terça-feira, 30 de agosto de 2011

em viagem, na pele de setembro




em setembro, observa sem temor o deslizar das primeiras nuvens, a silhueta das cidades vivas na respiração da pedra, a brisa onde amanheceste tocado pela graça do mar como se um veleiro te levasse marinheiro nas asas de um azul intenso. não temas as águas agitadas, nem a variável inclinação do poente, tão pouco a palavra suspensa sob o vazio súbito do silêncio. olha as mãos onde guardas os segredos do vento: elas dir-te-ão sobre os labirintos da memória e as declinações do tempo. navegante de tantos sortilégios, em breve sentirás na pele o fulgor das águas correndo na direcção da nascente. saberás, então, o sentido de setembro.



segunda-feira, 29 de agosto de 2011

em viagem, sobre o lado esquerdo





sobre o lado esquerdo o silêncio prossegue sua longa viagem de sal e espuma, de sol e penumbra, rente ao limiar do enigma que é murmúrio de fonte ou sopro de algas, sulco do rosto ou cicatriz do tempo. sobre o lado esquerdo há um lugar secreto, a noite irrevogável de uma poeira de estrelas, uma mão precária de luar fulgente, a areia fina que foge por entre os dedos da vertigem do azul intenso. sobre o lado esquerdo respira o sinuoso traço da memória, o eco da erosão da pedra, o cristal puro da água, o tigre vigilante do mistério do anoitecer na sua irredutível condição de ser tendo sido e, de novo, ser. sob a luz vertical da manhã, entre o descampado da ausência e o sortilégio da pele, nesse instante de tudo ser nada e de nada ser tudo, súbito bate descompassado o relógio dos passos, tanto quanto um mar de espanto ou uma flor do vento, um alvoroço de pássaros ou um coração ardente, sobre o lado esquerdo.



domingo, 28 de agosto de 2011

em witebsk, sabendo amar por inteiro





se em sorte um dia o amor me coube e amei sabendo amar por inteiro, foi por um instante ter sabido o segredo do mensageiro da luz, das cores vibrantes da paleta dos meus sonhos, ó esse azul abraçando a tela como um fulgor de águas límpidas numa carícia de cabelos e véus desfeitos. nunca assim soubera poder amar. nem imaginar podia, nessa minha longínqua aldeia de witebsk, de que um dia os meus pincéis haveriam de subir ao céu dos sóis ardentes, dos peixes prateados cintilantes, das silenciosas luas adolescentes, levando consigo camponeses de vestes de linho branco e animais de porte tão improvável quanto a tua leve silhueta célere a caminho do imprevisto encontro na ponte anichkov, em são petersburgo, sobre o neva. eras tu o mensageiro, bella. de ti recebi a dádiva do olhar como se para além da aparência dos dias o mundo fosse, afinal, o lugar de prodígios tantos como os meus dedos ao de leve acordando delicados o despertar dos teus mamilos, como se o teu sorriso suave vindo fosse a perene poeira das estrelas caindo lenta na aldeia maravilhada da tela dos meus dias. na minha aldeia de witebsk um cavalo vermelho voou de asas abertas, passageiro do vento, como se o destino fosse o tempo e o tempo ficasse suspenso no puro espanto do sopro amarelo e ocre das sementes inadiáveis da manhã. e, assim, levitando de mãos dadas nas estrelas da minha pátria ucraniana ou olhando o mundo da janela aberta do nosso quarto alugado de paris, cada quadro por mim pintado foi teu também, porque cor a cor amorosamente nomeavas o rigor da cor certa do dizer do meu olhar. de tão frágil o teu coração quebrou, bella, e eu fiquei interdito nesse longínquo instante imprevisto da ponte anichkov, em são peterburgo, sobre o neva, erguendo uma mão infantil desconsolada, segurando a outra a dádiva da paleta vibrante dos meus sonhos. não, nunca assim soubera poder amar e, contudo, amei, grato do teu sorriso, agora brisa, no halo inocente do arco-íris do meu tempo.


em viagem, pelo signo de assim ser





vivi o medo sombrio da loucura e a loucura luminosa da paixão, respirei nas dunas o murmúrio do vento, memórias de um corpo, de um rosto atento ao desafio do tempo. fui água e fui pedra, talvez ave de voo nómada pairando no azul de uma luz primitiva entre a delicada haste da seara ao vento e o raio de sol livre de ser casa, árvore, clarão de espanto de mim mesmo. soube de tudo sabendo de nada, nessa condição do mosto em levedura ou da mão errante do pedreiro em busca da forma definitiva e perfeita. em noites de lua cheia abri os braços à poeira das estrelas e espalhei os dedos pelos cabelos desfeitos dos mistérios dos amantes. naveguei o lume do instante e fui feliz de tanto arder reencontrado nesse fogo feito terra, chuva, semente, espiga. grato, conheci o erro e os seus enganos e errando levantei a taça de vinho fazendo votos de errar de novo como se um deus benigno me devolvesse a graça perdida da fonte do leite e do mel. de tanto ouvir o ladrar do cão da consciência também atravessei o túnel da escuridão e não era um filme de kurosawa, era o silêncio branco dos meus olhos alongados na irreparável distância de quem sendo, fui. diante do espelho, entre o branco e o negro, imaginei a linha sinuosa dos meus passos e o o espelho, alheio ao enigma das estações, talvez signo do zodíaco, talvez sábio das veredas onde perdido me achei, disse nada. e, contudo, disse. sou livre. centauro. anoitece. aconteço.


em viagem, na viagem de outro corpo




a tua língua lenta nos lábios húmidos da minha fenda voa súbito até à

agonia da minha boca e vagarosa como a saliva encontra os meus seios

impacientes do despudor das tuas mãos, duros de serem presa dos teus

dentes, ó sentir-me assim prestes abusada no veludo da pele, ceder

ao toque dos teus dedos, sucumbir à tormenta dos teus flancos, ouve,

quero soltar-me no grito obsceno da garganta, quero ser festim do teu

corpo a prumo na gruta que doendo rompe a penumbra do meu ser,

ó, sim, dá-me a claridade dos sentidos como se a luz incandescente

de um cometa rasgasse a brancura dos lençóis e me fizesse fêmea

contigo no galope da cama, exultante do estertor do teu relâmpago,

inteira de saber-me na alma fulgor do teu banquete .