Regresso ao Real Imaginado
por Jorge Campos
Historicidade
Patrício Guzmán, autor de filmes como A Batalha do Chile (1973) e Salvador Allende (2004), disse um dia que o documentário é o álbum de família de um povo. Essa expressão, pela carga simbólica nela investida, justificaria só por si uma descriminação positiva: tomado à letra, o álbum de família promove a identidade de quem somos e, ao fazê-lo, estabelece pontes para uma visão actualizada da História. Numa época em que a lógica mediática reside no efémero, o documentário surge como um poderoso instrumento de preservação da memória ou, se preferirmos, como um lugar de reencontro dos homens com a sua condição e a sua circunstância. Todo o século XX pode, aliás, ser dado a conhecer através do documentário e todo o presente pode ser imaginado, reinterpretado ou simplesmente reconhecido através dele porque nele reside o potencial de utopia que, permitindo a revelação, gera conhecimento. Daí o interesse renovado em torno das suas múltiplas manifestações, sobretudo agora, quando devido a uma crise global cujo epicentro económico-financeiro está iniludivelmente ligado às indústrias da evasão, ganha força, no plano simbólico, a reclamação de um regresso ao real.
O entendimento deste regresso ao real – num contexto em que o discurso televisivo ideologicamente dominante vacila e se mostra, de um modo geral, incapaz de dar resposta aos problemas do nosso tempo – exige a presença da historicidade articulada com a abordagem sumária de uma antinomia central da teoria do documentário que é aquela que releva do campo da arte, por um lado, e da esfera da reportagem, por outro. Seguindo este método, o qual não dispensa algumas derivas tidas por esclarecedoras, o documentário será sempre entendido enquanto argumento sobre o mundo histórico. E, como tal, parafraseando Chris Marker, ficará claro que, hoje mais do que nunca, para ser um lugar habitável, o mundo precisa de ser imaginado.
Para se entender este postulado devemos salientar, em primeiro lugar, que o confronto com a historicidade, ou seja situar o documentário no seu tempo, permite elucidar o movimento pendular em torno da retórica e da poética uma vez que recolhendo subsídios de cada época nos é permitido desenhar um quadro dinâmico a partir do qual melhor possa entender-se a relação com a actualidade, território, aliás, comum à reportagem, o que está longe de ser uma questão menor. Com efeito, os paradigmas do mundo das notícias sempre contribuíram para redefinir o quadro de expectativas dos receptores na sua relação simbólica com o real. Invocando Jean Thévenot, André Bazin, por exemplo, ao referir-se à génese do documentário fala do “filme de grande reportagem” e acrescenta como elemento importante dos critérios de verosimilhança o facto de a partir do final da II Guerra Mundial, com a disseminação dos media, o público exigir acreditar no que vê, uma vez que “a sua confiança é controlada por outros meios de informação: a rádio, o livro e a imprensa (Bazin: 1992)”. Esse processo, evidentemente, acentuou-se com a chegada da televisão.
Em segundo lugar é necessário admitir que do ponto de vista teórico há sempre a possibilidade de abordar a antinomia arte/ reportagem em função de dois enfoques distintos. Falando de arte, falamos de Cinema. Falando de reportagem, falamos de Jornalismo. Porém, quando hoje se fala do documentário, a cada passo nos defrontamos com uma rede de relações que rompe com as tentativas de sistematização exclusivamente centradas num ou noutro enfoque. Vejamos a seguinte deriva. Se, por absurdo, o cinema tivesse acabado antes do advento do som, tudo seria mais simples uma vez que a arte do cinema tinha atingido a plenitude com a conquista de uma linguagem exclusivamente visual e, por extensão, com a afirmação de um pensamento puramente visual. Assim não sucedeu. A partir do advento do som, a palavra, no dizer de René Clair, ameaçou o cinema de se transformar num gramofone com imagens. Cedo algo de semelhante se verificou em newsreels como March of Time influenciando figuras tutelares do documentário como John Grierson que em diferentes ocasiões disse uma coisa e o seu contrário. Tanto falou no tratamento criativo da actualidade quanto afirmou que, desde o início, o movimento documentarista foi essencialmente anti-estético. Disse mais: a ideia de documentário, tal como ele tinha sido levado a pensá-la, não era o produto de nenhuma escola de cinema, mas do pensamento da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Chicago nos anos 20 do século passado. Por aqui logo se entende o valor instrumental da historicidade, pelo que todo o documentarista deveria ter noção quer da História do documentário quer do debate teórico dela indissociável.
Como se sabe, o uso da palavra documentário para qualificar um determinado tipo de filme é atribuído a John Grierson que, em 1926, se referiu a Moana (1926) de Robert Flaherty como tendo valor documental. Havendo indícios de Edward S. Curtis ter aludido ao filme documentário muito antes, por volta de 1915, quando fez The Land of the War Canoes (1914), o qual, aliás, antecipa muitos dos procedimentos posteriores de Flaherty em Nanook of the North (1922), a verdade é que foi a famosa expressão tratamento criativo da actualidade utilizada por Grierson, em 1927, que daí em diante enquadrou os primeiros debates sobre o documentário.
O cinema documental, contudo, é anterior a essa formulação e aparece amiúde associado a intuitos informativos e de propaganda como no caso de Dziga Vertov, o responsável pelos jornais cinematográficos soviéticos após a revolução bolchevique. As suas teses do Cine-Olho deram corpo a narrativas que associam o registo da actualidade a uma experimentação da qual alguns números de Kino-Pravda constituem exemplos. Mas, Kino-Pravda o que é? Cinema? Jornalismo? Na verdade, o Cine-Olho é tanto uma teoria como uma prática e assenta no pressuposto de que o cinema permite ver “outra coisa”, ou seja, é encarado como uma possibilidade de intervenção sobre o real de modo a interromper a naturalidade do fluxo das suas aparências e a revelar-lhe os movimentos de fundo. Kino-Pravda, sendo um jornal, obedecia a esses mesmos propósitos. O Homem da Câmara de Filmar (1929) é o pináculo dessa utopia radical.
E o que é Nanook of the North? Enquanto filme histórico-naturalista oferece ao espectador a ilusão de estar perante os acontecimentos narrados, os quais passam a habitar o seu imaginário como prova de verdade. Construído a partir de proposições lógicas, Nanook induz uma leitura única da história que conta, a qual resulta, naturalmente, de um ponto de vista correspondente à representação individual de um modo de ver. Flaherty, o mais improvável dos repórteres, visto que nele tudo é encenação, ainda assim faz “reportagem”, na medida em que reportar é dar conta de algo ou de alguém, neste caso da vida de Nanook, enquanto símbolo da vida dos esquimós,
Metamorfoses do real – Arte e Reportagem
Em qualquer dos casos coloca-se, naturalmente, o problema da narrativa. Toda a narrativa é construção, e toda a construção é encenação. O documentário, exigindo a organização dos seus signos, é uma construção. Tratar-se-á, ainda assim, de uma construção diferente daquela que serve a reportagem e, sobretudo a ficção, com a qual, aliás, o documentário divide áreas de luz e sombra. Por exemplo, o documentário também dispõe de cenários. Serão cenários naturais dispensando, portanto, a complexidade de elaboração associada ao cinema de estúdio, mas nem por isso deixam de ser cenários e de cumprir uma função enquanto tal. O documentário, em princípio, prescinde de actores profissionais recolhendo da autenticidade das suas personagens uma das suas razões de ser. Mas, tudo se complica quando nos interrogamos sobre o que é o actor e nos deparamos com comportamentos da vida real, os quais, devido à presença de uma câmara, adquirem evidências ou promovem ocultações que de outro modo não se manifestariam. Os exemplos poderiam prosseguir porventura indeterminadamente – um sinal da vitalidade do documentário de cinema.
Seguindo esta linha de argumentação, num discurso habitualmente conotado com expressões como verdade, realidade e objectividade todos os paradoxos são possíveis. Da fase da pesquisa à ética da rodagem, da técnica da entrevista à estética da montagem, qualquer que seja o domínio sob observação, é sempre inevitável deparar com um conjunto complexo de operações a partir do qual se opera a metamorfose do real em realidade.
Sucede algo de semelhante no campo do jornalismo. Se por real entendermos a vida em estado bruto, digamos assim, tal qual se passa à nossa volta, por realidade entenderemos um particular entendimento desse real em função dos códigos interpretativos pertencentes a uma determinada linguagem. É, pois, a linguagem que permite operar essa metamorfose. E é nesse sentido, também, que os acontecimentos deixam de pertencer ao domínio do real para entrarem no domínio da realidade, a partir do momento, portanto, em que se transformam em notícias. As notícias, pertencendo ao universo dos signos e dos valores simbólicos, contribuem para a formação da imagem que a sociedade tem de si mesma. Como tal, essa imagem é uma realidade construída e não, como pretendem os defensores da objectividade pura, nem um espelho do mundo, nem uma janela para o mundo. Diz Gomis que “nem o espelho nem a janela, enquanto metáforas, têm em linha de conta a mediação da linguagem que é fundamental para o entendimento dos meios de comunicação (Gomis: 1991)”. Explicar como funciona o jornalismo será, então, explicar como se forma o presente de uma sociedade.
Esse presente interpretado em nome dos critérios jornalísticos é, todavia, difuso e comporta construções informativas a vários níveis. Num primeiro momento, as notícias cumprem uma função de actualização de conhecimentos de modo a dotar os destinatários de informações úteis ao seu relacionamento imediato com o mundo. Esse conhecimento, porém, só ganha uma ressonância prospectiva a partir do momento em que se amplia e dá lugar à reflexão e à interpretação através do recurso a outros géneros jornalísticos. É o caso, por exemplo, do comentário, o qual, mais do que a notícia permite configurar a dinâmica da actualidade, projectando-a para além do presente imediato. Na verdade, o presente é o que se comenta e as notícias são tanto mais notícias quanto mais perduram, ou seja, quanto mais são comentadas.
Também o documentário interpreta e comenta o real. Quando Paul Rotha afirma que ele deve reflectir sobre os problemas do presente, no fundo, está a dizer isso mesmo. Poder-se-ia, portanto, suscitar a questão de saber até que ponto é legítimo ao documentário recorrer no todo ou em parte à ordem reguladora prescrita pelo jornalismo. Grierson, ao fazer a distinção de duas categorias de filmes vinculados ao real, a superior e a inferior, de algum modo parece rejeitar essa possibilidade. Para ele o documentário é exclusivo da primeira categoria visto que os filmes incluídos na categoria inferior “não dramatizam, limitando-se à mera descrição ou exposição de factos”. Contudo, o mesmo Grierson que aqui se coloca do lado da poética não enjeitou ser consultor em Londres de March of Time e produziu, durante a guerra, no Canadá, World in Action, um jornal de actualidades cinematográficas. Aliás, parte da produção do movimento documentarista britânico foi essencialmente jornalística e tal aconteceu tanto por razões de ordem tecnológica quanto de ordem política e de propaganda.
Será então indiferente que as coisas se passem de uma maneira ou de outra? Muito pelo contrário. Vivendo em permanente confronto com a historicidade o documentário pode ser encarado como uma série de transformações. À semelhança das notícias contribui para a formação da imagem que a sociedade tem de si mesma. Tal como o comentário e a crónica adquire um valor monumental para o futuro mas, na medida em que pode ser utilizado recorrentemente e autoriza leituras das quais não se ausenta, antes se afirma, o prazer do texto, eleva-se a um outro patamar requerente da imaginação criadora indissociável da capacidade de construir argumentos sobre o mundo histórico e, como tal, exigindo a singularidade do ponto de vista. São esses os documentários que permitem ler o mundo justamente porque nos dão a ver um real imaginado. Podemos concordar ou discordar. Mas sabemos ao que vamos porque no contrato celebrado entre autor e destinatário há uma cláusula de segurança segundo a qual a verdade transportada para o ecrã é a verdade do autor. A nossa será outra, ou não. Assim é o documentário de cinema: Être et Avoir de Philibert, Nuit et Brouillard de Resnais, Basic Training de Wiseman, Le Joli Mais de Marker, Vacances du Cinéaste de Van Der Keuken, Cabra Marcado para Morrer de Coutinho, Les Plages de Agnés de Varda, Phillips Radio de Joris Ivens, Porto da Minha Infância de Oliveira, Diary for Timothy de Jennings e tantos, tantos outros, todos eles portadores de um olhar fundador simultaneamente agente de mudança criativa e garante de uma memória sem a qual o homem prescinde do entendimento do presente e mergulha na deriva de um quotidiano sem futuro.
