feita através
da comunicação social e da edição de catálogos, seriam profusamente
publicitados através da edição periódica de um pequeno jornal. Esse jornal,
constituindo um guia para o público pretendia ser, igualmente, um espelho da
lógica global da programação [1].
Ocupando um
lugar central na Odisseia nas Imagens, uma
vez que para além da programação dos filmes era suposto proporcionar um
conjunto de propostas conducente à reflexão sobre o documentário – a publicação
do respectivo catálogo, bem como a presença de numerosos especialistas na
introdução e debate das obras deveriam responder a esse propósito – O
Olhar de Ulisses tem, naturalmente,
prioridade na revisão crítica sobre as opções programáticas e suas
consequências. Num segundo momento, reflectir-se-á sobre a presença de outros
ciclos e iniciativas onde diversos tipos de documentários estiveram, igualmente,
presentes.
5.5.1 Odisseia
nas Imagens I – O Homem e a Câmara
O Olhar de
Ulisses I - O Homem e a Câmara [1]
principiou a 3 de Maio de 2000 com A Criança Cega (1964) de Johan Van Der Keuken, filme que coloca
simbolicamente o problema do olhar através da difícil aprendizagem dos cegos na
sua relação com o mundo, prosseguindo com Louis Lumière (1961) de Eric Rohmer, durante o qual Jean Renoir e
Henri Langlois falam das origens do cinema e retomam a questão do olhar.
Seguiam-se quatro filmes de Aurélio da Paz dos Reis (1896), remetendo para as
primeiras imagens do cinema português, com passagem para Pela
Primeira Vez (1967) um curto documentário
do cubano Octávio Cortazar onde se mostra a visita de um cinema ambulante a uma
aldeia perdida na Sierra Maestra, cujos habitantes nunca tinham visto um filme.
Cortazar mostra as reacções do público à projecção de Tempos Modernos (1935) de Charlie Chaplin. Os filmes seguintes Citizen
Langlois (1994) de Edgardo Cozarinsky e O
Olhar de Ulisses (1994) de Theo
Angelopoulos completaram a introdução do Ciclo. O primeiro funciona como uma
espécie de guia inspirador do que viria a ser uma Programação obedecendo
essencialmente a critérios de Cinemateca – o exemplo de Henri Langlois seria
recorrentemente evocado – e o segundo remete para uma espécie de busca de um
olhar revelador e primordial só ao alcance do cinema.
Esse propósito está,
aliás, de algum modo expresso no texto introdutório do respectivo Catálogo assinado
por dois dos programadores, Pierre-Marie Goulet e Teresa Garcia, quando
recuperam uma passagem de L’homme à la caméra de Serge Daney e Louis Skorecki publicado no jornal Líberation: “Os
cineastas habitam ainda um país que não figura em nenhum mapa geográfico.
Porque ele engloba-os a todos. Esse país é o cinema e ainda estamos a tempo de
o explorar - pelo interior [2]”.
As páginas seguintes reproduzem excertos de uma troca de correspondência entre
Manoel de Oliveira e o principal responsável da Cinemateca Portuguesa João
Bénard da Costa a propósito de A Carta (1999), filme de Oliveira, textos esses que dialogam em torno do
cinema e das outras artes.
Os blocos
seguintes fizeram a previsível passagem para os filmes sinfonia e o cruzamento com as vanguardas artísticas dos anos
20 e 30, tal como acontece em qualquer História do Documentário. Neste caso,
como, aliás, no módulo seguinte, parece evidente a influência do alinhamento
dos textos do clássico de Mark Cousins e Kevin Macdonald, Imagining
Reality [3],
na sua edição de 1996. As sessões do dia 4 de Maio mostraram os seguintes
filmes, assim ordenados: Rien que les Heures (1926) de Alberto Cavalcanti, Berlim, Sinfonia
de uma Cidade (1927) de Walther Ruttmann [4],
O Homem da Câmara de Filmar
(1929) de Dziga Vertov [5],
A Ponte (1928) de Joris Ivens, A
Chuva (1929) de Joris Ivens, Images
d’Ostende (1929-30) de Henri Storck e Douro,
Faina Fluvial (1931-1995) de Manoel de
Oliveira, na sua última versão com música de Emmanuel Nunes. No dia seguinte: Philips Radio (1931) de Joris Ivens, Novas Terras (1934) de Joris Ivens, Las Hurdes (1932) de Luis Buñuel, Misère au
Borinage (1933) de Joris
Ivens e Henri Storck, Manhatta (1921) de Paul Strand e Charles Sheeler, L’Étoile de la Mer (1928) de Man Ray, Un Chien Andalou (1929) de Luis Buñuel, Une Idylle à la
Plage (1931) de Henri
Storck, L’Hippocamp
(1934) de Jean Painlevé e La Carosse d’Or (1952) de Jean Renoir.
Esta selecção, que culmina com a deriva do filme de Renoir num sublinhado de exclusividade da imaginação – a fita passa-se num país inventado da América do Sul e propõe uma aproximação ‘realista’ a uma situação improvável – segue uma linha coerente em relação à qual prevalece o sentido de uma ética do olhar, mesmo quando mergulha no surrealismo de Buñuel do qual se pode extrapolar, por exemplo, o sentido metafórico da célebre cena do corte da córnea do olho em Un Chien Andalou. Essa ética reflecte-se particularmente em Misère au Borinage e na sua recusa de emprestar qualquer tipo de glamour às imagens respeitantes às condições de vida miseráveis dos mineiros. Os filmes de Storck inscrevem-se numa dimensão poética, bem como os dois primeiros de Ivens, mas Misère au Borinage revela já outro tipo de preocupações. Apesar de não constar do respectivo catálogo, foi ainda exibido o Kino Pravda 21, numa referência à tradição de newsreels, na terminologia de Rotha [6], que antecedeu O Homem da Câmara de Filmar.
No dia 6 e 7 de
Maio o ciclo enveredou pela exploração criativa de outra filiação clássica do
filme documentário, à qual surgem genericamente associados os travelogue e as fitas de aventuras. Assim, no dia 6, as sessões
começaram com filmes dos operadores Lumière de 1896 primeiro em Roma, depois no
Cairo, em 1897, com fotografia de um dos seus mais famosos correspondentes
Alexandre Promio. Estes últimos foram pretexto para exibir de seguida Le
Caire...Raconté par Chahine (1991) de
Youssef Chahine, A Estação do Cairo
(1958) também de Chahine a que se seguiu A Caminho do Sul (1980-81) de Johan Van Der Keuken e Tabu (1931) de Frederich W. Murnau e Robert Flaherty. No
dia seguinte: Descrição de uma Ilha
(1977-78) de Rudolf Thome e Cyntia Beatt seguido de dois clássicos de Robert
Flaherty, Nanook of the North
(1922) e Moana (1926). É
significativa a escolha de Le Caire...Raconté par Chahine, um filme feito para a televisão, mas que dela se
distancia na recusa de estereótipos e evidências, procurando antes assumir um
tom reflexivo e, de algum modo, experimental.
Nos últimos dias
8,9 e 10 de Maio – deixamos de lado a programação de Jean-Michel Arnold e
Annick Demeule em Arqueologia e Desvios do Cinema Científico [7],
de resto, enquadrada com a filosofia de O Olhar de Ulisses – o ciclo, concebido um pouco à imagem do que seria
a montagem de um filme, como que cumpre uma trajectória circular, regressando ao
olhar, mas culminando com um final em aberto, irónico e divertido, suscitando a
questão do real e da ficção e deixando a pairar dúvidas sobre os limites da
verdade e da mentira.
Assim, no dia 8,
as sessões obedeceram ao seguinte alinhamento: In the Land of the War Canoes (1914) de Edward S. Curtis, para muitos o inspirador
do chamado método Flaherty de certo nodo já posto em prática neste filme;
seguiram-se Grass: a Nation Batlle for a Life (1925) da dupla Cooper/ Schoedsack desta vez acompanhada
pela jornalista e aventureira Marguerite Harrison, reportando a saga da tribo
dos Bakthiari, pastores nómadas iranianos que migravam duas vezes por ano em
busca de pastagens para os seus gados, Chang (1927), da mesma dupla, sobre a selva mítica da Ásia
e o seus perigos e filme do qual resultaria, como corolário, King
Kong (1933) igualmente de Merian Cooper e
Ernest Schoedsack; a última sessão encerrava com uma nova deriva, agora O
Salão de Música (1958) de Satyajit Ray
onde, a pretexto do prazer da música se estabelece o confronto da decadente
aristocracia feudal indiana com uma burguesia emergente e ávida de poder.
Apropriadamente, a noite terminava com um concerto ao vivo de Sharmila Roy [8].
A primeira
sessão do dia 9 de Maio começava com outro clássico das aventuras e viagens 90
Degrees South (1933) de Herbert Pointing
sobre a trágica expedição de Scott ao Antártico e regressava à câmara de filmar
com uma animação de Wladyslaw Starewicz, A Vingança do Cameraman (1911), seguida de The Cameraman (1928) de Edward Sedgwick e Buster Keaton,
provavelmente o primeiro filme da História do Cinema a colocar a questão dos
limites da intervenção jornalística em termos da espectacularização das imagens.
A segunda sessão retomava Van Der Keuken com Criança Cega 2 (1966) e fechava com Peeping Tom (1960), filme de culto de Michael Powell sobre um serial
killer que regista fotograficamente a morte
das suas vítimas e que é uma profunda reflexão sobre o poder das imagens e do
cinema.
A última sessão
do dia 10 compreendia a Arqueologia e Desvios do Cinema Científico e fechava com F for Fake (1975) de Orson Welles, no qual o cineasta se
diverte e interroga sobre a ideia de falsificação na arte e se assume como
charlatão...
No total,
excluindo os filmes programados em Arqueologia e Desvios do Cinema
Científico, o primeiro episódio de O
Olhar de Ulisses mostrou 44 filmes, assim
distribuídos em função da origem: Estados Unidos da América – 10 (22,72%),
França – 9 (20,45%), Holanda – 7 (15,90%), Bélgica – 3 (6,81%), URSS – 3 (6,81%),
Portugal – 2 (4,54%), Reino Unido – 2 (4,54%), Alemanha – 2 (4,54%), Espanha –
1 (2,27%), Egipto – 1 (2,27%), Cuba – 1 (2,27%), Índia – 1 (2,27%), havendo
ainda a considerar duas co-produções, uma Egipto/França – 1 (2,27%) e outra
Grécia/França/ Itália – 1 (2,27%).
