quarta-feira, 5 de outubro de 2011

numa cidade de passagem, a caligrafia do chão




como um náufrago procuro os cristais da palavra, os seus lábios húmidos de dizer, as suas longas pernas de ventos e florestas, mas é tarde, e ao dobrar da esquina de uma oblíqua rua dos arredores de mim mesmo descubro uma fuligem de chuva, um cheiro intenso a óleo queimado que alastra no fluxo nervoso desta cidade de passagem anunciando, porventura, a vertigem da solidão. para tanto bastará apenas o medo soltar a alavanca da noite e deixar-me entregue à minha memória registadora de nomes e atrocidades. não, não sei nomear a cartografia vulnerável do meu rosto. um denso, líquido pavor escorre do flanco de facas suspensas e o tempo presente passa implacável por entre as ruínas do tempo passado, já tempo futuro. como habitar esta cidade de passagem se o aqui estar ausente é o refúgio que me sobra da água um dia bebida na harmonia das fontes? em nome de indecifráveis desígnios partirei breve rumo às estações suspensas da respiração da pedra. não voltarei a saber do tempo em que por desencontro de ti a fileira de dentes brancos e ferozes não soube nem da boca sangrenta do teu rosto que doendo me deixou. sou agora uma folha de papel de incontidas palavras nesta cidade do descampado onde me espera no peito o impacto absurdo de uma flor fulminante. vejo cachorros e guardas vindos do fundo da noite para apagar o sopro das estrelas, vejo exércitos no seu ritual sombrio de passada lenta e ouço o espanto das vozes suspensas na luz coagulada do silêncio. tropeça um corpo interdito em clarão, súbita silhueta da queda de um amor em câmara lenta, multiplicando, aflitas, as mãos. jaz o rosto em seu rigor absoluto na fria caligrafia do chão.



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