Televisão
O corpo a corpo com o real inscreve-se, no entanto, num campo discursivo mais vasto sobre o qual é igualmente necessário reflectir posto que resulta de múltiplas declinações. Voltemos então à televisão e à controvérsia em seu redor. Há quem, como Mander, discuta a possibilidade de haver vida inteligente na televisão, como há quem, como Popper e Condry, a considere como uma ameaça para a democracia. Há inúmeros textos relevando os aspectos manipulatórios do discurso televisivo, estabelecendo-se, nomeadamente, uma antinomia entre a razão e a emoção, sendo esta última encarada como indutora de fenómenos de hipnose, entorpecimento e fascinação. Muitos desses textos partem até de premissas e querelas aparentemente desligadas da matéria que nos ocupa, mas acabam por condicionar a sua abordagem. Por exemplo, o contraditório eventualmente existente entre a Imprensa e a Televisão. A racionalidade estaria no lugar da palavra escrita e do pensamento lógico a ela associado; a emoção, a sensação e a irracionalidade no lugar das imagens electrónicas.
Terrível anátema, prognóstico sombrio: a sociedade da imagem, alertaram os pessimistas, incorre no risco de promover um novo totalitarismo. McLuhan desvalorizou a questão sublinhando a incompatibilidade do pensamento linear da Galáxia de Gutenberg com a nova ordem sensorial da Galáxia de Marconi: é como olhar o mundo pelo retrovisor, disse ele. Em contrapartida, Umberto Eco, reflectindo sobre a cultura de massas, advertiu que o futuro da democracia passava pela capacidade de transformar a linguagem da imagem num estímulo à reflexão e não num convite à hipnose. Uma controvérsia de contornos semelhantes ocorre muitas vezes quando se opõe cinema e televisão: a razão, a revelação, a arte, do lado do cinema; a confusão, a vulgaridade, o lixo, do lado da televisão. Quem não se lembra do célebre aforismo de Godard: o cinema é a memória, a televisão o esquecimento. Perguntar-se-á: mas que cinema e que televisão? Não iremos por aí, mas vamos por partes.
A televisão teve um impacto indiscutível sobre o documentário a ponto de no Reino Unido estudos académicos terem identificado dezenas de tipos de “documentários de televisão”, cujo denominador comum seria a existência de um qualquer vínculo ao real. A favor desta proliferação surgiram argumentos relevando a bondade de soluções que teriam permitido encontrar um ponto de equilíbrio face à controvérsia da identificação das narrativas, de modo a promover, dentro de parâmetros aceitáveis, a convivência e transversalidade dos diferentes modos de significar. Contra esta leitura optimista e, porventura, não inteiramente desinteressada, poder-se-ia invocar o facto de muitas dessas abordagens pouco ou nada terem em comum com a tradição do filme documentário, nem sequer da tradição do melhor documentário jornalístico de televisão, resultando simplesmente de meras estratégias casuísticas dos operadores competindo por audiências.
Em todo o caso, parece evidente que a televisão, pelo seu imediatismo e alegadamente devido à sua natureza, encontrou no jornalismo a expressão aparentemente mais ajustada ao seu modo peculiar de dar a ver o mundo. Por essa razão, as rotinas produtivas da informação televisiva, em particular da reportagem, afirmaram-se de um modo gradual como elementos legitimadores de um efeito de apropriação do filme documentário, impondo formatos, condicionando o tempo e o modo de dizer e remetendo para a palavra o lugar central de instância reguladora do sentido. Prevalecendo o enunciado do texto sobre a lógica das imagens, abriu-se espaço ao oposto do olhar documentário fundado sobre o primado do sistema de significação da imagem cinematográfica.
Explicitar e compreender este tipo de contaminação exige uma nota adicional e um ou outro comentário. Por via de regra, a reportagem é previsível: texto off, entrevista, repórter em campo assinalando a sua “presença no local”. Em muitos casos, a mediação jornalística é minimal e insere-se numa perspectiva de go between, embora este jornalista mensageiro, tendo capacidade de representação, possa alcançar notoriedade e tornar-se uma espécie de oráculo seja do que for como, ironicamente, demonstrou Alain Woodrow. Concebida para ser exibida num contexto de ruído, tendo de conviver com informações variadas passando ininterruptamente em rodapé, ocupando um espaço saturado de signos, a reportagem tende a tratar os assuntos, por mais sérios que sejam, como fait divers. E fá-lo sem especial preocupação de ordem sígnica ou sintagmática. De acordo com Hartley a necessidade de alcançar o máximo de audiência num medium popular como a televisão obriga o jornalismo a servir dois donos: “info” and “tainment”.
Naturalmente, mesmo na televisão comercial generalista, há gradações no modo como se encara este fenómeno. A fórmula existe mas não quer dizer que seja igualmente aplicada em todas as estações. Tão pouco se pode concluir que os formatos híbridos da televisão sejam necessariamente negativos do ponto de vista do alargamento da esfera pública. E quanto aos canais especializados de notícias, de que a CNN foi pioneira, há até um conjunto de prescrições que a globalização veio legitimar e que basicamente consiste em apresentar as notícias dramaticamente sem, todavia, as transformar em drama, expor os assuntos de forma acessível e compreensível, mas sem exceder a duração de 30 minutos e, tendo embora consciência de que todos os shows de notícias se assemelham, procurar introduzir marcas de diferenciação.
Só que essas diferenças são ténues e dificilmente haverá abertura para sobressaltos criativos eventualmente perturbadores da percepção dos destinatários habituais. A fonte da confusão muito disseminada entre reportagem e documentário passa exactamente por aí, porque se criou um dispositivo estereotipado e rarefeito de representar o mundo através de uma linguagem relativamente arbitrária, ancorada num hibridismo formal oportunista que reclama para si, como elemento de legitimação, a objectividade jornalística. Por isso, para os pragmáticos programadores de televisão os documentários com autoria são quase sempre considerados disfuncionais e, como tal, o melhor é produzir algo de vagamente semelhante sob a responsabilidade de produtores supostamente especialistas no conhecimento e gosto do público ou de jornalistas com notoriedade, também eles, supostamente especialistas em garantir audiências. Ou seja, os documentários devem encarados como programas.
Provavelmente, caso essa tendência dos programadores fosse contrariada, abrir-se-ia o caminho a uma maior e mais interessante variedade de leituras sobre o mundo histórico o que, no caso da televisão de serviço público poderia corresponder a uma nova hipótese legitimadora: a diversificação, permitindo o acesso do público a representações do real à margem dos estereótipos informativos dominantes, seria um passo em frente no domínio do conhecimento dos mecanismos da construção da realidade com benefício para o exercício da cidadania. Tal, porém, com excepção de experiências interessantes na televisão segmentada, dificilmente acontecerá. A televisão não serve para oferecer programas ao público, mas para oferecer público aos anunciantes. Quem o disse foi Berlusconi.
Por estas e outras razões os documentários de televisão – ao contrário do filme documentário sobre o qual há trabalho teórico relevante – continuam a ser objectos mal identificado, ambíguos e até, eventualmente, suspeitos. É difícil estabelecer-lhes os contornos e problemático atribuir-lhes um estatuto de credibilidade em nome da regularidade de uma produção que faz da audiência o seu referencial estruturador. No estádio actual do seu relacionamento com o real o actual modelo de televisão parece, pois, ter chegado a um ponto limite: o mundo é cada vez mais a televisão e a televisão a espuma dos dias.
Dizia o jornalista e documentarista Danny Schechter sobre os serviços informativos das principais networks americanas: the more you see, the less you know. Outros, como Chomsky, simplesmente compararam os grandes conglomerados de media a gigantescas centrais de propaganda. E para James McEnteer o efeito Fox News sobre as grandes corporações produtoras de notícias de televisão na cobertura da guerra do Iraque acabou por desacreditar o sistema no seu conjunto e abrir as portas para uma entrada em cena com um vigor sem precedentes do documentário político. Depois de fazer referência às somas astronómicas conseguidas na bilheteira pelos filmes de Michael Moore Bowling for Columbine e Fahrenheit 9/11 – este último fez 120 milhões de dólares, só nos Estados Unidos, durante o primeiro mês de exibição –, McEnteer lembra que oito dos dez documentários mais rentáveis de sempre nos Estados Unidos foram realizados a partir do ano 2002, e avança a seguinte explicação:
“Há na América uma grande necessidade de compreender o que, na realidade, está a acontecer. Estes filmes vêm dar resposta a essa necessidade. E essa necessidade é tanto mais sentida quanto maior se tornou a concentração da propriedade dos media noticiosos, com as consequências daí decorrentes em termos corporativos e de trivialização das notícias com o afunilamento do espectro informativo. Em vez de inovação e investigação, há repetição e imitação (McEnteer: 2006)”.
Um argumento sobre o mundo histórico
Na sua vertente mais elaborada, ou seja a da filiação cinematográfica, o documentário assenta no reconhecimento de um conjunto de valores de referência cujas premissas podem ser assim resumidas de acordo com o pensamento de Miriam Bratu Hansen:
“O cinema foi o mais singular e expansivo horizonte discursivo no qual os efeitos da modernidade foram reflectidos, rejeitados ou negados, transformados ou negociados. Foi um dos mais claros sintomas da crise pela qual a modernidade se deu a ver, tansformando-se, ao mesmo tempo, num verdadeiro discurso social, através do qual uma grande variedade de grupos humanos se procurou ajustar ao impacto traumático da modernização (Grilo: 2006)”.
Os mecanismos de significação e de construção da narrativa obedecem, naturalmente, a um movimento pendular que oscila em busca da forma mais justa, sendo por isso objecto de constantes mudanças de rumo ditadas quer pela contingência e pelos imprevistos da Esta formulação remete para o álbum de família de Patrício Guzmán. Obviamente, ao filme documentário também não são estranhas as noções de verdade e objectividade, uma e outra fazendo parte do contrato que se estabelece não apenas com o espectador, mas também no complexo processo de negociação envolvendo o cineasta, as suas personagens e uma multiplicidade de instituições. Neste caso, porém, ao exprimir o seu ponto de vista o autor não prescinde de pôr em cena situações e personagens em função da subjectividade decorrente do seu modo peculiar de ler o mundo, naturalmente, escorado em compromissos que são, também, tanto de natureza ética quanto estética. O documentarista constrói a narrativa que entende dever construir e não narrativas pensadas exclusivamente para responder de forma mais ou menos casuística àquilo que se supõe ser o gosto da audiência. Ao proceder desse modo está, de resto, a mostrar o respeito que ao público é devido. Ele diz: eu penso isto, mas deixa implicitamente uma outra pergunta: e vocês?rodagem, quer no processo de montagem onde ocorre uma espécie de revisitação do olhar a partir da qual a estrutura ganha autonomia a ponto de em boa medida se determinar a si própria, impondo determinadas soluções. Como diria um grande pintor português, Nadir Afonso, num filme que fiz sobre ele, as formas tornam- se exigentes. Nesse sentido, a excelência do discurso será um critério superior de exigência. Os argumentos sobre o mundo histórico estão, portanto, sujeitos à intervenção permanente da imaginação criadora. Não são textos redigidos para depois serem meramente ilustrados como sucede na reportagem televisiva.