Para uma melhor
compreensão da lógica da programação de O Olhar de Ulisses – veremos adiante como o ciclo iria evoluir no
sentido do cinema de arte e ensaio preconizado, no essencial, pela política dos
autores dos Cahiers du Cinéma –, independentemente da origem dos filmes,
importa proceder ao escrutínio das tendências dominantes nos documentários
exibidos em função de parâmetros conhecidos. Esses parâmetros tanto convocam
critérios de historicidade quanto da teoria do documentário. Assim, as
categorias de Rotha [9]
a propósito da tradição do documentário parecem apropriadas no sentido de
situar as áreas em que se inscrevem os diferentes filmes anteriores ou
imediatamente posteriores ao advento do cinema sonoro. No entanto, serão
porventura inapropriadas para a integração dos filmes posteriores, mais
complexos, os quais combinam diferentes formas narrativas.
Neste domínio,
será preferível recorrer aos modos de Nichols [10],
eventualmente a Guynn e Plantinga, sem perder de vista que um mesmo filme
integra, normalmente, uma variedade de vozes e de modos, podendo igualmente
corresponder a diferentes tradições em simultâneo. Em qualquer dos casos,
porém, sublinha-se que não se trata de qualquer tentativa de avaliar
qualitativamente os filmes e muito menos a Programação do ciclo no seu
conjunto, mas apenas de encontrar elementos que permitam caracterizar o seu
percurso à luz de contributos da teoria do documentário e em função dos
critérios delineados para o conjunto da Odisseia nas Imagens.
No caso do
presente episódio, por razões óbvias retiramos do âmbito da análise os filmes
dos pioneiros do cinema, a animação e as obras habitualmente identificadas como
sendo de ficção, mesmo correndo o risco da eventual simplificação de questões
complexas como as que respeitam ao debate da dicotomia documentário/ ficção,
hoje uma questão central da teoria do documenário. Ficam, assim, de fora: Os
filmes de Paz dos Reis, os filmes dos operadores Lumière, O Olhar de Ulisses, King Kong, O Salão de Música, A
Vingança do Cameraman, The
Cameraman, La Carosse d’Or, Peeping Tom.
Aplicando as
categorias de Rotha parece razoável a seguinte colocação dos filmes: tradição
naturalista ou romântica: Tabu, Nanook
of the North, Moana, In the Land of War Canoes, Grass: a Nation Battle for Fight e Chang;
tradição realista com filiação avant-garde: Rien que Les Heures, Berlim, O Homem da Câmara de Filmar, A Ponte,
Chuva, Images d’Ostende, A Propos de Nice, Douro, Faina Fluvial, Philips Radio, Novas Terras, Las
Hurdes, Manhatta, L’ Étoile de Mer, Un Chien Andalou, Une Ydylle à la Plage e L’ Hippocampe; tradição de newsreels: Kino
Pravda 21 e O Homem da Câmara de
Filmar; tradição da propaganda: Kino
Pravda 21, O Homem da Câmara de
Filmar, eventualmente Misére au
Borinage, cujos autores, influenciados pela
Revolução de Outubro e pelo cinema soviético fizeram a transição das vanguardas
artísticas para os propósitos políticos e sociais. A maioria destes filmes
poderia caber também nos modo poético e reflexivo de Nichols. O mesmo poderia dizer-se
dos dois filmes de Van Der Keuken sobre as crianças cegas. Os dois filmes de Chahine sobre o
Cairo, Descrição de uma Ilha, A
Caminho do Sul e Louis Lumière e F for Fake são predominantemente reflexivos. Pela primeira vez privilegia a observação e Citizen Langlois é expositivo. Desta classificação se resulta a
evidência da prioridade dada à dimensão estética e a um cinema de dominante
poética no sentido aristotélico da palavra.
Do conjunto de
filmes apresentados ressalta a quase total omissão do cinema soviético, nesta
fase de cunho essencialmente documental, com propósitos sociais e de propaganda,
mas igualmente ligado às vanguardas artísticas e constituindo, provavelmente, o
mais estimulante laboratório cinematográfico do período anterior ao advento do
cinema sonoro. Todos os filmes do ciclo – ou quase todos – eram acompanhados
por textos publicados no respectivo catálogo de 336 páginas: “inéditos ou
reedições, textos teóricos, críticos, entrevistas, cartas ou ainda poemas [11]”
pretendendo “acompanhar as projecções dos filmes, mas também prolongá-las
tornando-se um instrumento de reflexão [12]”.
Os autores dos textos originais, que complementam e interagem com reedições
sobre as mesmas matérias, foram habitualmente os elementos destacados para
introduzir o debate sobre os filmes durante as sessões.
Para este
primeiro módulo de O Olhar de Ulisses foram
convidados, para além de especialistas e cineastas portugueses, um número
significativo de personalidades francófonas, nomeadamente Alok Nandi (autor e realizador),
Gerald Collas (produtor de documentários), Gerald Leblanc (poeta e crítico de cinema),
Jean-Louis Comolli (realizador e ensaísta), Jean-Michel Arnold (director do
CNRS Images/medias), Olivier Smolders (realizador), Saguenail (realizador) e
Serge Meurant (poeta, responsável do Festival de Cinema Documental "Filmer
à tout prix") [13].
Tanto quanto uma
leitura do catálogo permite apurar, naquilo que respeita aos textos
respeitantes aos filmes, excluindo, portanto, introduções, correspondência
epistolar e a parte reservada às Imagens da Ciência, há 29 originais, na sua maioria curtas, mas
pertinentes notas sobre os filmes em apreço, e 24 reedições cujas proveniências
são, na maioria dos casos, ou as Folhas da Cinemateca Portuguesa ou publicações
francesas ou em língua francesa, com destaque para os Cahiers du Cinéma. Os
textos de pendor mais teórico são fundamentalmente dois, um sobre Vertov e O
Homem da Câmara de Filmar intitulado O
Futuro do Homem da autoria de Jean-Louis
Comolli, originalmente publicado no número de Verão de 1995 da Trafic nº 15 [14],
o outro de José Manuel Costa intitulado Grandeza de Flaherty publicado pela primeira vez no catálogo Robert
Flaherty editado pela Cinemateca Portuguesa em 1984 [15].
[2] . Catálogo O Olhar de Ulisses I – O Homem e a Câmara,
Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto
2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2000, p. 14.
[4] . Filme aqui apresentado na sua versão muda. Como se
viu, Berlim foi igualmente objecto
neste módulo de uma exibição com partitura sonora de D. J. Spooky. - Nota do
Autor.
[5] . Filme aqui apresentado na sua versão muda. Como se
viu, O Homem da Câmara de Filmar
com música ao vivo da Cinematic Orchestra inaugurou a Odisseia nas
Imagens. - Nota do Autor.
[9] . Cap. I – pp.
50-53.
[10] . Cap I – pp.
57-63.
[11] . Catálogo O Olhar de Ulisses I – O Homem e a Câmara,
Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto
2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2000, p. 15.
[14] . Catálogo O Olhar de Ulisses I – O Homem e a Câmara,
Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto
2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2000, p.
47-69.
[15] . Catálogo O Olhar de Ulisses I – O Homem e a Câmara,
Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto
2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2000, pp.
154-172.
5.5.2 Odisseia
nas Imagens II – O Som e a Fúria
Os programadores
de O Olhar de Ulisses no texto
introdutório de O Som e a Fúria voltam
a convocar Comolli e, também, Serge Daney. Citando Comolli, afirmam: “Para a
pergunta ‘O que é o documentário?’ a única resposta é a de André Bazin ‘O que é
o cinema’ [1]”?
Citando Daney:
“No mundo da
televisão, tendo a alteridade quase totalmente desaparecido, deixou de haver
bons ou maus procedimentos no que respeita à manipulação da imagem. Esta já não
é ‘imagem do outro’ mas imagens entre outras no mercado das imagens de marca. E
este mundo que já não me revolta, que só provoca em mim lassidão e inquietude,
e precisamente o mundo ‘sem cinema’. Quer dizer sem este sentimento de
pertencer à humanidade através de um país suplementar, chamado Cinema...E o cinema,
vejo bem porque o adoptei: para que ele me adopte por sua vez. Para que ele me
ensine a tocar com o olhar, infatigavelmente, a que distância de mim começa o
outro [2]”.
Qualquer das
citações é hiperbólica. Seja como for, são marcas de enunciação que permitem
situar o espaço no qual se ira mover O Olhar de Ulisses.
O ciclo decorreu
entre 17 e 24 de Setembro de 2000 tendo aberto com o chamado ciclo bretão de
Jean Epstein: Finis Terrae (1928), Mor
Vran (1929), L’Or des Mers (1931) e Le Tempestaire (1947), este último projectado numa sessão oficial
de abertura antes de As Vinhas da Ira (1940) de John Ford. Epstein, antigo assistente de Louis Delluc e
companheiro habitual de Blaise Cendrars, Abel Gance e Germaine Dulac, foi dos
primeiros a perceber a importância diegética do som e os seus filmes são todos
eles reveladores de um espírito experimental de forte densidade poética. Onde
isso aparece pela primeira vez com toda a evidência é em Mor Vran, filme que de algum modo antecipa em quatro anos O
Homem de Aran de Robert Flaherty. No plano
da História e Teoria do Documentário a sua obra é das primeiras a poderem ser
convocadas no sentido de debater abordagens onde o ficcional e o documental se
fundem. Durante muito tempo praticamente ignorado pelos seus compatriotas o seu
nome viria a ser recuperado em 1953, ano da sua morte, por Henri Langlois,
impondo-se, desde então, como um dos incontornáveis do cinema francês. O facto
de ter sido escolhido para abrir um ciclo historicamente dominado pelo
documentário politicamente engajado e pela propaganda, outra das tradições
relevadas por Paul Rotha, parece ter sido uma forma de alertar para outras
visões do mundo marginais às correntes então dominantes. Já o filme de John
Ford, baseado no romance homónimo de John Steinbeck sobre as consequências
sociais da Grande Depressão, se destinava a deixar uma marca da época
cronologicamente delimitada para O Som e a Fúria.
Nos dias 18 e 19
de Setembro manteve-se a dominante poética. Primeiro: A Terra (1930) de Aleksander Dovjenko, As Estações (1972) de Artavazd Pelechian, Trás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Cordeiro e Man
of Aran (1934) de Robert Flaherty seguido
de um recital de canto e música tradicional da Irlanda a cargo de Fergus Cahill
e Aonghus Lavelle. A seguir: O Vento (1928) de Victor Sjöström, A Corner in the Wheat (1909) de David Wark Grifriffith, um dos primeiros
filmes de ficção com um forte comentário social, Trop Tôt, Trop Tard (1980-81) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet,
acompanhados do seu inseparável engenheiro de som Louis Hochet, o que talvez
explique a afirmação de Serge Daney segundo a qual este é um dos raros filmes
que após o de Sjöström filmaram o vento, e The Edge of the World (1937) de Michael Powell, uma reconstrução de um
acontecimento real numa ilha cujos habitantes a foram abandonando à medida que
se foram apercebendo da impossibilidade de prosseguir o seu modo de vida. Sendo
óbvio o modo como estes filmes dialogam entre si, é igualmente óbvio que uma
tal selecção e organização justifica o artigo citado de João Bénard da Costa em
que ele pergunta porque razão se lhes há-de chamar documentários.