Em suma, o enorme potencial do filme documentário (e também do filme de não-ficção, para utilizar uma expressão de Plantinga) como forma de negociar valores, veicular informação e dar-nos a conhecer o mundo histórico faz dele, assumidamente,
“(...) um veículo de verdades e enganos, de registo e manipulação, de equilíbrios e ideias e pré-concebidas, de arte e técnica mecânica, de retórica e informação imediata. Os filmes de não-ficção são representações complexas com uma infinita diversidade e multiplicidade de usos. Tal é a sua complexidade retórica e pragmática que para nos aproximarmos deles não basta uma abordagem meramente teórica: a sua compreensão exige a atitude crítica e o recurso à história (Plantinga: 1997)”.
Concluindo, aceitar a inevitabilidade das contradições é um primeiro passo para pensar o documentário em profundidade, o que implica não fechar a porta a lógicas de enunciação criativas sustentadas por gramáticas particulares e em especial pela ordem do cinema. Por isso, neste pujante regresso ao real no início do século XXI é de elementar prudência mais a abertura à diversidade do que a defesa de pontos de vista sistematicamente reiterados numa atitude de resistência. Será esta a posição mais exigente e, também, a mais difícil, porque se obriga a questionar, por um lado, aquilo que na tradição do cinema cristalizou em dogma – uma história que ficará para outra altura – e, por outro, a combater a contaminação sem regras nem princípios de dispositivos televisivos cujos resultados estão à vista e se rejeitam.
I think it is very important that films make people look at what they've forgotten - Spike Lee
Bibliografia
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Porto, 16 de Outubro de 2009
Jorge Campos
Entrevista com Brian Winston
por Jorge Campos
“No trabalho teórico de Vertov sobre questões como a representação, a autenticidade ou a manipulação encontram-se melhores respostas do que em Flaherty ou Grierson”.
Uma vez que vem aí o DOC'S Lisboa, o ciclo de Fotografia e Cinema Documental Imagens do Real Imaginado do Departamento de Artes da Imagem da ESMAE e porque dou esta semana as primeiras aulas de História e Teoria do Documentário no mestrado de Comunicação Audiovisual da ESMAE, resolvi recuperar dos meus arquivos mais um dos muitos documentos que por lá se acumulam. A entrevista que se segue com Brian Winston foi feita na fase final da Odisseia nas Imagens - Porto 2001 Capital Europeia da Cultura. Brian Winston trabalhou durante muitos anos para a BBC, da qual foi correspondente nos Estados Unidos. Realizou inúmeros trabalhos para televisão, entre os quais um número significativo de documentários. Num dos seus livros mais recentes Lies, Damn Lies and Documentaries dá conta das falsificações que têm sido levadas a cabo na televisão britânica com o intuito alcançar ganhos de audiência. Em 1999 publicou no BFI, Fires were started, uma análise exaustiva do filme de Humphrey Jennings com o mesmo nome e que é um clássico da escola documentarista britânica. Vencedor de um Emmy para argumento de documentário nos Estados Unidos, Brian Winston é o director da School of Communications da Universidade de Westminster. Esta entervista, apesar de ter já alguns anos, nem por isso perdeu actualidade, uma vez que permite fazer um balanço de alguns dos aspectos nucleares para a compreensão do filme documentário. Autor de Claiming the Real, uma obra publicada em 1995 que veio inovar a história institucional do Documentário, promovendo, inclusivamente, uma revisão profunda em torno de alguns dos seus eixos até então indiscutíveis, Winston, se outro mérito não tivesse, teria, pelo menos aquele de abalar certezas adquiridas e abrir as portas a novos campos de investigação.
P. Como e quando escreveu Claiming the Real?
R. Levei 18 anos a escrevê-lo. Há muitos anos, em 1979, pediram-me um artigo para o Festival de Televisão de Edimburgo. Foi essa a primeira vez que escrevi sobre o filme documentário. Esse artigo foi depois reproduzido pela Sight and Sound, a revista do British Film Institute. Fiquei amigo da editora, Penelope Huston, e passei a colaborar com a revista regularmente. Escrevi sobre Grierson, Riefensthal, e muitos outros. A determinada altura tinha um livro.
P. O livro tornou-se muito polémico...
R. Sim? Não estou certo disso. As questões levantadas ao tempo da publicação já não eram assim tão controversas na Grã Bretanha, onde de há muito havia juízos muito críticos em relação a Grierson. Noutros países, e especialmente nos países latinos onde não há muita informação sobre estas matérias, é natural que pessoas que literalmente endeusavam Robert Flaherty ou John Grierson, se tenham sentido chocadas. Entre nós isso não aconteceu. O que o livro faz é explicitar muitas das críticas formuladas ao longo dos anos sobre esses e outros autores e reequacionar, em função desses pontos de vista, algumas ideias chave a propósito do filme documentário.
P. Nessa linha de pensamento como situa, então, Flaherty e Nanook of the North?
R. Em primeiro lugar há um juízo de carácter político, digamos assim, em relação a todo o percurso de Flaherty, que fez uma espécie de carreira imperial. Os mares do sul, o norte do Canadá, a Índia e a Irlanda eram lugares coloniais ou quase coloniais. O impulso que o moveu era semelhante ao que levou Jean Rouch, em 1960, a fazer um filme sobre uma estranha tribo parisiense, que foi Cronique d’un Été. A determinada altura, esta inclinação de Flaherty por um certo exotismo começou a ser questionada. Começou a perceber-se que o filme sobre o povo innuit não era sobre o modo de vida desse povo em 1920, mas em 1880. Surgiu, também, a evidência de numerosas falsificações, como sejam a construção do igloo de Nannok, que, na verdade, nunca tinha construído um igloo, do mesmo modo como nunca tinha caçado da maneira que o filme mostra. Depois, soube-se que Flaherty teve uma relação com uma esquimó de quem teve um filho, Joseph, cuja filha, por sua vez, veio a dirigir o movimento das mulheres innuit, ou seja, houve um acumular de dados que lançou a suspeita sobre alguns aspectos do seu trabalho. Muita gente teria preferido não evocar estes episódios e deixar o mito de Flaherty tal qual fora construído. Provavelmente, essas pessoas terão encarado a divulgação dos factos como um ataque... De qualquer modo, no meu livro eu nunca nego a importância de Flaherty, porque, o que ele fez, independentemente de ser aquele ou não o modo de vida dos esquimós, foi pegar num assunto e transformá-lo numa história e é isso que é fundamental quando se trata do filme documentário. Foi isso, também, que John Grierson reconheceu.
P. Dziga Vertov, qual é o seu comentário a propósito deste homem que, ao que se sabe, não era especialmente estimado, por exemplo, por John Grierson?
R. Eu, pelo contrário, gosto muito de Vertov. Grierson não gostava, mas eu penso que Vertov é extraordinariamente interessante. Claro que falando dele é impossível passar ao lado da política. Ele não era leninista, foi contra a Nova Política Económica na U.R.S.S. e não se deu nada bem com o estalinismo. Mas até por isso se tornou uma figura simpática. Do que não restam dúvidas é que numa era de pensamento pós-moderno, o seu trabalho é cada vez melhor compreendido e cada vez mais estimulante.
P. Continua a pensar que O Homem da Câmara de Filmar é um filme estimulante?
R. É um filme que encerra muitas lições. No início de Cronique d’un Été, Jean Rouch diz estar a procurar fazer um filme em busca da verdade, o cinéma-verité. Vertov fez uma série de filmes de actualidades, o Kino-Pravda, que quer dizer justamente cinéma-vérité. Penso que no trabalho teórico de Vertov sobre questões como a representação, a autenticidade ou a manipulação se encontra melhores respostas do que em Flaherty ou Grierson.
P. Porque razão Claiming the Real é tão crítico, e até cáustico, em relação ao movimento do realismo britânico?
R. Pela representação que fez de si mesmo. Grierson sempre se apresentou a si próprio como um cineasta radical que estava a contribuir para resolver os problemas do seu tempo. Mas, não fez nada disso. Fazia filmes que se algum efeito tiveram, e vamos partir do princípio que esses filmes foram vistos por aqueles que eram suposto vê-los, o que também não é certo, foi um efeito paliativo, ou seja, lançava poeira aos olhos do descontentamento público. Em Housing Problems, por exemplo, denuncia condições de habitação miseráveis, mas, depois, vem dizer que tudo se resolve porque a companhia de gás vai construir casas...
P. Propaganda?
R. Sim, mas para o estado liberal e burguês. Claro que nos anos 30, dada a situação internacional, com a emergência dos estados fascistas na Itália, Alemanha e Espanha, isto até podia parecer menos mal. A questão repito, é que Grierson se apresentava ao resto do mundo como um revolucionário e ainteligentsia via-o como um artista proletário. Enquanto isso recebia dinheiro do governo conservador para fazer os seus filmes e, seguramente, o preço que teve de pagar por isso não autorizou uma grande coerência.
P. Nos anos 30 e 40, dada a situação em que o mundo se encontrava, o documentário envereda muitas vezes pelos caminhos da propaganda. É o caso de Why we Fight de Frank Capra...
R. É uma série fantástica. A propaganda não me incomoda. O que contesto é a assumpção de um conceito de objectividade que ninguém consegue provar. Why we Fight não deixa dúvidas, não dá lugar a equívocos, não está do lado de Hitler.
P. Capra utiliza vezes sem conta imagens, por exemplo, de Leni Riefensthal, dando-lhes um outro sentido...
R. Inteiramente razoável, como o demonstrou a cineasta soviética Esther Schub, autora de The Fall of the House Romanov, filme feito com imagens do tempo do czar. Capra adoptou o mesmo procedimento. Não tenho nenhuma espécie de reserva em relação a esse procedimento. A mentira reside no facto de pretender que o ponto de vista não existe e não vejo nenhum problema em expressar esse ponto de vista, mesmo que seja terrível, como no caso de Riefensthal. Sendo fascista não pode ser acusada de ter pretendido ser objectiva. Toda a gente sabe o que vai encontrar nos seus filmes.
P. Num dos episódios de Why we Fight intitulado The Battle of Russia, Capra consegue dar uma visão inteiramente positiva da U.S.R.R. o que, à época, para um americano médio, seria totalmente incompreensível. Tratava-se, evidentemente de propaganda, mas era, também, uma forma muito hábil de intervir politicamente. Parece-lhe que a natureza do filme documentário conduz às questões políticas?
R. Não creio que seja exactamente assim. Coloco a questão de outra maneira. Acredito que o documentário tem um compromisso muito profundo com o realismo e com a representação realista. O realismo, a partir da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, é uma corrente altamente politizada. Veja-se o que se passou, por exemplo, com a pintura realista francesa do século XIX e com pintores como Courbet. Nessa tradição, enquanto texto realista, também o documentário se insere numa linha politizada, ainda que se possam fazer documentários sobre pinguins – e fazem-se – interminavelmente...
P. Passemos então ao Cinema Directo. Basic Training, de Wiseman. Um comentário…
R. Adormeci. (Risos)
P. Não gosta, então, de Wiseman?
R. Tenho alguns problemas a propósito do trabalho dele. Quanto tempo tem Basic Training? Duas horas? Três horas? Duas horas para Wiseman, digamos que é uma curta metragem. Seis horas, isso é uma longa metragem, o que confere ao seu trabalho um carácter opressivo. Dito isto, considero-o um cineasta brilhante e, sobretudo, um editor fabuloso. Mas, há nos filmes dele uma contradição profunda. Por um lado, ele diz-nos que nos dá a evidência, que deixa marcas que permitem seguir um rasto a partir do qual podemos tirar as nossas conclusões. Mas, por outro lado, ele é o grande artista que nos diz não se atrevam a tocar num só dos meus fotogramas, senão processo-vos, etc. Em que ficamos? Dá-nos a evidência, o fly on the wall, ou é um grande artista. Esta é uma das contradições docinema directo. Para mim ele é cada vez mais um grande artista e não faz muito sentido a reivindicação de ver tudo ou observar tudo.
P. Há diferenças, hoje, por exemplo, entre o modo como documentário é encarado, por um lado, nos Estados Unidos e no Reino Unido e, por outro, em França?
R. Seria mais fácil responder a essa pergunta há uns 10 ou 15 anos. A tradição francesa é mais pessoal, mais poética, menos jornalística e menos ligada à reivindicação da objectividade. Nunca ninguém ousaria dizer que, por exemplo, Nuit et Bruillard de Resnais, é uma abordagem objectiva. O mesmo se pode dizer de Toute la Memoire du Monde ou de filmes de Franju como Hotel des Invalides. Os documentários franceses clássicos do pós-guerra são, pois, pessoais e poéticos e nem mesmo quando utilizam os novos equipamentos mais leves e flexíveis do cinema directo, como Jean Rouch emChronique d’un Été, há qualquer intenção de objectividade. Pelo contrário, Jean Rouch, diz-nos: muito bem, não posso dizer-vos a verdade, mas talvez vos possa transmitir alguma espécie de verdade; vou mostrar-vos o que estou a fazer e mostrar-vos o que pensam as pessoas que entram no filme sobre o que estou a fazer. Este tipo de coisas não passaria pela cabeça de britânicos ou americanos. Nesse sentido, havia uma diferença óbvia. Porém, não creio que isso seja mais assim. Porquê? Devido à influência do “realismo” da televisão, de um jornalismo que invade todos os domínios.
P. E isso, portanto, é indesejável?...
R. É, na medida em que retira legitimidade a outras abordagens. Dantes tínhamos documentários poéticos, pessoais, etc, etc... Agora apenas nos é permitida a câmara ao ombro da reportagem, o registo sem surpresa e isso é muito mau. Primeiro, porque limita a variedade de expressão e, depois, porque, na maioria dos casos, é lixo. Não devia ser assim. Mas, infelizmente, os operadores de televisão estão hoje numa posição ideológica muito forte.
Documentário Português
Da urgência do presente à memória do futuro
Por Jorge Campos
Publicado em docs.pt 03, Lisboa, Junho de 2006
Quinta-feira, 2 dia de Maio de 2006. Há um jornal onde leio que Portugal é o país da Europa onde os cidadãos menos se interessam pela política. Um outro anuncia-me uma quase completa ausência de auto-estima por parte dos meus concidadãos. Um terceiro oferece-me uma primeira página demolidora: em manchete, caracteres gordos, vem lembrar-me que 85 por cento dos pensionistas recebe pouco mais de 350 euros mensais; abaixo, foto a toda a largura, vultos sem rosto diante do portão de uma fábrica, mais 250 que acabam de ser despedidos; no canto superior esquerdo a imagem de um cachorro impecavelmente tosquiado, vestido a rigor para o Inverno (de amarelo) e com um chapéu (verde) de aba larga que ilustra um título segundo o qual os portugueses gastam anualmente mais de 200 milhões com os seus animais domésticos. Perante o rosto deste jornal, por deformação ou vício de associar o real e a sua representação ao olhar documentário revi instintivamente cenas de Umberto D., de Vittorio De Sica, Roger and Me, de Michael Moore e Gates of Heaven, de Errol Morris. Não me ocorreu, porventura injustamente, a memória de nenhum filme português. Mas, à noite, numa pequena sala do Porto que arrisca incursões nesse outro cinema fui ver os Lisboetas, de Serge Tréfaut.
Lisboetas é um daqueles filmes raros no cinema documental português contemporâneo. Aborda um tema pertinente, o quotidiano dos estrangeiros que demandaram Portugal em busca de melhores condições de vida e encontraram um país, como quase sempre acontece nestas ocasiões, diferente do imaginado. Mantendo um registo de observação, do qual é indissociável uma ética impecável de respeito para com o outro, compondo um quadro de situações mais do que uma rede narrativa baseada na relação e construção de personagens, mas ainda assim, revelando um apurado sentido de descoberta do que de mais contingente e pungente reside na condição humana, o filme, na aparente fragilidade da sua lógica discursiva, opera o prodígio de nos dar a nós, portugueses, uma imagem imprevista do país que somos através de um olhar diferente. Esse olhar é tanto o dos emigrantes à deriva pelas ruas e lugares de Lisboa em busca de um futuro no presente incerto, quanto o do próprio Tréfaut que, recusando efeitos de retórica e investindo numa série de combinações de montagem, se faz intérprete de uma situação conhecida, mas nunca antes assim revelada.
Isso acontece por razões que se prendem com a melhor tradição do documentário social, desde sempre associado a um conjunto de circunstâncias que lhe permitem proceder ao escrutínio dos sinais dos tempos, mas que em Portugal tem sido episódico. Explico-me. Aparentemente, o documentário português está numa encruzilhada. Se nos últimos anos conheceu um desenvolvimento sem precedentes, constituindo uma comunidade de praticantes alargada e capacitada para poder configurar o embrião de um movimento, nem por isso logrou ainda alcançar um grau de sofisticação teórica e de maturidade organizativa que lhe permita enfrentar com naturalidade os desafios que lhe são colocados. Apesar de um corpo de filmes relevante, ainda que relativamente reduzido, parece haver uma crise de identidade cuja razão de ser pode estar relacionada com um problema de memória, sem a qual não é possível encontrar as ferramentas mais ajustadas para enfrentar o presente e pensar o futuro. Com efeito, na ausência de uma História do Documentário Português – o que temos são Histórias do Cinema Português, nas quais, de quando em vez, se faz referência ao documentário ou tentativas meritórias, como a de Luís de Pina, de fazer uma cronologia do filme documentário – faltam referências a partir das quais possam construir-se itinerários sistematizados. Há, naturalmente, percursos individuais. Mas, quando se aborda o percurso institucional os fantasmas erguem-se em torno da falta de apoios, organismos que tutelam mais por obrigação do que por sentido de missão, júris problemáticos, operadores de televisão obsoletos, enfim um coro de dificuldades certamente fundamentado, mas cuja sombra relega para segundo plano a questão central de saber o que se pretende fazer, o que é urgente dizer e filmar. E como.
Assim sendo, parece razoável constatar uma perplexidade que não tem de ser necessariamente negativa e que, do meu ponto de vista, tem origem numa crise de crescimento, a qual, aliás, não é exclusiva do caso português, mas que, por razões de conjuntura é particularmente sentida entre nós. A vários níveis. Um exemplo: o problema clássico e recorrente da distinção entre documentário e ficção. Convoco duas posições conhecidas.
Para Godard, “todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção. (...) E quem optar a fundo por um deles encontra necessariamente o outro no fim do caminho (Godard, 1985) ”. Para Guynn “é precisamente contra a ficção e as suas tradições que se foi constituindo a teoria do documentário (Guynn, 2001)” e isto porque o quadro institucional do seu percurso histórico assenta, fundamentalmente, sobre três pilares: em primeiro lugar, o documentário tem a sua filiação natural num cinema liberto dos constrangimentos impostos por procedimentos recorrentes de outras artes como a literatura e o teatro; em segundo lugar, o documentário situa-se a si mesmo, no plano institucional, por oposição ao cinema de ficção, propondo uma crítica da suas condições de financiamento, produção e distribuição; finalmente, o documentário proclama o ‘realismo’ do seu discurso por oposição ao mundo imaginário da ficção, assumindo uma função ‘natural’ na sua relação com o seu objecto ‘natural’. Em suma, “o documentário distingue-se não somente pelo seu ‘conteúdo’ específico, as suas formas e os seus métodos, mas também pelo lugar que assume enquanto formação social (Guynn, 2001)”.
Entre nós, porventura na ausência de memória sobre o percurso e os contornos deste debate, de forma mais ou menos explícita, tenho ouvido defender que tudo é basicamente igual porque tudo é basicamente cinema. Cinema será, certamente. Mas esta atitude, essencialmente defensiva, como se alguma coisa de sagrado estivesse em risco de se perder, ilude as questões e fragiliza a capacidade de intervenção institucional da comunidade de praticantes que, justamente, encara o documentário como veículo privilegiado de interpelação do real e, nessa medida, pode reclamar para ele o estatuto de bem público. Pelo contrário, a opção por um cinema receoso de ir à luta, resistente à transversalidade das formas e linguagens, fechado sobre si próprio a pretexto da poética, sendo dificilmente compatível com os paradigmas da modernidade, quando muito dará origem a uma espécie de peregrinação em busca do Santo Graal.
Daí a necessidade, neste como noutros domínios, de uma clarificação, aliás, recorrentemente sentida sempre que situações semelhantes, salvaguardadas as respectivas especificidades, se colocaram no passado. Por exemplo, em 1935, numa altura em que o movimento documentarista britânico conhecia, também ele, uma crise de crescimento e se multiplicavam as suas tendências, Paul Rotha procurou sistematizar o conhecimento, entretanto, adquirido. Em Documentary Film identificou a tradição do documentário em função de quatro tendências: a naturalista ou romântica, que surgiu com os primeiros filmes de Flaherty; a relacionada com as vanguardas artísticas dos anos 20; a associada a newsreels e cuja deriva mais arrojada corresponde ao trabalho de Dziga Vertov; e, finalmente, a que resulta da convivência do cinema com a propaganda: “onde quer que o cinema se encontre ao serviço do lucro tem tendência para se situar na esfera da tradição do estúdio, ao passo que o cinema ao serviço da propaganda e da persuasão tem sido largamente responsável pelo método do documentário (Rotha, 1970)”.
Este tipo de exercício, na medida em que reflectindo sobre o passado lhe foi conferindo um sentido prospectivo, permitiu ir desenhando o mapa plural a partir do qual se foi construindo a História e Teoria do Documentário. Evidentemente, as referências contidas nesse mapa não são um espartilho, antes abrem perspectivas, e cada criador escolhe o seu caminho respondendo a um impulso interior cuja explicitação depende apenas de si e da sua peculiar relação com o mundo. Nesse sentido, houve e há uma grande variedade de vozes, como acontece em Portugal, tanto mais que a mudança de paradigmas sustentada pelos self media confere uma ainda maior liberdade de criação. Mas, tratando-se de intervir criativa ou institucionalmente, o mapa é um auxiliar precioso da acção e essa parece ser uma lacuna ainda por resolver no documentário português, apesar da ponderação que nos últimos anos tem vindo a ser feita das suas práticas.
Está por fazer, por exemplo, uma História Crítica em função da qual se possa ter uma visão de conjunto dos seus principais episódios, protagonistas, implicações políticas, filiações artísticas e vínculos comunicacionais, porventura numa lógica transdisciplinar, cruzando o cinema com áreas de investigação do âmbito dos estudos culturais. De forma mais localizada, seria igualmente relevante recuperar, sistematizar e dar visibilidade ao que foi o trabalho documental dos cineastas responsáveis pelo Cinema Novo, do qual se diz ter alguma relevância, apesar de cultivado apenas como meio de passagem para a ficção, mas do qual pouco se fala e, em rigor, pouco se conhece. Em qualquer dos casos, não se trata de andar à procura da arca do tesouro, mas trata-se, seguramente, de identificar elos perdidos e assim ter uma visão mais completa das diferentes variáveis com influência no documentário em Portugal.