No dia 20
surgiram os primeiros exemplos dos documentários mais característicos da época.
A passagem, feita através de filmes experimentais de Len Lye para o movimento
criado por John Grierson no final dos anos 20 do século passado, incluia: Colour
Box (1935), Rainbow Dance (1936), Trade Tatoo (1937) e N or NW (1937). Seguiam-se três clássicos, todos eles
habitualmente considerados como sendo dos mais criativos produzidos no âmbito
do movimento documentarista britânico, nomeadamente devido à utilização
diegética do som: Coal Face
(1935) de Alberto Cavalcanti, Night Mail (1938) de Harry Watt e Basil Wright e Spare Times (1939) de Humphrey Jennings. Vinham depois três
filmes exemplares do cinema do New Deal Rooseveltiano: The Plow That Broke The Plains (1936) de Pare Lorentz, The River (1937) de Pare Lorentz e The Land (1942) de Robert Flaherty. A última sessão do dia
foi dedicada a Mr. Smith Goes to Washington (1939), uma obra mítica de Frank Capra sobre as
virtualidades da democracia americana e referência obrigatória quando se fala
da época do presidente Franklin Roosevelt.
As três sessões
do dia seguinte obedeciam ao seguinte alinhamento: L’Espoir-Espoir Sierra de
Teruel (1938) de André Malraux, The
Spanish Earth (1937) de Joris Ivens, Início (1967) de Atavazd Pelechian, Le
Dix-Septiéme Parallèle (1967) de Joris
Ivens, The 400 Millions (1939) de
Joris Ivens e Os Anjos da Avenida
(1937) de Yuan Mushi, filme chinês seleccionado provavelmente por ser
contemporâneo do filme anterior, igualmente localizado na China e revelador de
uma outra face desse imenso país.
A 22 e 23 de
Setembro a programação deu sequência lógica às propostas dos dois dias anteriores,
alinhando mais uma série de filmes obrigatórios em qualquer História do
Documentário e cruzando-os, a propósito, com obras de referência da História do
Cinema. As sessões do dia 22 principiaram com The Blitz Wolf (1942) de Tex Avery, uma hilariante animação
satirizando Hitler, seguido de O Triunfo da Vontade (1935) de Leni Riefensthal. Depois, dois filmes do
seriado de Frank Capra Why We Fight:
The Nazi Strike (1942) e The
Battle of Rússia (1943). O dia terminava
com To be or not to be (1942) de
Ernst Lubitsch, uma comédia montada em torno do nazismo. A 23, na sessão do
início da tarde, regressaram os filmes do movimento documentarista britânico: An
Airman Letter To His Mother (1941) de
Michael Powell, London Can Take It
(1940) de Humphrey Jennings e Harry Watt, Listen to Britain (1942) de Humphrey Jennings e Fires Were
Started (1943) também de Humphrey Jennings.
Depois duas curtas metragens canadianas de animação de Norman McLaren: V
For Victory (1941) e Keep Your
Mouth Shut (1944). A sessão a meio da tarde
era preenchida com Alemanha Ano Zero
(1947) de Roberto Rosselini e para a noite foram programados Histoire
du Soldat Inconnu (1932) de Henri Storck e Les
Carabiniers (1963) de Jean-Luc Godard.
Para o último
dia do ciclo estavam reservados para a primeira sessão Le Six Juin à L’Aube (1945) de Jean Grémillon e Nuit Et
Brouillard (1956) de Alain Resnais, para a
segunda Hiroshima Nagasaki: August 1945 (1945) de Akira Iwakasi e Erik Barnow – trata-se de um documentário de
16 minutos montado a partir das primeiras imagens filmadas logo após a explosão
das bombas atómicas, imagens essas que estiveram confiscadas durante cerca de
50 anos pelas autoridades americanas – e Hiroshima, Mon Amour (1958) de Alain Resnais, sendo a sessão da noite
dedicada a Manoel de Oliveira com O Pintor e a Cidade (1956) e Aniki Bóbó (1942).
No total, o
segundo episódio de O Olhar de Ulisses
mostrou 52 filmes, assim distribuídos em função da origem: Estados Unidos da
América – 13 (25,00%), Reino Unido – 13 (25,00%), França – 11 (21,15%), URSS
(incluindo a Arménia) – 3 (5,76%), Portugal – 3 (5,76%), Canadá – 2 (3,84%), Alemanha
– 1 (1,92%), Bélgica – 1 (1,92%), Itália – 1 (1,92%), China – 1 (1,92%), havendo
ainda a considerar três co-produções, uma Egipto/França – 1 (1,92%), outra França/Espanha
– 1 (1,92%) e uma terceira Japão/Estados Unidos – 1 (1,92%).
Tratando-se de
um conjunto de filmes que no plano da historicidade correspondem muitas vezes a
uma fase de transição não parece descabido procurar as tendências dominantes
através de uma leitura que convoca, em simultâneo, as categorias de Rotha e de
Nichols. Essa leitura cruzada, porém, não coincide inteiramente com o ponto de
vista de ambos os autores quando se referem a alguns dos filmes aqui nomeados,
o que é natural, uma vez que a sua inserção numa ou noutra tradição, num ou
noutro modo, dependem da interpretação.
Para efeito de
elucidação de um ponto de vista quanto à escolha dos documentários de O Som
e a Fúria, por razões semelhantes às
invocadas quanto ao módulo anterior, foram excluídas as seguintes obras: As
Vinhas da Ira, Sortie(s) des
Usines Lumière, The Wind, Corner in the Wheat, The Edge of the World, os quatro filmes de animação de Len Lye, Mr
Smith Góes To Washington, Os
Anjos da Avenida, a animação de Tex Avery, To
be or not to be, As duas animações de
Norman McLaren, Alemanha Ano Zero,
Les Carabiniers, Hiroshima,
mon Amour e Aniki Bóbó [3].
De acordo com a
tradição de Rotha, com todo o peso aleatório que a decisão possa comportar,
avança-se com a seguinte proposta de enquadramento dos filmes: tradição
romântica ou naturalista: o ciclo bretão de Jean Epstein, A Terra, O Homem de Aran, Coal Face, Night Mail e The
Land; tradição realista associada ao
experimentalismo: O ciclo bretão de Jean Epstein, A Terra, Coal Face, Night Mail, Spare
Time, Listen to Britain, Fires Were Started, The Plain That Broke the Plains, The River, L’Espoir e Spanish
Earth; tradição de newsreels: London Can Take It, The Plain That Broke the Plains, The River, os dois filmes de Frank Capra da série Why We Fight, Hiroshima Nagasaki: August 1945; tradição de propaganda: A Terra, Coal Face, Night Mail, Spare
Times, The Plain That Broke the Plains, The River, The
Land, L’ Espoir, The Spanish Earth, Paralelo 17, The 400 Millions, O
Triunfo da Vontade, os dois filmes de Frank
Capra da série Why We Fight, An
Airman Letter To His Mother, London
Can Take It, Listen to Britain e Fires Were Started.
Neste
enquadramento há dois aspectos a considerar: o primeiro o peso da tradição da propaganda,
o segundo o facto de a quase totalidade dos filmes se inscrever em, pelo menos
duas categorias, por vezes em três.
Vejamos o
primeiro. William Guynn entende que cada teoria do documentário transporta
consigo a marca do momento histórico durante o qual foi criada. Ora a época de O
Som e a Fúria foi justamente marcada pelo
fenómeno da convergência da expansão dos media, em particular a rádio e o cinema, com a propaganda.
Esta, porém, em boa medida devido ao exemplo do cinema soviético, não tinha,
como tivemos ocasião de verificar, o sentido que hoje lhe é atribuída, embora
se lhe reconhecesse o primado do valor instrumental. Daí a coabitação de filmes
tão diferentes quanto aqueles que estão inscritos nessa tradição. Acresce, tal
como aconteceu com o cinema soviético, que muitos dos filmes realizados nesse
âmbito não só tiveram uma componente experimental e vanguardista – por exemplo,
Coal Face, Night Mail, de certa forma os filmes de Pare Lorentz e L’Espoir, sem dúvida os de Humphrey Jennings e Spanish
Earth –, como também não esqueceram as
lições de Flaherty, cuja poética se fez sentir em filmes das mais diversas
origens e, nomeadamente, no movimento documentarista britânico.
Poderá
surpreender a colocação de The Plain That Broke the Plains e de The
River [4]
também na tradição de newsreels.
Contudo, quer um quer outro têm uma ordem expositiva e informativa que, ao
contrário, por exemplo, dos filmes de Flaherty, em relação aos quais não é
descabido falar em ficção do real, praticamente dispensa os sintagmas
narrativos [5]. Nesse
sentido, as imagens perdem autonomia face a uma voz que comanda. Em todo o
caso, importa não perder de vista o modo como deve contextualizar-se esta
tradição lembrando, por exemplo, a tentativa de alguns jornais cinematográficos
da época adoptarem os procedimentos da narrativa clássica que surgiu logo após
o advento do cinema sonoro.
Quanto ao
segundo aspecto, o enquadramento de um mesmo filme em mais de uma categoria, pode
ser interpretado, antes de mais, como uma forma de resistência dos filmes à
catalogação. É certo estarmos perante um conjunto de obras de referência do
cinema documental e, nesse sentido, a sua escolha é óbvia. Mas a essa escolha,
dada a complexidade de alguns desses filmes, também parece corresponder uma
opção não tanto pela desconstrução do óbvio, que existe, mas, sobretudo pela
ideia de colocar o debate sobre o cinema no centro das atenções, impressão reforçada
pela leitura da malha obtida através da tipologia de Nichols.
Com efeito, aplicando
a tipologia de Nichols – uma vez mais, alertando para a aleatoriedade do método
– e convocando os filmes não incluídos na tradição de Rotha obtém-se um quadro,
porventura mais claro da orientação programática: modo poético: ciclo bretão de
Jean Epstein, A Terra, As
Estações, O Homem de Aran, The Plain That Broke the Plains, The River, The Land, Trás-os-Montes, Coal Face, Night Mail, Spare
Time, Fires Were Started, O Início,
Le six Juin à L’Aube e An
Airman Letter To His Mother; modo
expositivo: The Plain That Broke the Plains, The River, The Spanish Earth, Paralelo
17, The 400 Millions, O Triunfo da Vontade (apesar da ausência de texto em off) os dois filmes de Frank Capra da série Why
We Fight, London Can Take It e Le six Juin à L’Aube; modo de observação: O Triunfo da Vontade; modo participativo: L’ Espoir, The Spanish Earth e Nuit et Brouillard; modo reflexivo: A Terra, Trás-os-Montes, As Estações, Trop
Tôt, Trop Tard, L’ Espoir, The Spanish Earth, Nuit et Brouillard e O Pintor e a Cidade; modo performativo: Listen to Britain e Nuit et Brouillard.