Esta pesquisa não pode, naturalmente, desenvolver-se à margem da produção e da criação. Do ponto de vista operativo, seguramente contribuiria para atenuar equívocos de ordem conceptual que reiteradamente se verificam. Por exemplo, muitos projectos apresentados no ICAM aos concursos destinados ao documentário de criação, embora contendo abundante material informativo, raramente deixam transparecer um olhar ou um ponto de vista sobre o assunto, pelo que talvez fizesse mais sentido colocá-los nos concursos de apoio à produção audiovisual. Estes equívocos alargam-se, a um outro nível, ao modo como o serviço público de televisão programa os seus conteúdos de informação e não ficção.
Cabendo-lhe uma tarefa de regulação simbólica, com todas as consequências daí decorrentes a montante e jusante da antena, natural seria que procedesse de acordo com uma estratégia coerente de programação das diversas representações do real ampliando, desse modo, o leque de possibilidades de leitura do mundo. A reportagem e o documentário televisivo têm o seu lugar devendo, em qualquer dos casos, obedecer a critérios de exigência. Mas, deveria ser igualmente contemplada a presença regular do documentário ao qual preside o olhar do cinema. Um filme como Lisboetas, de Serge Tréfaut faz muito mais pela compreensão de um problema com o qual Portugal tem de saber lidar do que qualquer reportagem exibida num telejornal. O mesmo poderia dizer-se de O Quarto da Vanda, de Pedro Costa em relação à segregação e toxicodependência, de A Dama de Chandor, de Catarina Mourão sobre a presença portuguesa no mundo ou das Enfermeiras do Estado Novo, de Susana Sousa Dias sobre a resistência ao fascismo. É verdade que todos estes três últimos filmes foram exibidos na RTP, como, aliás, aconteceu com outros e é positivo que isso tenha acontecido. Mas não basta mostrar. É preciso programar.
Termino como comecei. Historicamente, o filme documentário foi sempre assumindo formas e encontrando soluções de modo a dar resposta às questões da actualidade. Chris Marker, perante a entropia informativa das sociedades mediáticas, defendeu que nunca como agora houve tamanha urgência de imaginar o real. Naturalmente, a urgência do documentarista é sempre resultante da necessidade de ler o mundo e as suas personagens, daquilo que ele entende ser necessário dizer e como. Daí a pertinência de conhecer as suas prioridades, saber o que o move. Essa clarificação de propósitos, sobretudo para quem faz do documentário a primeira opção criativa, é essencial à coerência de um percurso que se pretenda construir. Ora, a verdade é que o documentário português, propondo-se tratar de muita coisa, parece assumir um relativo distanciamento em relação a matérias como aquelas que fizeram as manchetes do jornal que mencionei ou a outras de igual relevância do nosso quotidiano. É apenas uma nota, mas as citações que fiz de Paul Rotha em Documentary Film não foram inocentes. Além do mais, o livro tem o seguinte subtítulo: The use of the film medium to interpret creatively and in social terms the life of the people as it exists in reality.
Referências bibliográficas
Godard, Jean-Luc – Jean Luc-Godard par Jean-Luc Godard, Edition de L’Étoile, Paris, 1985.
Guynn, William - Un cinéma de Non-Fiction - Le documentaire classique à l’épreuve de la théorie, Publications de l’Université de Provence, Aix-en-Provence, 2001.
Rotha, Paul (in collaboration with Road, Sinclair and Griffith Richard) – Documentary Film (The use of the film medium to interpret creatively and in social terms the life of the people as it exists in reality), Communication Arts Books, Hastings House, Publishers, New York, 1970.
Porto, 9 de Abril de 2005.
ENTREVISTA COM JAVIER RIOYO
por Jorge Campos
"Há que destruir muitos preconceitos e frases feitas."
P. Do seu ponto de vista o documentário é um cinema livre?
R. Creio que sim. Será até o cinema com maior liberdade. Embora o conceito de liberdade me leve a encará-lo com algum temor, não duvido, por exemplo, que face ao cinema de ficção o documentário goze de muita mais liberdade. Faz-se com um guião menos fechado, com um orçamento que nos permite maior liberdade de movimentos, com maior ligeireza de equipamentos, tem menos compromissos institucionais, está mais aberto, não tem actores que cobram fortunas...
P. Portanto, de alguma maneira, vai-se construindo a si mesmo...
R Sim, é mais uma história que começa com uma ideia ou com uma intenção e que se vai concretizando numa perspectiva em que é sempre possível integrar coisas novas e inesperadas que acontecem entretanto. O documentário tem essa virtude de estar aberto seja no processo de rodagem, seja no processo de montagem. Há muitas coisas nas quais não reparamos na rodagem, mas que emergem quando se está em montagem.
P. Há uma ideia de que em Espanha há um interesse crescente pelo documentário. Isso é verdade?
R. Há um crescimento. Houve um momento durante a transição política, na parte final do franquismo em que havia a consciência da necessidade do documentário. Mas, com o advento da democracia houve uma pausa, como se o documentário tivesse deixado de ser necessário, e começaram a comprar-se muitos programas históricos ou sobre a natureza. Houve portanto um interregno que seria entretanto superado, no início com muitas dificuldades, mas hoje não há dúvida de que o movimento documenraista retomou o seu rumo e continua a progredir.
P. Apesar desse progresso, que parece ser de algum modo generalizado, há quem diga que a televisão está a matar o documentário...
R. Não, eu não penso assim. Penso que o documentário deve ter um percurso de salas, de ciclos e de festivais, mas creio que o percurso natural é cada vez mais a televisão. A televisão está cheias de coisas boas e de coisas más. É certo que a programação de documentários pode incorrer alguns riscos, porque se trata de exibir algo que tem muito de experimental e de vôo livre. Mas se os documentários forem bem programados, em horários apropriados e não relegados para horários impossíveis, poderão ser vistos com o mesmo agrado como se vêm as boas séries ou os filmes de ficção. O que não se pode é remeter o documentário para um território marginal atribuindo-lhe um estatuto demasiado cultural e didáctico.
P. Parece haver em tudo isto uma contradição. Muitos programadores argumentam que o documentário é naturalmente aborrecido e inadequado para ser mostrado ao grande público. Entretanto, o interesse crescente pelo documentário parece resultar justamente do facto de ser exibido pela televisão.
R. Há que destruir muitos preconceitos e frases feitas. Talvez nos conformemos demasiado e estejamos realmente fartos de coisas que são realmente previsíveis e aborrecidas e que vêm do mundo da ficção. Quantas telenovelas ou historietas que são realmente mentalmente reduzidas e aborrecidas são o alimento quotidiano de tanta gente, quando se virmos um documentário que tem paixão dentro de si e que tem entretenimento pode ser uma história muito mais estimulante e divertida do que programas de pura evasão.
Nessa medida, a interpelação do real, que é interpretação, manifestando-se pelo modo de dizer e pelo que é dito, resulta sempre de tecnologias, as quais, sendo indutoras de linguagens, delimitam igualmente o espaço a partir do qual se concretiza a relação com o público. Nos filmes de Michael Moore, por exemplo, há um dispositivo cinematográfico ao qual estão associados, tal como nos filmes de Tarantino, recursos e significantes de uma paleta muito alargada, das imagens de arquivo às imagens in loco, da música pop aos jogos de vídeo, do cinema de animação à reportagem televisiva, da comédia clássica à agit-prop. A sua eficácia resulta disso mesmo. Assentando numa estratégia de significação que acolhe múltiplos contributos provenientes da cultura de massas, Roger and Me, Bowling for Columbine ou Farhenheit 9/11 tanto podem ser exibidos em sala quanto passam no pequeno ecrã ou circulam em DVD.
Nenhuma destas questões é estranha ao documentário português contemporâneo, sobretudo quando não parece excessivo admitir a emergência do embrião de um movimento documentarista em Portugal. Finalmente. Mas, no nosso caso temos um problema óbvio com a historicidade. Falta-nos a memória e o pensamento teórico que são património de outros países onde o movimento documentarista se foi afirmando ao longo de períodos mais ou menos alargados e em contacto com experiências tão diversas quanto o foram as vanguardas artísticas dos anos 20 e 30, o estilo de jornalismo cinematográfico de March of Time, o experimentalismo do pós-guerra, nomeadamente em França com o movimento dos 30, as aventuras do direct cinema, do cinema-vérité e do free cinema, para já não falar da complexa rede de relações entre o documentário e a televisão nos países anglo-saxónicos, de um modo geral, e nos Estados Unidos, em particular. Sem nada de comparável a estas experiências – e é bom não esquecer que tivemos meio século de ditadura e, já agora, as chamadas de atenção de António Ferro para a “lamentável qualidade do documentário português” do seu tempo – o que parece ter prevalecido foi uma tendência natural, dado o prestígio de alguns cineastas portugueses contemporâneos, para fazer uma leitura do documentário ajustada a critérios que basicamente presidem ao cinema de arte e ensaio e remetem para a política dos autores.
A História do documentário, porém, não se confina aos momentos excepcionais. É mais complexa e desconcertante. Henri Langlois, por exemplo, via no movimento documentarista britânico uma exemplar escola de cinema. Em determinados aspectos tê-lo-á sido. Mas, segundo John Grierson, o movimento, tal como ele o concebeu, resultou de uma ideia que não surgiu do interior do mundo do cinema, mas da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, no início dos anos 20. Essa ideia, indissociável da propaganda num contexto de expansão dos meios de comunicação social, viria a conhecer na abordagem cinematográfica um permanente movimento pendular no sentido de encontrar um equilíbrio entre a dimensão estética e a urgência retórica de afirmar aquilo que se supunha ser necessário informar. O pêndulo, diga-se em abono da verdade, quase sempre esteve desalinhado a favor de uma produção que procurou mais responder aos sinais dos tempos, buscando uma eficácia imediata, do que ascender ao plano da Arte, o que também aconteceu. Edgar Anstey, colaborador próximo de Grierson e um dos autores de Housing Problems (1935), filme habitualmente apontado como o ponto de viragem para a deriva mais jornalística do movimento, refere-se a essa ambivalência nos seguintes termos:
Pedro Sena Nunes e João Paulo Macedo
O DOCUMENTÁRIO PORTUGUÊS À PROCURA DO SEU TEMPO
Publicado em
Panorama - Mostra do Documentário Português
Videoteca Municipal de Lisboa, Lisboa, 2006
Jorge
Campos
Se há discurso cujo entendimento exige a presença da
historicidade esse discurso é o do documentário. Poderá contrapor-se assim ser
para todo o discurso e é verdade. Mas, no caso do documentário é no confronto
com a História, recolhendo subsídios de cada época, que nos é permitido
desenhar um quadro dinâmico em função do qual é legítimo encará-lo como aquilo
que é e sempre foi, ou seja, uma série de transformações. Nesse sentido,
procurar identificá-lo é um jogo de permanente afirmação e negação, ocultação e
descoberta que se joga no território do cinema, mas que acolhe, por efeito da
transversalidade dos media, um
sistema alargado e contraditório de possibilidades de interpelar criativamente
o real. Referindo-se ao documentário do pós-guerra, Bazin admitia que a
confiança do público no que via era condicionada por outros meios de
comunicação social como a rádio, o livro e a imprensa. Antes dele, já Grierson
se apercebera disso.
John Grierson
Nessa medida, a interpelação do real, que é interpretação, manifestando-se pelo modo de dizer e pelo que é dito, resulta sempre de tecnologias, as quais, sendo indutoras de linguagens, delimitam igualmente o espaço a partir do qual se concretiza a relação com o público. Nos filmes de Michael Moore, por exemplo, há um dispositivo cinematográfico ao qual estão associados, tal como nos filmes de Tarantino, recursos e significantes de uma paleta muito alargada, das imagens de arquivo às imagens in loco, da música pop aos jogos de vídeo, do cinema de animação à reportagem televisiva, da comédia clássica à agit-prop. A sua eficácia resulta disso mesmo. Assentando numa estratégia de significação que acolhe múltiplos contributos provenientes da cultura de massas, Roger and Me, Bowling for Columbine ou Farhenheit 9/11 tanto podem ser exibidos em sala quanto passam no pequeno ecrã ou circulam em DVD.