A preferência dada
às vozes mais poéticas e aos modos mais complexos – mesmo os filmes inscritos
no modo expositivo são bastante mais sofisticados no plano da narrativa do que
o lugar que lhes foi destinado poderia levar a pensar –, bem como a organização
dos filmes através de uma montagem que faz ressaltar os seus elementos significantes,
problematizando a linguagem, apontam no sentido da explicitação da ideia de
documentário contida na citação inicial de Serge Daney. Sendo assim, a articulação
das obras é duplamente relevante, pois permite, por um lado, uma certa
continuidade temática, por vezes, privilegiando o confronto – o choque de
elementos de sinal contrário, como diria Eisenstein – e, por outro, valoriza
uma concepção depurada do cinema, particularmente evidente nas derivas
ficcionais.
Postas as coisas
desta maneira, resta um problema: “Para a pergunta ‘O que é o documentário?’ a
única resposta é a de André Bazin ‘O que é o cinema ” ? Questão: a citação de Comolli
deve ser levada à letra? Alguma vez dela se fez prova? Ou tratar-se-á de um
aforismo? Ou, ainda, pensando em Daney, será que há uma escatologia do cinema?
Na Teologia, essa doutrina estuda os fins últimos do homem, interroga-se sobre
o fim do mundo e convoca o Juízo Final...
A importância da
matriz cinematográfica, com todas as consequências daí decorrentes para o
olhar, é um dado adquirido na História do Documentário, mas esta nem é
necessariamente coincidente com a História do Cinema nem evita leituras
transversais. De um modo geral, as publicações sobre a História do Cinema são,
aliás, como já se fez notar, parcas a respeito do documentário, cuja presença é
sempre marginal. Por isso, e por ter sido necessário dar resposta a questões
até então sem resposta, ganharam autonomia a História e a Teoria do
Documentário, multiplicando-se os estudos nesses domínios em relação aos quais as
abordagens obedecem a preocupações diversificadas e contraditórias, divergindo,
com frequência, os seus protagonistas.
Contudo, é justamente
dessa diversidade que irradia a energia do documentário, como, de resto, aconteceu
na fase cronológica de referência de O Som e a Fúria [6].
Naturalmente aos programadores compete proceder a uma exegese, de acordo com determinadas
opções, por forma a encontrar uma linha de coerência assumida como denominador
comum da programação e, nesse sentido, apenas deve relevar-se a excelência da
generalidade dos filmes.
As opções do
catálogo, desta vez com 348 páginas, levantam, porém, algumas interrogações. Verifica-se,
com efeito, que o único texto apresentado sobre o GPO é da autoria de Langlois
e foi publicado nos Cahiers du Cinema em Junho de 1966. Tem, evidentemente,
valor histórico, mas depois da revisão crítica desenvolvida pelos
investigadores e cineastas de língua inglesa, acaba por apresentar uma visão
desajustada do movimento documentarista britânico. Não há nenhum texto de John
Grierson, quando se sabe dele terem partido as primeiras reflexões teóricas em
torno de um movimento sistematizado e operativo. Tão pouco de Paul Rotha. Aparecem
apenas dois textos de origem anglo-saxónica, um retirado da autobiografia de
Michael Powell a propósito de The Edge of the World e outro de James Agee a propósito de L’Espoir, publicado em 1947. Em relação aos documentários
ingleses há uma curta recensão crítica sobre os filmes de Humphrey Jennings da
autoria de Alberto Seixas Santos e sobre os filmes de Pare Lorentz há apenas um
texto de José Manuel Costa de 1982. Em contrapartida, a propósito de Trás-os
Montes há textos de Serge Daney, Rodrigues
da Silva, Joris Ivens, Jean Rouch, Serge Meurant e ainda uma conversa de
António Reis com Serge Daney e Jean-Pierre Oudart. Les Carabiniers conta com apontamentos de Gerard Collas, Jean-Luc
Godard, Paul Vecchiali e Regina Guimarães e O Vento de Miguel de Castro Henriques, Saguenail, Manuel
Cintra Ferreira e João Bénard da Costa. Man of Aran é igualmente objecto de uma mão cheia de
referências. Parece, portanto, haver um certo desequilíbrio na abordagem das
questões, deixando de fora matérias que poderiam esclarecer melhor o debate em
torno do documentário, tanto mais que esse debate, historicamente, principiou
justamente durante o período de referência deste módulo.
O catálogo
contou com 21 textos originais (sendo o dobro o número de reedições) e apesar
das reservas apontadas não deixa, pontualmente, de dar corpo a estimulantes reflexões
sobre o cinema e o documentário do nosso tempo. Nesse sentido são especialmente
relevantes as conversas de Manoel de Oliveira com Antoine de Baecque e de
António Reis com Serge Daney e Jean-Pierre Oudart publicada nos Cahiers du
Cinema nº 276 de Maio de 1977.
[1] . Catálogo O Olhar de Ulisses II – O Som e a Fúria,
Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto
2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2000, p.
12. .
[2] . Catálogo O Olhar de Ulisses II – O Som e a Fúria,
Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto
2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2000, p
13. .
[3] . Não quer isto dizer que estes filmes não tenham sido
determinantes no sentido de conferir coerência ao conjunto da programação,
simplesmente, de momento, procede-se apenas à avaliação dos documentários. - Nota
do Autor.
[6] . Ver as referências a John Grierson e ao movimento
documentarista britânico no Cap. III – pp. 186-206.
5.5.3 Odisseia
nas Imagens III – Apocalípticos e Integrados - A Utopia do Real
No texto
introdutório do catálogo do episódio seguinte de O Olhar de Ulisses, designado A Utopia do Real retoma-se uma frase de António Reis de há um quarto
de século: “o cinema é um caso de vida ou de morte”. Evoca-se a circunstância
do ciclo coincidir com “o cinquentenário da fundação de uma revista – Cahiers
du Cinema – criada por André Bazin – que marcou profundamente a evolução do
cinema e o acompanhou no seu devir durante as décadas seguintes [1]”.
E assume-se – fazendo lembrar, de novo, Serge Daney – que desde que o mesmo
Bazin viu o cinema como “uma janela aberta para o mundo” o cinema dominante
“tem vindo a manifestar uma assustadora tendência para se transformar num jogo de
vídeo em grande ecrã enquanto o ecrã de televisão toma cada vez mais a forma de
um buraco de fechadura [2]”.
Razão bastante para anunciar:
“Nesse contexto,
o quarto e último acto de O Olhar de Ulisses, em Outubro de 2001, esforçar-se-á
por construir redes de relação e leitura entre os filmes - faróis da história
do cinema, pontos de referência indispensáveis, e as obras contemporâneas que teimam
em respeitar quem as vê. A esse derradeiro andamento só podíamos por isso dar o
título de RESISTÊNCIA [3]”.
Desta vez o
catálogo tem 441 páginas e comporta 86 textos, nos quais não estão incluídos
nem os textos introdutórios, nem os textos respeitantes ao ciclo Imagens da
Ciência de Jean-Michel Arnold e Annick
Demeule. Desses 86 textos 48 (55,81%) são de origem francófona, 25 são
originais e os restantes reedições com origem fundamentalmente nas folhas e
catálogos da Cinemateca Portuguesa, nos Cahiers do Cinema e na revista Trafic –
foi a partir dela, recorde-se, que Serge Daney pretendeu lançar o seu projecto
justamente designado Resistência.
O ciclo decorreu
entre 15 e 22 de Março de 2001, mas, desta vez, convivendo com um leque de
iniciativas obedecendo ao diálogo multidisciplinar previsto desde o início pela
Odisseia nas Imagens, cuja sessão
inaugural ocorreu a 14 de Março com a exposição dos fotógrafos da Magnum sobre
a rodagem de Misfits e logo no
dia seguinte contou, no espaço onde iria decorrer O Olhar de Ulisses, com um conjunto de masterclasses centrado nos Lugares da Imagem [4].
Em relação aos episódios anteriores este ganha em imprevisibilidade, não só porque
reforça o desalinhamento face à História do Documentário, mas também porque
obedece a um princípio de montagem onde são mais intensos os contrastes na
criação de ambientes e mais complexas as relações estabelecidas pelos filmes
entre si de sessão para sessão.
A Utopia do Real começou com Farrebique (1946) de Georges Rouquier, passou para Les Inconnus de la Terre (1961) de Mario Ruspoli, considerado o pioneiro do cinema directo na Europa, centrou-se em La Terra Trema (1948) de Luchino Visconti, fez a estreia de Cinema (2001) de Fernando Lopes e fechou o primeiro dia com O Desprezo (1963) de Jean-Godard. O filme de Rouquier, um admirador de Flaherty, mostra a vida no campo através de uma leitura lírica e descontextualizada – não há nele sinais do tempo, por exemplo, da guerra cujo epílogo se tinha acabado de verificar – proporcionando uma visão poética onde actores não profissionais, a família de Farrebique, desempenham os seus próprios papeis na vida real, mas com plena consciência de estarem a representar.
A questão dos
actores e a forma como a presença da câmara afecta os seus desempenhos é,
aliás, transversal a todo o ciclo. Sucede com o filme de Ruspoli sobre os
camponeses de Larzac, em relação aos quais a proximidade da câmara permite
revelar na paisagem dos rostos o impasse a que os conduziu a sua condição e,
claro, também com o filme de Visconti, obra obrigatória do neo-realismo
italiano. O filme de Fernando Lopes – o realizador classificou-o como uma
litania – é uma celebração do cinema de alguma forma reiterada (e
problematizada) no filme de Godard onde Fritz Lang se representa a si mesmo enquanto
realizador de um filme chamado Odisseia
– magnífica alegoria: um poeta cego revisto por um cineasta com um só olho –,
cujo produtor, o americano Jack Palance surge como intérprete de uma lógica
industrial simultaneamente ambígua e pragmática, ameaçadora e estimulante.