O que me leva a mencionar Michael Moore é a
notoriedade, não o gosto. Felizmente, não há unanimidade em torno dos seus
filmes, como não há em torno dos filmes de Wiseman, Morris, Rouch, Broomfield,
Varda ou Pelechian, como no passado não houve em torno da série Why We Fight, de Capra ou nem houve nem há a propósito seja do que
for, e mais: os problemas que agora os filmes de Moore nos levantam têm a idade
do percurso institucional do documentário. O que hoje se discute não é, com
efeito, muito diferente daquilo que os protagonistas do movimento
documentarista britânico discutiram durante anos a fio e que, apesar das
inúmeras declinações, pode resumir-se a uma reflexão em torno de três eixos: arte/
reportagem, ou seja, o estatuto do
documentário enquanto objecto estético e enquanto registo de acontecimentos; verdade/
ponto de vista, que equaciona a
questão perene da objectividade do documentário face à subjectividade dos seus
métodos, discursos e modalidades; instituição/ formas, que procura articular a produção de documentários
com diferentes variáveis de ordem política, económica e social, num quadro de
conhecimentos e expectativas por parte do público que, embora possa não ser
imediatamente perceptível, tem implicações de ordem prática e de valor de uso.
Bowling for Columbine de Michael Moore
Nenhuma destas questões é estranha ao documentário português contemporâneo, sobretudo quando não parece excessivo admitir a emergência do embrião de um movimento documentarista em Portugal. Finalmente. Mas, no nosso caso temos um problema óbvio com a historicidade. Falta-nos a memória e o pensamento teórico que são património de outros países onde o movimento documentarista se foi afirmando ao longo de períodos mais ou menos alargados e em contacto com experiências tão diversas quanto o foram as vanguardas artísticas dos anos 20 e 30, o estilo de jornalismo cinematográfico de March of Time, o experimentalismo do pós-guerra, nomeadamente em França com o movimento dos 30, as aventuras do direct cinema, do cinema-vérité e do free cinema, para já não falar da complexa rede de relações entre o documentário e a televisão nos países anglo-saxónicos, de um modo geral, e nos Estados Unidos, em particular. Sem nada de comparável a estas experiências – e é bom não esquecer que tivemos meio século de ditadura e, já agora, as chamadas de atenção de António Ferro para a “lamentável qualidade do documentário português” do seu tempo – o que parece ter prevalecido foi uma tendência natural, dado o prestígio de alguns cineastas portugueses contemporâneos, para fazer uma leitura do documentário ajustada a critérios que basicamente presidem ao cinema de arte e ensaio e remetem para a política dos autores.
Se o entendimento for este, não há, realmente, muito a
dizer. Filiado nas vanguardas artísticas o único exemplo, tardio e excepcional,
é Douro, Faina Fluvial, de Manoel
de Oliveira. Até Belarmino, do
qual Fernando Lopes diz lucidamente tratar-se de cinema indirecto, à excepção da reincidência de Oliveira com o Pintor
e a Cidade, o Pão e O Acto da Primavera, pouco resta. Os cineastas que viriam a dar corpo ao
Novo Cinema Português fizeram incursões no documentário, mas sem que isso tenha
correspondido a uma opção de fundo. Há António Campos, notável a vários títulos
e a obra de António Reis e Margarida Cordeiro, curta, mas profundamente
original. E logo após o 25 de Abril, fizeram-se muitos filmes militantes,
interessantes como documentos, pontualmente mais do que isso.
No Quarto da Vanda de Pedro Costa
A História do documentário, porém, não se confina aos momentos excepcionais. É mais complexa e desconcertante. Henri Langlois, por exemplo, via no movimento documentarista britânico uma exemplar escola de cinema. Em determinados aspectos tê-lo-á sido. Mas, segundo John Grierson, o movimento, tal como ele o concebeu, resultou de uma ideia que não surgiu do interior do mundo do cinema, mas da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, no início dos anos 20. Essa ideia, indissociável da propaganda num contexto de expansão dos meios de comunicação social, viria a conhecer na abordagem cinematográfica um permanente movimento pendular no sentido de encontrar um equilíbrio entre a dimensão estética e a urgência retórica de afirmar aquilo que se supunha ser necessário informar. O pêndulo, diga-se em abono da verdade, quase sempre esteve desalinhado a favor de uma produção que procurou mais responder aos sinais dos tempos, buscando uma eficácia imediata, do que ascender ao plano da Arte, o que também aconteceu. Edgar Anstey, colaborador próximo de Grierson e um dos autores de Housing Problems (1935), filme habitualmente apontado como o ponto de viragem para a deriva mais jornalística do movimento, refere-se a essa ambivalência nos seguintes termos:
“Suponho
poder dizer que Grierson era basicamente um professor, um educador (...), ainda
que fosse simultaneamente algo esquizofrénico quanto à separação do propósito
social do documentário de uma qualquer declaração apaixonada sobre arte,
palavra que ele nunca nos permitia pronunciar. Mas, por outro lado, se algum de
nós fizesse alguma coisa que pudesse ser encarada fora do contexto artístico (...)
fazia desabar toda a sua ira sobre o visado porque acreditava, como eu
acredito, que apenas se pode comunicar através da arte (Sussex, 1975: 96)”.
Creio que todo o documentarista entende o dilema de
Grierson. O documentário existe no presente e para transformar o presente. Essa
é, porventura, a sua principal função. Não surpreende, por isso, que toda a História
do século XX possa ser contada através do documentário, sendo que os seus
episódios mais estimulantes são aqueles que convocam a imagem como um símbolo
que remete para algo fora de si requerendo, nessa medida, uma organização cujo
enunciado é prioritariamente visual. Também não surpreende que em épocas de
crise de valores, como aquela em que vivemos, quando as indústrias da
consciência apostam tudo na evasão, o documentário ressurja, no plano
simbólico, como imperativo do regresso ao real. Mas, historicamente, quando
situações deste tipo ocorrem, as opções narrativas são muito diversificadas e,
como tal, objecto de frequentes e acesas controvérsias. Nos Estados Unidos, por
exemplo, impôs-se um tipo de filme associado ao cinema independente que não
hesita em utilizar os dispositivos da televisão e se perfila não só como arma
política, mas também como campo discursivo de carácter transversal.
O documentário português contemporâneo, apesar de
circunscrito a um espaço de circulação ainda reduzido, nem por isso deixa de
participar, neste debate globalizado. Convive com Michael Moore, conhece José
Luis Guerín, aprende com Nicolas Philibert e descobre Ross McElwee. Tem, por
outro lado, um punhado de jovens realizadores com filmes interessantes e muitos
outros a reclamarem uma oportunidade. Há os encontros de Serpa, a Apordoc e o
Docs Lisboa, bem como um conjunto relevante de protagonistas como Pedro Sena
Nunes, Catarina Mourão, Catarina Alves Costa, Pedro Costa, Graça Castanheira,
Saguenail, Regina Guimarães, Margarida Cardoso, Diana Andringa, Pierre-Marie
Goulet, Serge Tréfaut e outros mais. E se os motivos que deram origem a este
movimento carecem de estudo mais aprofundado, é consensual a importância do
trabalho de Manuel Costa e Silva e de José Manuel Costa, o papel dos Encontros
Amascultura, o financiamento à produção de documentários por parte do Estado
via Ministério da Cultura e o efeito da Odisseia nas Imagens (Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura), que abriu
espaço ao documentário nas escolas do norte do País. Mais recentemente, outras
iniciativas no campo da formação começaram a ganhar o seu espaço, como sejam os
Cursos de Documentário da Videoteca de Lisboa e o Ciclo de Fotografia e Cinema
Documental Imagens do Real Imaginado,
do Instituto Politécnico do Porto.
Tematicamente, a produção portuguesa recente é muito
diversificada, destacando-se nomeadamente a tentativa de recuperação da memória
de episódios relacionados com a guerra colonial e a perseguição política no
tempo da ditadura. Há, também, uma tendência que aposta na divulgação de vultos
importantes da cultura portuguesa e um grande número de abordagens, feitas de
diferentes perspectivas, sobre matérias relacionadas com o quotidiano. Por
vezes, prevalece um certo tom pedagógico, outras a procura de uma maior
liberdade poética. Contudo, salvo raras excepções, como acontece com Pedro
Costa, talvez falte ainda algo da urgência radical que permite responder de
forma igualmente radical aos desafios do presente. Talvez falte ainda
agressividade ao corpo a corpo com o real.
Concluo chamando a atenção para dois aspectos sobre os
quais me parece importante reflectir. Em primeiro lugar, se o documentário é
sempre um produto da sua época e, portanto, contingente e variável, deve
simplesmente rejeitar qualquer tentativa de tutela administrativa do gosto.
Pelo contrário, como sempre aconteceu na sua melhor tradição, tem de assumir
riscos e explorar criativamente todos os meios disponíveis de modo a elucidar o
presente e, assim, travar o combate pelo futuro. Umas vezes os resultados serão
melhores, outras, piores. Paciência. Em segundo lugar, é urgente dar maior
visibilidade ao documentário português. Os circuitos alternativos foram sempre
uma forma de divulgação. Seria interessante pensar numa rede que se fosse
alargando progressivamente, bem como em edições em DVD. Mas, o grande palco
terá obviamente de ser a televisão e em particular o seu serviço público. Sobre
esta matéria, que é tão importante para o documentário, quanto para a
redefinição estratégica e legitimação do serviço público, está quase tudo por
fazer. Por isso, aguardando melhor oportunidade para discutir o assunto, por
aqui me calo, até porque acabou o espaço que me foi concedido, mas não sem
antes me congratular por esta iniciativa da Apordoc e da Videoteca de Lisboa,
cuja seriedade e sentido de missão são uma garantia de futuro para o
documentário português.
Referência Bibliográfica
Sussex, Elisabeth – The Rise and Fall of British Documentary (the
Story of the Film Movement Founded by John Grierson), University of California Press, Berkeley, Los Angeles, London, 1975.
crítica do documentário português:
Continuar a Viver de António Cunha Telles
por Jorge Campos
CONTINUAR A VIVER
(Os Índios da Meia Praia)
António da Cunha Telles, Portugal (1976)
Continuar a Viver de António da Cunha Telles (n. 1935) é um filme feito em circunstâncias peculiares, durante aquele curto período da história recente de Portugal em que a Revolução saiu à rua, após o derrube do regime do Estado Novo, e muitos marcaram encontro com a utopia como se o futuro estivesse ali, ao virar da esquina. Foi o que fizeram os protagonistas de Continuar a Viver, os pescadores da Meia Praia, perto de Lagos, cuja ambição era deixarem as miseráveis barracas onde sempre tinham vivido para, finalmente, poderem ocupar uma casa. Para o efeito, constituíram uma comissão de moradores e com o apoio de uma equipa do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), um organismo enquadrado por arquitectos, meteram ombros a uma iniciativa de autoconstrução semelhante a outras a correr, na altura, um pouco por todo o país. A música de José AfonsoOs Índios da Meia Praia, utilizada recorrentemente, acrescenta ao testemunho das experiências de vida dos pescadores como que uma margem tangível de redenção, uma vez cumprido o percurso libertador para o qual remete, em última instância, a tese do filme.
Cunha Telles é uma figura importante do cinema português. O seu percurso como produtor, realizador e distribuidor, bem como o seu desempenho, nomeadamente em organismos dependentes da tutela como o antigo Instituto Português de Cinema, criado em 1975, foram e continuam a ser objecto de juízos contraditórios. Mas sua energia, capacidade de iniciativa e até utopia em relação a uma determinada visão da produção cinematográfica, esteja-se ou não de acordo com ela, deixaram uma impressão digital em muito daquilo que em Portugal se fez nas últimas quatro décadas.
Desse percurso interessa-nos apenas, e de passagem, a parte que conduz a Continuar a Viver, por forma a reter um mínimo de elementos de identificação do autor. No início dos anos 60, António da Cunha Telles fez um curso de realização no IDHEC, em Paris, após o que, de regresso a Lisboa, aceitou a responsabilidade de dirigir o jornal de actualidadesImagens de Portugal. Esteve, também, à frente dos serviços de cinema da Direcção-Geral do Ensino Primário e orientou cursos da Mocidade Portuguesa (Ramos, 1989: 382). Ligado desde o início ao Cinema Novo, durante seis anos foi o produtor de filmes tão importantes quanto o foram Os Verdes Anos (1962) de Paulo Rocha e Belarmino (1963) de Fernando Lopes, qualquer deles rasgando novos horizontes para uma cinematografia cujos representantes mais jovens ameaçavam romper a teia de compromissos e conformismo da maioria dos cineastas veteranos. Apesar de um número apreciável dos filmes que produziu durante esse período serem hoje obras de referência – o que não quer dizer que sejam todos grandes filmes –, Cunha Telles por dificuldades de vária ordem, viu-se constrangido a declarar a falência da sua produtora.
Em 1969, surge como realizador de O Cerco, o retrato de um quotidiano exaurido e sem futuro de uma pequena burguesia lisboeta oportunista e medíocre, afinal, uma metáfora do ambiente que se respirava em Portugal. Mais ou menos pela mesma altura, funda a Animatógrafo, distribuidora que viria a ser responsável por muito do melhor cinema exibido nas salas portuguesas e, um pouco mais tarde, reincide na realização, desta vez com Meus Amigos (1973), uma tentativa de balanço de vida – ou das expectativas e promessas incumpridas – da geração de 62. O seu filme seguinte seria Continuar a Viver(1975), um documentário.
Etimologicamente, documentário radica na palavra documento que, por sua vez, procede do latim docere, ou seja, ensinar. O documento, cuja origem se perde nos tempos, está associado desde a Idade Média à nossa capacidade de aprendizagem a partir da experiência dos outros, mas nem pode ser encarado como um saber indiscutível, nem legitima nenhuma verdade absoluta. Se assim não fosse, poder-se-ia falar, por exemplo, de uma ciência da História infalível, no sentido em que o discurso dela resultante seria simplesmente verdadeiro, porque equivalente à cópia pura e simples de uma outra existência, situada num campo extra-textual, o real. As coisas não seriam senão elas mesmas o que, evidentemente, não faz sentido.
Com o documentário acontece algo de semelhante. Tal como o documento deixa de constituir evidência de prova em si mesmo, visto ser objecto da interpretação do historiador, cujos modelos obedecem sempre a critérios de mediação do âmbito da linguagem, também o documentário só adquire o seu estatuto monumental – e, portanto, de evidência – em função de regras discursivas que viabilizam a interpretação do real através do ponto de vista de um intérprete. A prova, portanto, é aquela que resulta em proposta do autor e apenas essa.
Como explicar então a persistência do equívoco que vê no documentário um equivalente imediato do real? A resposta, ou parte dela, para simplificar, encontra os seus fundamentos na tradição do realismo do século XIX, na pintura de um Courbet, na fotografia, de um modo geral – percebida desde o início como evidência –, e no cinematógrafo dos irmãos Lumière. A imagem em movimento, com efeito, pelo seu poder de analogia, sugere a possibilidade de autorizar os acontecimentos a exporem- se por si mesmos, falando por si próprios, o que, de resto encontra eco nos teóricos do realismo. O exemplo mais radical talvez seja o de André Bazin quando, insurgindo-se contra as marcas de enunciação tão caras aos formalistas, declarou: “A montagem, que tantas vezes é tida como a essência do cinema, é (...) o procedimento literário e anticinematográfico por excelência. A especificidade cinematográfica, apreendida pelo menos uma vez em estado puro, reside, ao contrário, no mero respeito fotográfico da unidade do espaço (Bazin, 1991: 59)”.
Independente das suas variantes, a verdade é que o realismo, passado o momento das vanguardas dos anos 20, viria a influenciar, em maior ou menor grau, mas de uma forma persistente, as referências matriciais do filme documentário, tanto no respeitante ao percurso pessoal de alguns cineastas, como Joris Ivens, quanto no quadro dos movimentos documentaristas constituídos a partir do início dos anos 30 do século passado e, em particular, do movimento documentarista britânico. Essa influência, bem como a evidência a ela associada, alargar-se-iam a um horizonte temporal pelo qual passam episódios como o neo-realismo no pós-guerra e o cinema directo nos anos 60 – neste caso recolocando entre as prioridades da agenda documental as questões da verdade e da objectividade –, chegando até aos nossos dias, o que levou Brian Winston, numa época de hegemonia do pensamento pós-moderno, a continuar a ver nela a fonte do “poder ideológico do documentário” (Winston, 1995: 11).
Acontece que, em Portugal, não houve nem uma tradição realista ligada ao cinema, nem um acompanhamento dos sinais dos tempos com repercussão na prática durante o período em que se foi construindo, no contexto internacional, o essencial da História e Teoria do Documentário, ou seja, entre o final dos anos 20 e o início dos anos 70, por sinal um período coincidente com a vigência do Estado Novo. Daí uma produção ocasional, muitas vezes respondendo a encomendas de empresas e instituições, sendo difícil falar de documentaristas no sentido de ser essa a primeira opção criativa dos cineastas – António Campos, com as devidas cautelas, talvez possa ser uma excepção. Mesmo as excelentes curtas-metragens de Manoel de Oliveira e as intermitentes incursões documentais do Cinema Novo, mas muito mais neste caso do que no daquele, é sabido serem filmes relativamente marginais no conjunto das obras dos autores. Perante este quadro, não parece descabida a hipótese de, pelo menos em parte, ter sido justamente essa ausência de diálogo com a História do Documentário que permitiu o aparecimento de um punhado de filmes singularíssimos – Oliveira, de novo, e mais tarde, António Reis e Margarida Cordeiro, para citar apenas os casos mais óbvios – ao que, seguramente, não terá sido estranho o diálogo que, como maior ou menor dificuldade, sempre existiu com a História do Cinema.
Com a Revolução de Abril verificou-se uma alteração radical. O documentário português “denotou uma descida à realidade” (Costa, 2004: 135). Em pouco mais de dois anos foram produzidas centenas de filmes, na sua maioria de pendor militante, feitos em 16mm e destinados à televisão. Talvez por, nessa altura, a canção de intervenção, um símbolo da resistência, ocupar uma posição destacada, também a esse cinema foi atribuída igual designação. Propaganda, palavra proscrita, nalguns casos teria sido a designação mais apropriada. A propaganda é, aliás, uma das traves mestras da tradição do filme documentário. Como Paul Rotha salientou pela primeira vez, em 1935, reportando aos filmes soviéticos dos anos 20 e a outros que se lhes seguiram, sobretudo no mundo anglo-saxónico, o cinema ao serviço da propaganda e da persuasão foi “largamente responsável pelo método do documentário (Rotha, 1970: 92)”. Mas, num País que acabava de se libertar do Estado Novo, cujo universo simbólico resultava da amplificação de rituais de propaganda desacreditados, a expressão cinema de intervenção, na medida em que exprime uma profunda vontade transformadora, acaba por fazer sentido.
Essa enorme produção, marcada pela actividade do Centro Português de Cinema e, de um modo geral, levada a cabo por cooperativas como a Cinequanon, a Cinequipa e o Grupo Zero, sendo desigual, teve o mérito de chamar o social à primeira linha das preocupações dos cineastas e de se constituir num extraordinário acervo de documentos, infelizmente, hoje, nalguns casos, mutilados, quando não simplesmente destruídos. Sobram, ainda assim, múltiplos testemunhos desse período em filmes como As Armas e o Povo (1974), realização de um colectivo de cineastas, Deus, Pátria e Autoridade (1975) de Rui Simões,Cenas da Luta de Classes em Portugal (1976) do americano Robert Kramer, A Lei da Terra(1977) do Grupo Zero, Torre Bela – Uma Cooperativa Popular (1977) do alemão Thomas Harlan, para citar apenas alguns.
É neste contexto, de resto favorável ao aparecimento de um núcleo importante de novos cineastas, entre os quais, José Nascimento, José Álvaro Morais, Lauro António, Margarida Gil e Noémia Delgado, que surge o filme de António da Cunha Telles. Com início de rodagem em 1975, mas só concluído no ano seguinte, Continuar a Viver atravessa um período durante o qual muitas ilusões se criaram e se perderam, outras tantas lutas se travaram com sorte desigual, mas sempre alimentando a secreta convicção, por parte de quem estava do lado revolucionário, de que, no final, como que obedecendo a uma ordem transcendente, a História acabaria por se cumprir, confirmando a razão de ser da utopia. Durante esse período, marcado por dois actos eleitorais, cujos resultados foram inequívocos quanto ao apoio largamente maioritário a um sistema de democracia representativa, e pelo golpe militar de 25 de Novembro de 1975, que pôs um travão definitivo a qualquer alternativa revolucionária, Portugal assistiu a uma multiplicidade de experiências de poder popular, nomeadamente de cooperativas e associações de moradores, as quais reclamavam, com o apoio de técnicos qualificados, o direito à palavra tendo em vista a resolução dos seus principais problemas. Essa era, também, a situação que se vivia na Meia Praia, onde os pescadores, empenhados num processo de autoconstrução, se batiam pelo direito a uma habitação condigna.
Com direcção de fotografia de Acácio de Almeida, responsável por muitas das melhores imagens do cinema português desta altura – Jaime (1974) de António Reis, Brandos Costumes (1975) de Seixas Santos, Máscaras (1976) de Noémia Delgado e Trás-os Montes(1976) de António Reis e Margarida Cordeiro são apenas alguns exemplos –, o filme começa com um genérico de animação de imagem fixa, onde predominam desenhos de casas pintados à mão, servido pela música de José Afonso. Os versos, certeiros, do nosso maior escritor de cantigas, resumem aquilo a que se irá assistir: “Eram mulheres e crianças/ Cada qual c’o seu tijolo/ Isto aqui é uma orquestra/ Quem diz o contrário é tolo”.
O mar vem em seguida, imagens em movimento do recolher de redes de pesca, deixando subentendido tratar-se de uma história de pescadores. É uma curta sequência simples, essencialmente denotativa, que permite identificar o local e dá a entender quem são os protagonistas. A unidade sintagmática seguinte, essencialmente descritiva, começa com um plano fulgurante. Uma panorâmica longa mostra duas dezenas de pessoas, talvez mais, deslocando-se no areal carregando uma enorme barraca sobre os ombros. Ouve-se o mar em fundo e um vozear e gritos de incentivo que combinam com barulhos de brincadeiras de crianças. Corte. Noutro lugar da praia, a barraca transportada pelos pescadores e suas famílias entra em campo pela direita até ocupar quase integralmente o espaço do écrã, para depois começar a afastar-se lentamente da objectiva da câmara, cujo enquadramento vai sendo corrigido de modo a respeitar as linhas de perspectiva, até se perder num ponto distante. A dimensão conotativa da imagem reverte em metáfora do tema central do filme. A narrativa parece ter encontrado o seu caminho. Contudo, justamente neste ponto é lido o seguinte texto, ilustrado com imagens do quotidiano da Meia Praia:
Há dezenas de anos que andam com a casa às costas. Nesta aldeia, os meios de produção, os barcos e as redes pertencem aos trabalhadores, muitas vezes ao velho pai, mas todos vivem em barracas. Não há diferenças entre estes pescadores. A exploração atinge-os por igual. A luta pela sobrevivência cria actos de solidariedade em que o pão incerto para todos é mais importante do que o supérfluo para alguns. As classes privilegiadas, através da suas estruturas, sempre sufragaram o produto do seu trabalho, impondo-lhes uma vida quotidiana dura e sem condições. O peixe vem depois a ser vendido bem caro a outros trabalhadores da cidade e do campo.