As sessões do
dia seguinte começaram com Georges Franju: Le Sang des Bêtes (1948), sobre os matadouros de Paris, Hotel
des Invalides (1951), uma subtil crítica
anti-militarista a propósito de uma visita guiada ao museu de guerra com texto
dito pelo mais irreverente dos actores franceses, Michel Simon, e Os
Olhos sem Rosto (1959) uma inquietante obra
prima do cinema fantástico onde o medo e o belo estão sempre presentes e em
confronto na escala das emoções inerentes à natureza humana. Franju, apesar de
ter colaborado com Langlois na criação da Cinemateca Francesa, foi sempre um
cineasta marginal, nunca se tendo identificado com a nouvelle vague. Fez 13 curtas metragens. Tal como aconteceu com
muitos dos cineastas do pós-guerra, nomeadamente aqueles que integraram o Grupo
dos 30, trabalhou por encomenda, mas conseguiu sempre transmitir o seu ponto de
vista. Nos seus filmes, particularmente em Les Sang des Bêtes, as imagens parecem escapar ao real elevando-se a um
plano pictórico quase surreal. A narração faz lembrar a de Las Hurdes de Buñuel.
Na sessão
intermédia verificou-se o regresso de Flaherty com Louisiana Story (1948), provavelmente o mais complexo dos seus
filmes, seguido de uma incursão no cinema de cunho documental de Abbas
Kiarostami com Onde fica a casa do meu amigo (1987).
Qualquer dos filmes tem como protagonistas dois rapazinhos e o sentido
de uma aprendizagem que pode ser feita independentemente de quem é suposto
ensinar. Na última sessão, uma montagem de filmes com enfoque nas relações dos
homens entre si e dos homens com a natureza: A Caça (1963) de Manoel de Oliveira, Os
Habitantes (1970) de Artavazd Pelechian e a
Floresta Interdita (1958) de
Nicholas Ray.
No dia 17, a cada
uma das sessões correspondeu apenas um filme e o ciclo propôs três modos de
olhar a Índia – correspondentes a outros tantos modos de olhar o outro –
através de três clássicos da cinematografia universal: o documentário de
Rosselini, Índia Matri Bhumi (1958),
filme charneira da obra do realizador com uma estrutura narrativa de algum modo
semelhante a Paisà (1946) e que
antecipa o seu trabalho para a televisão, O Rio Sagrado (1951) de Jean Renoir e a Balada da
Estrada (1955) de Satyajit Ray, seguido de
um concerto de música indiana pelos Bauls de Bengala [5].
Não foi ainda no
quarto dia de A Utopia do Real que se
anunciaram os filmes, em princípio, mais previsíveis tendo em conta o espaço
cronológico convocado. Pelo contrário, o programa seguiu a via experimental,
colocando o problema da criação artística e estabelecendo pontes com outros
filmes já exibidos ou a exibir. Assim: Jaime (1974) de António Reis, sobre um doente
esquizofrénico que ao cabo de 30 anos de internamento começou a pintar e
escrever compulsivamente, e depois dois filmes de Jean Daniel Pollet, Le
Horla (1966) e L’Ordre (1973), cujo denominador comum remete tanto para um
sentimento de exclusão por parte dos protagonistas quanto para a consciência
crítica de uma narrativa da qual se exclui qualquer discurso convencional,
sendo que o último filme coloca um leproso, Raimondakis – cujo rosto deformado
faz lembrar as gloriosas ruínas do mundo clássico recorrentemente filmadas por
Pollet – a interpelar o espectador, cúmplice de uma ordem que exclui. Sessão
intermédia: Méditerrannée (1963) de
Jean Daniel Pollet e um singular Al Mummia (1969), única longa metragem de um discípulo de Rosselini, o egípcio
Chadi Abdel As-Salam. Sobre o primeiro filme o realizador e Gerard Leblanc
afirmam: “Trata-se de uma série de imagens captadas durante um ‘itinerário
mediterrânico’ com a única preocupação de que cada imagem mostre, signifique,
apenas uma coisa, uma só ideia de modo a ser uitilizada como uma palavra (que
apenas adquire um significado definitivo em função do lugar que vai ocupar numa
frase) [6]”.
Finalmente: Le Mystère Picasso
(1956) de Henri-Georges Clouzot sobre o método de criação do pintor e as
sucessivas metamorfoses da sua pintura, e Un Monde Agité (2000) do escritor, fotógrafo e cineasta francês Alain
Fleischer sobre o cinema da Belle Époque a partir de uma colagem de imagens de
124 filmes feitos entre 1900 e 1920. O catálogo de A Utopia do Real dedica a este último bloco de filmes 80 páginas com
textos de João Bénard da Costa, Manuel Hermínio Monteiro, José Manuel Costa,
João César Monteiro, António Reis e João César Monteiro, Jean-Luc Godard,
Jean-Daniel Pollet, Philipe Solers (autor do texto de Méditerrannée), Gerard Leblanc, Dominique Païni, André Bazin,
Saguenail e José Navarro de Andrade, o que permite atribuir-lhe um lugar
charneira no contexto do ciclo.
Em
contrapartida, ao Free Cinema, apesar de
se tratar de um movimento essencial para o entendimento do documentário
contemporâneo, nomeadamente devido à crítica das posições reformistas de John
Grierson, ao radicalismo formal e político e à liberdade de observação
concedida às câmaras de filmar de 16mm, são dedicadas apenas três páginas, duas
das quais apenas com ilustrações e uma com um texto não assinado. Do Free
Cinema foram mostrados, na primeira sessão
do dia 19 de Setembro, O Dreamland
(1953) de Lindsay Anderson, Nice Time (1958) de Alain Tanner e Claude Goretta e We are the Lambeth
boys (1958) de Karel Reisz. A estes filmes juntou-se
On the Bowery (1957) de Lionel
Rogosin sobre essa rua de Nova Iorque onde costumava reunir-se a escória humana
da cidade.
O primeiro
estreou juntamente com Shadows (1959) de
John Cassavetes e é uma espécie de home video passado num apartamento da Bowery onde o senhorio,
um funcionário dos caminhos de ferro, é surpreendido pela visita de um bispo, sentindo-se
embaraçado com a presença dos seus amigos boémios. Estes são figuras tutelares
de beat generation como Allen
Gingsberg, Gregory Corso, Peter Orlovsky. Delphine Seyrig aparece aqui no seu
primeiro papel. O filme tem narração de Jack Kerouac. Durante anos, à
semelhança, aliás, do que aconteceu com Shadows (1959), instalou-se a ideia do filme ter sido
totalmente improvisado. Da narração de Kerouack, dando voz a todas as
personagens, correu a versão de ter sido absolutamente espontânea. Contudo, em
Novembro de 1968, num artigo da Village Voice, Alfred Leslie revelou tudo ter
sido pensado e encenado ao pormenor, “tal como um filme de Hitchcock”.
The
Connection, por sua vez, recria
cinematicamente uma peça de Jack Gelber para o Living Theatre. O nome de
Shirley Clarke, uma bailarina que trabalhou com Martha Graham e Doris Humphrey,
está associado ao cinema de vanguarda americano e a nomes como os de Stan
Brakhage e Maya Deren. No início dos anos 60 fundou com Jonas Mekas a
Filmmakers Cooperative e, mais tarde, dedicou-se à coreografia das imagens e ao
vídeo experimental dando corpo ao T.P. Videospace Groupe. O seu filme mostra um
grupo de junkies que aguarda a
chegada do elemento de ligação da droga, mas enquanto isso acontece vão sendo
desmontados os mecanismos de um outro filme que supostamente está a ser feito a
propósito dessa espera e cujo realizador, na sua tentativa de encontrar “the
man behind the man” acaba, ele próprio, por drogar-se. Para a última sessão,
integrando-se coerentemente na atmosfera cinéfila do dia, estava reservado Belarmino (1964) de Fernando Lopes.
O dia 20 de
Março começou por acolher outro admirador de Robert Flaherty, o italiano
Vittorio de Seta – Martin Scorcese disse ver na sua obra a essência do cinema –,
com dois filmes trazendo de volta os camponeses e o mundo rural: Pastor di
Orgoloso (1958), sobre o quotidiano dos
pastores da Sicília e o poderoso Banditi a Orgoloso (1961), a história de um pastor injustamente acusado
de roubo e perseguido, juntamente com um irmão mais novo, na paisagem agreste
das montanhas da Sardenha, como se esse fosse o seu destimo inelutável.
Seguiram-se Les Hommes de la Baleine
(1956) de Mario Ruspoli, um filme sobre a caça à baleia nos Açores que teve a
colaboração de Chris Marker e o incontornável Pour La Suite du Monde (1963) de Pierre Perrault e Michel Brault. A última
sessão programou três filmes portugueses: O Senhor (1965) de António Campos, A Invenção do
Amor (1965) igualmente de António Campos e
uma obra fulcral do novo cinema português Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha.
A 21 de Março
surgiu finalmente o confronto direct cinema
- cinema vérité (o catálogo não
faz qualquer referência a essa controvérsia) com algumas, poucas, das suas
obras mais representativas. A primeira sessão, que contou com a presença de
Albert Maysles: Primary (1960) dos
Drew Associates, seguindo-se dois filmes de propósito social de Santiago
Alvarez, Now (1956) e LBJ (1967) e, finalmente, Salesman (1969) dos irmãos Maysles e Charlotte Zwerin. A meio
da tarde, três filmes franceses: Du Côté de la Côte (1958) de Agnes Varda, Blue Jeans (1958) de Jacques Rozier e o filme pioneiro do cinema-vérité de Jean Rouch e Edgar Morin Chronique d’un
Été (1960). À noite Mário Ruspoli
regressava com Regards sur la Folie
(1962) em complemento do controverso Titicut Follies (1967) de Frederick Wiseman.
O último dia de A
Utopia do Real: Les Statues
meurent aussi (1953) de Alain Resnais e
Chris Marker, Moi, un Noir (1957)
de Jean Rouch e Paris vu par…episódio
Montparnasse-Levallois (1965) de Jean-Luc Godard ; Vilarinho das
Furnas (1970) de António Reis e Nós (1967) de Artavazd Pelechian; Les Maîtres
Fous (1954) de Jean Rouch e O
Acto da Primavera (1962) de Manoel de
Oliveira.
No total, o
terceiro episódio de O Olhar de Ulisses,
excluindo as Imagens da Ciência,
ciclo onde, aliás, apareceram alguns documentários feitos para a televisão [7],
mostrou 53 filmes, assim distribuídos em função da origem: França – 21 (39,62%),
Portugal – 9 (16,98%), Estados Unidos da América – 9 (16,98%), Reino Unido – 3
(5,66%), Itália – 3 (5,66%), URSS (incluindo a Arménia) – 2 (3,77%), Cuba – 2
(3,77%), Canadá – 1 (1,88%), Irão – 1 (1,88%), Índia – 1 (188%), Egipto – 1 (1,88%).
A percentagem do
cinema francês confirma os propósitos do texto introdutório e num episódio
cronológicamente marcado não apenas pela nouvelle vague, mas também pelo novo cinema português, constata-se
a presença de 56% de filmes de ambos os países. Em contrapartida, apesar de presentes,
pouca relevância é dada ao cinema directo americano e ao documentário do
Quebeque, o que, aliás, se reflecte nos textos do catálogo, e passa-se ao lado
da produção documental americana mais politizada – a ausência de Emile de Antonio
será, porventura, a mais notória. Do mesmo modo, não há referência às experiências
cinematográficas encetadas em função da televisão das quais, uma das mais interessantes
foi, certamente, Candid Eye, no
Canadá.
Voltando a
Nichols, a maioria dos filmes é suficientemente singular para escapar a qualquer
tentativa de catalogação.
Procedendo de
forma idêntica à dos episódios anteriores, excluímos: La Terra Trema, O Desprezo, Onde Fica a Casa do Meu Amigo, A Floresta Interdita, O
Rio Sagrado, A Balada da Estrada, Al Mummia e Mudar de Vida.
Contudo, neste conjunto há filmes de cunho marcadamente documental,
nomeadamente os de Visconti, Kiarostami e Paulo Rocha. De resto, parece ser
evidente neste episódio de O Olhar de Ulisses, a par do problema dos actores, uma tendência para
debater, no plano das narrativas, a dicotomia ficção/documentário.
Os restantes
filmes foram alinhados do seguinte modo em função de uma interpretação que
apenas procurou identificar tendências dominantes: modo poético: Farrebique, Les Inconnus de la Terre, Louisiana Story, Les Hommes de la Baleine, Pour la Suíte du Monde, Pastor di Orgoloso, Banditi a Orgoloso, Vilarinho das Furnas e O Acto da Primavera; modo expositivo: Le Sang des Bêtes, Hotel
des Invalides, Now e LBJ;
modo de observação: Les Inconnus de la Terre, Nice Time, O Dreamland,
Pour la Suite du Monde, Primary, Salesman,
Regard Sur La Folie e Titicut
Folies ; modo participativo: L’Ordre, Pull my Daisy, The Conncetion e Chronique d’un Été ; modo reflexivo: Cinema, A Caça,
Índia, Jaime, Le Horla,
Méditerrannée, Du Coté
de la Côte, Blue Jeans, O Senhor,
A Invenção do Amor, Les
Statues meurent aussi, Moi, un
Noir, Paris vu par… e Les Maîtres Fous : modo performativo: Le Sang des Bêtes,
Hotel des Invalides, Nice Time, O
Dreamland, We are the Lambeth
Boys, Os Habitantes, L’Ordre,
Le Mystère Picasso, Un
Monde Agité, On The Bowery, Belarmino e Pull My Daisy.
De novo, a
maioria dos filmes cabe em mais de uma categoria e, em rigor, a maioria deles
tem um pouco de todas elas. Por exemplo, mesmo considerando Le Sang des
Bêtes um documentário expositivo, como faz
Nichols, é evidente que o filme de Franju suscita inúmeras questões e tem
ressonância muito para além da mera exposição. Invocando Plantinga há um
predomínio claro da voz aberta no
conjunto dos filmes. As tendências dominantes consolidam, aliás, a impressão
recolhida dos módulos anteriores: a aposta num tipo de documentário
essencialmente inscrito no âmbito do cinema de arte e ensaio.
Por essa razão,
se neste módulo se impõe uma perspectiva essencialmente informada pela crítica
hiperbólica dos Cahiers du Cinema dos anos 50/ 60 – excepção feita à sua
vertente maoísta – e pela política do gosto a ela associada, o seguinte teria
de ser construído à maneira de uma trincheira, a partir da qual, esgrimindo argumentos
conhecidos e recorrentes, se defende um ponto de vista tido como indiscutível.
[1] . Catálogo O Olhar de Ulisses III – A Utopia do Real,
Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto
2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2001, p.
11.
[4] . Na verdade, a Odisseia nas Imagens, enquanto programação
oficial da Capital Europeia da Cultura no ano de 2001, principiou em Fevereiro
com o Fantasporto. Contudo, foi só a 14 de Março que começou a sua programação
própria a que aqui se faz referência. - Nota do Autor.
[6] . Catálogo O Olhar de Ulisses III – A Utopia do Real,
Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto
2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2001, p.
191.
[7] . O
Festival da Torre Eiffel Image & Science, à frente do qual esteve muito
tempo Jean-Michel Arnold, procura, nomeadamente, sensibilizar os operadores de
televisão para as questões relacionadas com a Ciência. Daí a presença regular
do documentário de televisão. Neste ciclo das Imagens da Ciência foram exibidos
alguns: O Coração entregou a Alma ao Criador (1994) de Jean François Dars e Anne Papillaut, SOS
Pulgas (1997) de Thierry Berrod, O
Enigma das Nascas (1999) de Thierry
Ragobert, Mida’s Formula (2000) de
Malcom Clark e No ano passado choveu na segunda-feira (2000) de Lasse Berg e Anderd Ribbsjö. - Nota do
Autor.
5.5.4 Odisseia
nas Imagens IV – Como
Salvar o Capitalismo/ Outras paisagens
- Resistência
O último
episódio de O Olhar de Ulisses - Resistência – foi aquele em que de uma forma mais incisiva se
fez uma abordagem do cinema problematizando o próprio cinema em função de
postulados coerentes com a linha programática assumida. Construído como
corolário do episódio anterior, a propósito deste módulo afirmavam os
programadores:
“O motor daquilo
que nos moveu ao longo destes dois anos pode ser perfeitamente ilustrado por
esta citação de Ezra Pound que abria o primeiro número da revista Trafic,
fundada por Serge Daney, e que agora retomamos: Aquilo que amas permanece/ O
resto é inútil/ Aquilo que amas não te será retirado/ Aquilo que amas é a tua
verdadeira herança/ a quem pertence o mundo, a mim, a eles,/ ou não é de
ninguém?/ Primeiro foi o visível, depois o palpável,/ Eliseu, aconteça o que
acontecer no átrio do inferno,/ Aquilo que amas é a tua verdadeira herança/
Aquilo que amas não te será retirado [1]”.
Sobre os filmes
respeitantes ao último episódio afirma-se que “os cruzamentos e montagens que
propomos, irão permitir, esperamos, continuar a descoberta dessa ‘verdadeira
herança’ que ficará para sempre. Johnny Guitar fazendo eco com JLG/JLG,
Route One USA com Young
Mister Lincoln, Stalker com La Jetée... e de La Jetée às
interrogações sobre o estatuto da imagem de Mort à Vignole e Sans Soleil [2]”.
A estas palavras do seu texto intodutório os programadores acrescentam ter sido este o módulo “que mais nos custou fazer” devido “à ausência dos filmes de que gostamos e não podemos apresentar”, embora “nomear alguns, que chegaram a fazer parte desta programação e que por razões diversas e misteriosas não vão aparecer nesta versão final (...), talvez possa aliviar esse peso [3]”.
São, em seguida,
apontados os títulos de filmes e de autores que ficaram de fora, bem como
algumas hipóteses de combinações programáticas, reiterando-se o respeito pelo
espectador em nome do qual o ciclo foi organizado – cita-se, apropósito uma
passagem de uma das conversas de Antoine de Baecque e Jacques Parsi com Manoel
de Oliveira: “O espectador é indispensável à obra de arte” – e termina-se,
agradecendo a todos os colaboradores, invocando Godard a propósito das pessoas
que fazem parte, “não dos que habitam o cinema, mas dos que são habitados por
ele”.
Resistência decorreu de 26 de Outubro a 2 de Novembro de 2001 –
desta vez num contexto que antecipava já o figurino global pretendido para a Odisseia
nas Imagens, convivendo, portanto, com uma
grande diversidade de iniciativas de âmbito cinematográfico, audiovisual e
multimédia – e exibiu 45 filmes, assim distribuídos segundo a sua origem: França 18
(40%), URSS (incluindo Arménia e Cazaquistão) 6 (13,33%), Estados Unidos 4
(8,88%), Itália 3 (6,66%), Portugal 2 (4,44%), Holanda 2 (4,44%), Japão 2
(4,44%), Suíça 1 (2,22%), Brasil 1 (2,22%), Irão 1 (2,22%), Dinamarca 1
(2,22%), Bélgica 1 (2,22%), Portugal/França 1 (2,22%), Portugal/ Itália 1
(2,22%), Bélgica/França 1 (2,22%).
No catálogo de
398 páginas há 67 textos, dos quais 36 (53,73%) da responsabilidade de autores
francófonos – Serge Daney assina sete – e 28 de autores portugeses (41,79%). No
conjunto dos textos há 38 reedições, na sua maioria das folhas da Cinemateca
Portuguesa e dos Cahiers do Cinema, mas também de outras publicações,
nomeadamente da Cinemateca Francesa, Vertigo, Positif, Trafic, Libération e
Expresso. A palavra resistência e o verbo resistir são de utilização recorrente
na maioria dos textos originais. Por exemplo, no título do artigo de Pedro
Eiras sobre Dodes’ Kaden aparece o verbo
resistir, Saguenail fala de resistência ao cinema mainstream a propósito de O Dia da Estreia de Close-Up e António A. Rodrigues, referindo-se a Barres, considera tratar-se de um filme que transforma um
gesto banal e quotidiano – a tentativa daqueles que procuram não pagar bilhete
no metro de Paris – numa história de resistência. Os exemplos poderiam multiplicar-se,
parecendo inserir-se num contexto reactivo ao mundo mediático mostrado em Guy
Debord Son Art, Son Temps.
No dia 26 de
Outubro Resistência abriu com um
conjunto de filmes nos quais as cidades ocupam um lugar preponderante e são
vistas através do modo como delas se apropriaram os seus realizadores. O modo,
em si mesmo, revela os dilemas e as soluções dos cineastas. Por exemplo, o
filme de abertura, Roma (1972) de
Federico Fellini, confronta o presente com a memória do passado. Sendo de traço
autobiográfico, recorre à encenação ficcionada para evocar a infância e a
juventude, mas aparenta ser de carácter documental quando vemos Fellini a
filmar a sua cidade – literalmente a sua cidade, tal como ele a vê e não a Roma
que quem quer que seja possa ter na cabeça. Na sessão seguinte, três filmes,
duas curtas metragens e uma longa metragem: Marseille Vieux Port (1929) de László Moholy-Nagi, uma aventura
experimental de 9 minutos, filmada com uma câmara amadora, na linha das
sinfonias das cidades, Lettre à Freddy Buache (1981) de Jean-Luc Godard, com 12 minutos, uma
declaração sobre a urgência do olhar cinematográfico mais do que uma declaração
de intenções para filmar Lausanne como, oblíquamente, Godard sugere e Lola (1961) o primeiro filme de Jacques Démy sendo Nantes,
obviamente, a sua cidade. Na última sessão, passou, primeiro, A Ilha
das Flores (1989) de Jorge Furtado, um
curto documentário lançando metaforicamente um olhar irónico e, por vezes
sarcástico, sobre a sociedade capitalista e, depois, a obra-prima de Akira
Kurosawa Dodes’ Kaden (1970).
No dia seguinte,
a primeira sessão juntou a curta metragem de Nanni Moretti O Dia da Estreia
de Close Up (1996), na qual se denuncia o
imperialismo cultural comparando os números de espectadores dos blockbusters americanos nos cinemas de Roma com os do filme do cineasta
iraniano, e Close Up (1990) de
Abbas Kiorastami, mais uma incursão – e das mais originais – no mundo dos
mecanismos do cinema, desta vez num registo predominantemente documental ou
paradocumental. Preocupações semelhantes são detectáveis no primeiro filme da
segunda sessão, Quem Espera por Sapatos de Defunto, Morre Descalço (1971) de João César Monteiro, cujo enredo serve de pretexto para reflectir sobre os
movimentos interiores da linguagem fílmica, e de algum modo, também, no filme
seguinte, À Beira Do Mar Azul (1936) de Boris Barnet, cineasta soviético de soluções
narrativas imprevisíveis e de acentuado pendor poético.
No dia 28, a
primeira sessão da tarde foi preenchida por Jeunes Lumières (1995) de Nathalie Bourgeois e Pickpocket (1959) de Robert Bresson. O primeiro, à semelhança
de outros filmes produzidos no âmbito do centenário do cinema, é uma proposta
de reflexão sobre o acto fundador do olhar contido nas imagems em movimento.
Essa mesma impressão é comum ao filme de Bresson, obra aberta cujo jogo se
situa simultaneamente no plano do real e das aparências, afinal corente com o pensamento
de um cineasta que afirmava que “o cinematógrafo é a arte de não mostrar nada”.
Concentrando igualmente a energia em narrativas tão rigorosas quanto despojadas
e intensas são Gertrud (1964) de
Carl Dreyr, programado para a segunda sessão, e os dois filmes da última sessão,
Où Git Votre Sourire Enfoui
(2001) de Pedro Costa, cujos protagonistas Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
são os autores do último filme do dia Sicília! (1999).
No dia 29, foram
programados três filmes para a sessão o início da tarde: Torre Bela (1978) de Thomas Harlan, uma das obras mais
representativos da Revolução de Abril que tratando da ocupação de uma herdade
rural é muito mais do que isso porque expõe de forma comovente a busca caótica
e ingénua de uma nova forma de organizar a vida social, L’Ambassade (1973) de Chris Marker, invocação do golpe militar
de Pinochet mostrando um grupo de pessoas supostamente refugiadas numa
embaixada onde ao fim de algum tempo começam a reproduzir as divergências
políticas da esquerda durante o governo da Frente Popular de Allende – na
verdade, o filme foi rodado num apartamento em Paris –, e Guy Debord
Son Art, Son Temps (1994) de Guy Debord e
Brigitte Cornand, filme testamento do autor de A Sociedade do
Espectáculo dividido em duas partes: Son
Art, uma breve evocação das suas
experiências cinematográficas e Son Temps, um violento libelo, alíás, logo anunciado num cartão introdutório, contra
a televisão, a qual deixou de proporcionar uma imagem do mundo para se
metamorfosear no mundo ele próprio, feito de irrisão, simulacros e vacuidade. Na
sessão intermédia foram apresentados dois filmes de Luc Moullet, ambos lidando
com aspectos do quotidiano e programados como contraponto aos procedimentos
televisisvos: Barres (1984) não
tem diálogos, serve-se do som diegético e utiliza intertítulos para dar uma
versão divertida do conflito entre aqueles que pretendendem viajar sem bilhete
e os fiscais do metro de Paris, e Génèse d’un Repas (1979) que recuperando alguns traços do cinema
militante associado ao Maio de 68, procede, através de um dispositivo
aparentemente semelhante ao da reportagem televisiva, mas na verdade muito
diferente, à explicitação da rede de relações desiguais contida no itinerário
do ovo, do atum e da banana até chegarem à mesa da refeição do próprio
cineasta. A sessão da noite reuniu três ensaios cinematográficos: Cézanne-Conversation avec Joachin Gasquet (1989) de Straub/ Huillet tem mais a ver com o
universo conceptual e estético da dupla de cineastas – que dão voz aos diálogos
e recorrem a excertos de Madame Bovary de Jean Renoir e a um segmento do seu próprio Der Tod des
Empedokles – do que com a pintura de Césanne,
cujos quadros são mostrados através de longas exposições e evitando a
fragmentação dos elementos icónicos; Basse (1964) de Jean-Daniel Pollet complementa, de algum modo, Méditerranée e como sempre na obra deste cineasta procura mostrar
as coisas como elas nunca foram vistas; o mesmo sucede com Dieu sait
Quoi (1993), igualmente de Jean-Daniel
Pollet, uma homenagem ao homem que 30 anos antes se maravilhara com Méditerranée, o poeta Francis Ponge: se este se preocupava com a
usura das palavras e a sua perda de sentido, Pollet preocupava-se com a usura
das imagens do quotidiano que torna o mundo opaco.
O dia seguinte
principiou com D’Est (1993) de Chantal
Akerman uma obra sobre as transformações nos países de Leste após o
desmoronamento do comunismo na qual Jean-Marie Straub viu a influência do seu
método. O filme, em relação ao qual se chegou a afirmar que funcionaria melhor
como instalação numa galeria de arte – na verdade a experiência chegou a ser
feita – do que numa sala de cinema, tem o mesmo pendor de ensaio dos filmes
anteriores. Seguiram-se A Queda da Dinastia Romanov (1024) de Esfir Schub, O Nosso Século (1980) de Artavazd Pelechian, um trabalho de
montagem de material de arquivo tal como o filme anterior, neste caso sobre o
percurso da revolução soviética deixando no ar dúvidas quanto ao futuro e O
Dia do Pão (1998) de Serguei Dvortsevoy,
cineasta em cujo trabalho convergem a observação e a contemplação, sobre o dia
da semana em que os habitantes de uma vila quase despovoada não muito distante
de São Petersburgo recebem a visita do padeiro. Na sessão da noite duas obras
fundamentais do cinema moderno: La Jetée (1962) de Chris Marker e
Stalker (1972) de Andrei Tarkowsky.
Três filmes
preencheram o sexto dia de Resistência: Route
One USA (1989) de Robert Kramer, cujas mais
de quatro horas de duração obrigaram a dividir o filme por duas sessões, Young
Mr. Lincoln (1939) de John Ford e História
do Japão Contada por uma Dona de Bar (1970)
de Shoei Imamura que passou numa sessão extra perto da meia noite. Em qualquer
dos casos, à semelhança do que sucedera no dia anterior, trata-se de filmes que
reflectem sobre o nosso mundo, fazendo-o, porém de ângulos muito variados. Young
Mr. Lincoln serve de contraponto a Route
USA, mas em ambos coabitam ou subjazem
elementos de uma América mitológica. No filme de Imamura, cineasta de um mundo marginal,
contraditório e brutal, há o lado mais sombrio e desconhecido dos mitos do
Japão do pós-guerra traduzido num estilo documental próximo do cinema-vérité, a preto e branco, sem concessões nem contemplações.
Com a
aproximação do final do ciclo, pensando nos princípios de montagem aplicados ao
alinhamento dos filmes e nos critérios aos quais obedeceram os múltiplos
cruzamentos ao longo dos seus quatro episódios há como que uma estrutura
narrativa circular que se fecha. O penúltimo dia regressou a Johan Van der
Keuken – os seus filmes sobre as crianças cegas tinham sido programados no
início de O Olhar de Ulisses – desta vez
com O Olho por Cima do Poço
(1988), rodado na Índia e com um dos seus filmes mais pessoais As
Férias do Cineasta (1974). Este liga na
perfeição com o primeiro filme da sessão seguinte Mort à Vignole (1999) de Olivier Smolders, uma obra igualmente muito pessoal de alguém que gostaria de
ter perpetuado na imagem, não tendo podido fazê-lo, a memória de um filho que
nascera morto. Motivo para evocar o estatuto da imagem no filme seguinte Sans
Soleil (1982) de Chris Marker e lançar, na
última sessão do dia, uma espécie de revisão crítica da História do Cinema
através, naturalmente, de um segmento de Histoire(s) du Cinema (199) de Jean-Godard, ao qual se seguiu o clássico A
Sombra do Caçador (1955) de Charles Laugton,
film noir em ruptura com as
convenções do género.
Em 2 de Outubro,
ponto final de O Olhar de Ulisses, a
primeira sessão principiou com um acto alegórico consubstanciado na
apresentação do díptico de Artavazd Pelechian Fim (1992) e Vida (1993). Acto alegórico não apenas em função do que ambos os filmes são
em si mesmos, mas, sobretudo pelo que poderiam representar no contexto de uma
programação feita trincheira contra todos os males da imagem contaminada pelo
audiovisual. Depois do sombrio percurso de clasura de Fim, em Vida
o pulsar do coração de uma mãe em trabalho de parto e o nascimento do filho
demonstra que, afinal, há esperança para o entendimento do cinema tal como O
Olhar de Ulisses o entendeu apresentar. Por
tal razão, as duas obras seguintes obedecem a critérios de rigorosa exegese.
Primeiro, em complemento dos filmes de Pelechian, Ana (1985) de António Reis e Margarida Cordeiro; depois,
a recuperação de Straub/ Huillet com En Rachachant (1982) como complemento de Trafic (1971) de Jacques Tati; finalmente (e simbolicamente:
fazendo prevalecer uma certa ordem do cinema) As Luzes da Cidade (1952) de Charlie Chaplin.
Se no módulo
anterior já era praticamente impossível proceder a um enquadramento dos filmes
em função de critérios cujo único objectivo era, no plano da teoria do documentário,
procurar identificar tendências tendo em vista perceber melhor o critério da
programação, no caso deste módulo a tentativa é simplesmente desnecessária. A
presença do documentário parece ser aqui meramente susbsidiária de uma outra
ordem mais vasta de uma espécie de cinema sacralizado a partir do altar de uma
trincheira de resistência por forma a impor um manifesto do gosto. A maioria
dos filmes apresentados é, evidentemente, excepcional, mas esse não é
certamente o problema. Francisco Ferreira escreveu no Expresso: “A redescoberta
de filmes programados a partir de uma memória (a de Daney) revelou sempre
relações infinitamente mais vastas, por vezes inesperadas, do que as que
tínhamos tido no passado [4]”.
Concluía assim:
“Ao mesmo tempo,
nesta retrospectiva, houve a intenção de dar a ver filmes quase ‘invisíveis’
sem instrumentalizá-los a um discurso pré-definido, sem obrigá-los a uma
classificação por géneros, como a eterna discusão em volta do problema
ficção-documentário que aqui não se coloca. Mais importante é a memória que
ficará desta aventura: os debates entre os convidados e a plateia do Rivoli, o
valor dos textos de 4 livros publicados. Em suma, um trabalho exemplar que
merece da crítica de cinema o maior respeito: a intuição contra a ‘ideia-museu’
[5]”.
Sendo meritória
a ideia de mostrar filmes ‘invisíveis’, o problema é que estas palavras podem
ser lidas exactamente ao contrário. Independentemente da controvérsia que só
por si encerra a sugestão do documentário ser um “género” – uma ideia
problemática visto que a imensa variedade de formas e vozes do documentário
contemporêneo exclui qualquer possibilidade de tipificação – ou do juízo que
possa fazer-se sobre os debates do Rivoli – na verdade, apesar da intenção
declarada, raramente houve confronto de opiniões – o percurso do ciclo e a
evolução que se foi acentuando parecem evidenciar, sobretudo na sua fase final
e apesar da paternidade atribuída a Serge Daney, algo que não poderá não andar
longe de uma ‘ideia-museu’.
Como tal poder-se-ia
perguntar se, afinal, o ciclo foi não terá sido instrumentalizado em função de
conceitos como Resistência e outros – por vezes, com mais de meio século, como
sejam os que dizem respeito às ideias defendidas pelos Cahiers sobre os autores
nos anos 50. Suscitada esta dúvida, uma outra se perfila, ou seja, se as opções
tomadas não foram, isso sim, ao encontro de um pronto a vestir talhado pelas
mitologias dos cinefils e, portanto, deixando
de fora, pelo seu carácter supostamente impuro, experiências importantes do
documentário contemporâneo, nomeadamente o documentário americano de propósito
social. A percentagem de 40% de filmes franceses nos dois últimos módulos dá
indicações da presença dessas mitologias na sua forma mais radical e, por isso
mesmo, mais ingénua. O mesmo poderia aplicar-se a alguns dos textos publicados
nos dois últimos catálogos. Nesta perspectiva, O Olhar de Ulisses, recusando o confronto com uma parte significativa da
produção contemporânea, parece não ter entendido – como se afirma no Capítulo
I, página 147 – que a criação de novos públicos requer a dessacralização de uma
produção simbólica cujo estatuto, embora legitimado por mediações
especializadas, resulta de um processo objectivo de fetichização que concorre
para o aparecimento de círculos fechados sobre si próprios, portanto sem
potencial de democratização.
No conjunto dos
seus quatro episódios O Olhar de Ulisses
apresenta, apesar de tudo, um maior equilíbrio. Exibiu 194 filmes assim
distribuídos segundo a origem: França – 59 (30,41%), Estados Unidos da América
– 36 (18,55%), Reino Unido – 18 (9,27%), Portugal – 16 (8,24%), URSS (incluindo
a Arménia e Cazaquistão) – 14 (7,21%), Holanda – 9 (4,63%), Itália – 7 (3,60%),
Bélgica – 3 (1,54%), Alemanha – 3 (1,54%), Canadá – 3 (1,54%), Cuba – 3
(1,54%), Bélgica – 2 (1,03%), Egipto – 2 (1,03%), Índia – 2 (1,03%), Irão – 2
(1,03%), Japão 2 (1,03%), China – 1 (0,51%), Espanha – 1 (0,51%), Dinamarca 1
(0,51%), Suíça 1 (0,51%) e Brasil 1 (0,51%). Há ainda a considerar um conjunto
de co-produções todas elas, com excepção de duas, tendo a França como parceiro:
Egipto/ França – 2 (1,03%), Grécia/ França/ Itália – 1 (0,51%), França/ Espanha
– 1 (0,51%), Portugal/França 1 (0,51%), Bélgica/ França 1 (0,51%), Portugal/
Itália 1 (0,51%) e Japão/ Estados Unidos – 1 (0,51%).
No seu relatório
final o programador responsável evita os aspectos eventualmente mais críticos e
releva o papel de O Olhar de Ulisses como
elemento fulcral da Programação ao mostrar “muitos dos melhores filmes alguma
vez feitos [6]”, alguns dos
quais praticamente desconhecidos do público em geral e dos estudantes da área
do cinema e audiovisual em particular e por tê-lo feito numa tentativa de
diálogo com o público. Considera igualmente
ter-se tratado de uma estimulante aventura a propósito do olhar e de aí residir
o seu principal mérito, destacando, igualmente, a colaboração da Cinemateca
Portuguesa e, em particular, do seu mais alto responsável João Bénard da Costa.
Quanto à
imprensa sempre se mostrou atenta, mesmo se, nalguns casos, desconhecedora das
questões conceptuais em torno da programação. O Olhar de Ulisses foi escolhido pelo jornal Público, a par do ciclo Violência
e Paixão: O Cinema de Luchino Visconti,
para figurar entre as 10 iniciativas culturais que mais se destacaram no Porto
2001.
[1] . Catálogo O Olhar de Ulisses III – Resistência,
Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto
2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2001, p.
6.
[6] . Relatório de Avaliação Final do Departamento de
Cinema, Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001, sem páginas
numeradas.
5.5.5 Outros
documentários - Apocalípticos e Integrados
Como se
depreende do texto introdutório de Apocalípticos e Integrados onde se alude à necessidade de “inflectir o debate”
deslocando-o “para um espaço mais interpelativo e menos integrado” a Odisseia
nas Imagens, cumprida a primeira fase da
programação, principiou a dar corpo a outras iniciativas igualmente ou
centradas no documentário ou incluindo documentários, por vezes arriscando
incursões noutros domínios, como, por exemplo, a fotografia documental – caso
da exposição da Magnum a propósito da rodagem de Misfits.
A retrospectiva
integral de Errol Morris obedeceu ao princípio da diversidade sempre presente
no plano da historicidade e decorreu nos dias 23, 24 e 31 de Março de 2001, no
Auditório da Fundação de Serralves [1].
No texto de introdução do catálogo Mr. Death: A América de Errol Morris alerta-se para a dificuldade de classificar os
filmes de um autor a quem habitualmente se coloca a indesejável, para o
próprio, etiqueta de documentarista. Na verdade, nas suas longas metragens, bem
como nos seriados e filmes para a televisão, são reiteradamente utilizados
processos narrativos filiados na ficção. Nesse sentido, poder-se-ia pensar esta
retrospectiva como um complemento do terceiro acto de O Olhar de
Ulisses, tanto mais que Morris manifesta
preferência por cineastas como Robert Bresson e Frederick Wiseman. Contudo, não
é de todo assim. Basta ponderar o seu método de trabalho e os temas de que se
ocupa para essa ideia se dissipar.
As suas longas
metragens exibidas – na altura, praticamente, desconhecidas em Portugal – foram:
Gates of Heaven (1978), um retrato
excêntrico do sonho americano a partir da história de dois cemitérios de
animais na Califórnia com sorte diversa; Vernon, Florida (1882), um fresco agridoce sobre um determinado tipo
de comunidade branca americana, cujos protagonistas são, ente outros, um
criador de minhocas, um padre que filosofa em sermões de 10 minutos sobre a
palavra therefore (portanto) e um
obsessivo caçador de perus; The Thin Blue Line (1988), filme da desconstrução de um crime que iria
permitir inocentar um condenado à morte; Fast, Cheap and Out of
Control (1997), uma história em quatro
partes sobre o mito de Sísifo, cujas personagens discorrem apaixonadamente
sobre as suas estranhas profissões, ou seja, domar animais selvagens, controlar
o crescimento das plantas, classificar uma espécie animal em permanente mutação
e construir robots que imitam os
movimentos dos animais; e Mr. Death: The Rise and Fall of Fred A.
Leuchter, Jr. (1999), a história de um
pretenso especialista nas tecnologias aplicadas às execuções de pena de morte,
nomeadamente a cadeira eléctrica, que é levado por grupos nazis a investigar e
negar o Holocausto.
Em complemento,
alternando com as longas metragens, foram exibidos todos os episódios de First
Person Series (2000), um seriado documental
para televisão cujos protagonistas, sendo reais, surgem como figuras
radicalmente improváveis. Todas as sessões contaram com painéis de
especialistas em diversas áreas a quem coube problematizar e debater quer o
modo de fazer de Errol Morris, quer os temas e as personagens dos seus filmes. No
catálogo de 109 páginas, 28 das quais inteiramente preenchidas com fotografias,
há três textos originais e outros tantos recuperados de outras publicações. Na
contracapa surgem duas citações, uma das quais de Marshall McLuhan: “All
media are extensions of some human faculty – psychic or physical”. Num dos textos originais, João Lopes escreveu:
“Se quisermos
ser irónicos, diremos que Morris tem o poder, também ele insólito, de abordar
personagens e situações que, a serem produto da imaginação de um qualquer
argumentista de Hollywood, seriam muito provavelmente menosprezadas como
delírios gratuitos e inverosímeis. Por exemplo, (num) filme da mesma série, The
Parrot, a personagem central é Max, nada
mais nada menos que um papagaio que terá assistido a um crime violento (...): The
Parrot termina com a claríssima sugestão de
que algo ficou por esclarecer, algo de que o papagaio conservaria, se não o
segredo policial, pelo menos um significativo indício de culpabilidade [2]”.
Sublinhando que
se algo é “dito-exposto-filmado no cinema de Morris é a sua resistência a
qualquer inocência primordial do olhar – olhar é, por definição seleccionar e
reconstruir o real [3]”,
João Lopes interroga-se:
“O que é o olhar
no interior do universo de Errol Morris? Jogando com a ambiguidade vital dos
infinitos, poderemos dizer que, com o cinema de Morris, ‘olhar’ e ‘ver’ são, de
facto, coisas fundamentalmente diversas. Ou melhor: o excercício de ver pode
ser algo de tão radical – e, se não tivermos medo da palavra, tão
revolucionário – que se pode chegar ao ponto de ver sem, sequer, exercer um
olhar [4]”.
Morris e o seu Megatron – evolução, como vimos no capítulo anterior, do Interrotron – abriram, portanto, novas perspectivas para o
documentário, mais tarde cabalmente demonstradas em The Fog of War (2003), a partir dos dispositivos tecnológicos da
televisão. No ciclo esteve, aliás, presente, como convidada, a RTP, numa
tentativa de estabelecer um diálogo com vista a uma colaboração que permitisse
fazer chegar ao pequeno écrã toda a diversidade das vozes do documentário. Daí
resultaria a extensão em antena da Odisseia nas Imagens no canal 2 do serviço público no ano de 2002, tendo
ficado em aberto a possibilidade de novos ciclos, nomeadamente do
documentarismo português, que nunca viria a concretizar-se.