A inclusão do texto subverte a ordem discursiva inicial, assente na organização visual, e transporta a significação para o domínio da palavra. Não que haja qualquer problema de princípio em relação à presença de textos em documentários, ao contrário do que parece estar a fazer escola em Portugal na presunção de se estar a fazer cinema de observação, mas há um problema real com este texto em particular. Retórico e explicativo, redigido para ser lido, mais do que para ser dito, e lido por uma voz hesitante, impõe, além do mais, uma visão taxativa do mundo e, como tal, determina não que o mundo enquanto material pró-fílmico seja interpelado, mas antes que seja moldado para caber na vulgata nele contida. Daí a sensação recorrente, a partir desta altura, de que sobra em mensagem o que falta em ponto de vista, entendido este enquanto produção de evidência sustentada por argumentos fundamentalmente de ordem diegética, regulados pelo primado do olhar.
Dito de outra maneira há como que um espartilho a controlar a respiração do filme. Quando ele verdadeiramente se liberta é nos momentos em que a voz é devolvida às pessoas, cujas inquietações, dúvidas e sonhos ganham ressonância na paisagem dos rostos, essa sim profundamente humana e portadora de um desejo ancestral de justiça, como acontece com aquele homem que compara a condição dos pescadores antes e depois da Revolução de Abril: “A gente vivíamos mal, ‘távamos descontentes, mas agora vivemos mais mal, mas ‘tamos mais contentes”. A dificuldade manifesta de organização do discurso verbal por parte daqueles que foram espoliados da palavra durante tanto tempo é, provavelmente, o melhor equivalente da situação da gente da Meia Praia, tão incerta sobre o rumo a seguir, quanto determinada na forma como carrega os tijolos com que pacientemente vai erguendo as paredes das suas futuras casas.
É também com esse estado de espírito, cheio dos sentimentos contraditórios de quem quer acertar tendo medo de errar, mas alimentando a secreta esperança de um futuro melhor, que a gente da Meia Praia vai votar pela primeira vez. Isso transparece do fluxo de imagens e dos testemunhos recolhidos, os quais, no entanto, voltam a ser comentados por nova intromissão do texto lido em voz off: “25 de Abril. Muitos pensam que o voto vai dar o poder aos trabalhadores. Ninguém falta. É a primeira vez que há eleições livres desde há 50 anos. Ignora-se que a indecisão de alguns e os interesses de classe de uma minoria privilegiada farão com que a luta tenha de continuar”. Ou seja, a voz da autoridade delimita o que está a acontecer, sugere o que deveria ter acontecido, e não aconteceu, e prescreve o rumo a prosseguir.
Reside neste tipo de procedimento o principal equívoco de Continuar a Viver porque fragililizando a organização sintagmática, prejudica a narrativa e introduz notas dissonantes de ambiguidade ao longo do texto fílmico. Feito numa altura em que aos documentários se exigia um intuito educativo, no sentido de ensinar ou ajudar a aprender, este filme, à semelhança de outros, pretende desempenhar um papel na dinamização das massas, assumindo-se como instrumento de vanguardas esclarecidas. Há um pescador que diz: “Isto aqui era uma orquestra”. Mas para que a orquestra não desafine é preciso elevar o nível de consciência (de classe) dos músicos. Os versos de José Afonso deixam isso claro. Retomando as palavras do pescador, deixa o alerta: “Isto aqui é uma orquestra/ Quem diz o contrário é tolo”. O tolo, então, que reflicta, que pense melhor, juntamente com os outros músicos, para não desafinar da melodia colectiva.
O didactismo do filme tem no final um momento paradigmático quando o realizador regista os últimos testemunhos dos pescadores, mas agora fazendo passar o microfone entre eles, de mão em mão. Deixar o microfone em campo neste longo plano sequência é o equivalente, por um lado, a dizer “o futuro está nas vossas mãos, façam ouvir a vossa voz” e, por outro, na medida em que de algum modo se revelam os mecanismos do cinema, a reconhecer o seu papel ao serviço de uma causa. Mas, este artifício, aliás, coerente com a estratégia discursiva adoptada, volta a funcionar, sobretudo no domínio da retórica porque, uma vez mais, a mensagem, sendo compaginada com os desígnios ideológicos pré-definidos, incorre no risco do cliché.
É claro que rever um filme como este, 30 anos depois, como é o caso, se permite uma análise formal mais distanciada e, porventura, até algo injusta, na medida em que os documentários com um propósito social, mesmo quando não totalmente conseguidos, acabam sempre por transportar consigo uma carga de informação e de emoções que contribui para um melhor conhecimento de quem somos, coloca, entre outras questões, procurar saber o que aconteceu aos Índios da Meia Praia. Foi o que fez Pedro Sena Nunes em Elogio ao 1/2, uma encomenda da Capital Nacional da Cultura 2005, a cidade de Faro.
A primeira nota é que, apesar de algumas melhorias nas suas condições de vida, muitas das promessas contidas no projecto transformador do SAAL, algo que no filme de Cunha Telles nunca é devidamente contextualizado, ficaram por cumprir. As casas inicialmente construídas foram sendo acrescentadas à medida das necessidades do crescimento das famílias. Outras famílias, entretanto, chegaram, aumentando o caos urbanístico. Os habitantes, sobretudo aqueles que participaram da experiência de há 30 anos e os seus descendentes parecem manter, apesar de tudo, alguns sentimentos comunitários. Já não há José Afonso, há hip-hop. Os problemas levantados por Cunha Telles quanto à vida dos pescadores, no essencial, são os mesmos: a crise da pesca, os problemas da lota, os lucros dos intermediários, as desavenças dos vizinhos, as dificuldades do associativismo e assim por diante. Mas o tom geral do filme está longe de ser pessimista, como, aliás, o título deixa perceber quando se propõe fazer o elogio ao meio
.
Cineasta de uma geração diferente, trabalhando num outro contexto, Pedro Sena Nunes propõe-se fazer uma leitura da Meia Praia que é tanto uma incursão na memória de um passado recente, quanto uma ponte para o diálogo com um cinema que marcou uma época e cuja reavaliação urge fazer por forma a sistematizar aquele que terá sido, porventura, o primeiro encontro do documentário português com os sinais dos tempos. Não se reconhece à maioria desses filmes, é certo, o estatuto devido às grandes obras. Mas o percurso do documentário também não se esgota nessa dimensão, havendo hoje, como, de resto, sempre houve, várias maneiras de o encarar. Se outro mérito não tivesse, Continuar a Viver, que fez o circuito dos festivais com passagem por Cannes, teria sempre valor documental não só por aquilo que mostra e deixa perceber, mas também por aquilo que representa de uma fase em que o cinema foi militante e tomou partido. Despido de ganga ideológica e procurando antes acertar o olhar pela observação, o filme de Pedro Sena Nunes, cuja análise detalhada não cabe, naturalmente, neste espaço, acaba por complementar o filme de Cunha Telles na medida em que não só dá resposta a algumas das questões deixadas no ar na parte final de Continar a Viver, mas também porque, apostando numa diferente percepção do exercício do ponto de vista, como que, pelo menos a partir de determinada altura, devolve os protagonistas a si mesmos, aproximando-se de um realismo de facto, porventura a melhor maneira, como diria Kracauer, de fazer do cinema um instrumento de revelação.
Porto, 15 de Dezembro de 2006.
Referências bibliográficas
Bazin, André (1991). O Cinema, ensaios Ed. São Paulo: Brasiliense.
Costa, José Manuel (2004). Questões do Documentário em Portugal: Um Retrato Cinematográfico. Lisboa: Número-Arte e Cultura.
Ramos, Jorge Leitão (1989). Dicionário do Cinema Português 1962-1988. Lisboa: Editorial Caminho.
Rotha, Paul (with Road, Sinclair and Griffith, Richard) (1970). Documentary Film (The use of the film medium to interpret creatively and in social terms the life of the people as it exists in reality). New York: Communication Arts Books, Hastings House.
Winston, Brian (1995). Claiming the Real (the documentary film revisited). London: British Film Institute.
Publicado in FERREIRA, Carolin Overhoff (Coord.) - O Cinema Português através dos seus filmes, ed. Campo das Letras, Porto, 2007
Entrevista com Nina Rosenblum
por Jorge Campos
"Para mim, todos os filmes são até certo ponto propaganda, mesmo que pretendam negá-lo."
Cineasta novaiorquina galardoada com um óscar de Hollywood, Nina Rosenblum tem procurado revelar nos seus documentários aspectos menos conhecidos da história e cultura da sociedade americana. No seu percurso de relações pessoais e profissionais cruzam-se a maioria dos nomes da primeira linha do documentário americano contemporâneo, de Albert Maysles a Barbara Kopple, de Michael Moore a Richard Leacock, de Frederick Wiseman a Robert Greenwald. Presença habitual nos principais festivais de todo o mundo, Nina Rosenblum é filha de Walter Rosenblum, um dos grandes fotógrafos da Grande Depressão e da II Guerra Mundial, a quem dedicou um dos seus filmes.
"Não devemos recear utilizar a mais popular das linguagens do cinema de ficção e aplicá-la na interpretação do que acontece à nossa volta”. |
P. Flaherty: significa alguma coisa para si?
R. O meu primeiro professor de cinema documental foi George Stoney que nos mostrou Man of Aran, um filme todo ele recriado de modo a parecer um documentário. Isso ensinou-me uma coisa muito importante. Enquanto realizadora tenho o hábito de repetir cenas para me aproximar do que sei ser o mais próximo da verdade. Aprendi isso com Flaherty, cujo método nos permite perceber melhor o funcionamento da sociedade. Não há que ter medo de voltar atrás ou de usar os artifícios necessários para que o que é mostrado no ecrã seja tão honesto e rigoroso quanto possível. De certa maneira, ele estabeleceu as regras do que todos nós fazemos.
P. E quanto a Dziga Vertov e O Homem da Câmara de Filmar?
R. Isso é qualquer coisa com a qual nasci a ponto de ter dificuldade em entrar em considerações de ordem intelectual. Tenho dificuldade em analisar o filme, dividi-lo em partes ou relevar este ou aquele aspecto porque ele faz parte do meu sangue. O mesmo acontece com Eisenstein. O meu pai estava sempre a mostrar-nos os seus filmes e isso foi como aprender o abecedário desta profissão. Foi com ele que aprendi a construir estruturas narrativas, a elevar a tensão dramática através da montagem, ao fim e ao cabo foi com ele que percebi que não há grandes diferenças entre um documentário e um filme de ficção: o ponto de partida é que é diferente, porque tudo o resto é igual.
P. Houve um tempo em que o filme documentário esteve muito vinculado há propaganda. Que pensa de uma série como, por exemplo, Why we Fight, de Frank Capra?
R. Estudei essa série para tentar perceber um pouco melhor o que é um filme de tese ou um filme de causas. Para mim, todos os filmes são até certo ponto propaganda, mesmo que pretendam negá-lo. Tudo tem um ponto de vista. A objectividade não existe. Fazer um filme com o intuito de mobilizar e instigar, como fez Frank Capra, é qualquer coisa que todos nós fazemos e que Hollywood faz embora jamais o possa admitir. Enfim, ele é um grande realizador e soube entender no momento certo aquilo que era preciso ser feito pela América e para que a América passasse à acção.
P. E sobre Leni Rienfensthal?
R. Ponho a questão da mesma maneira. Criou imagens extraordinárias, embora por razões sinistras.
P. Pessoas como Robert Drew, os irmãos Maysles ou Richard Leacock até que ponto foram determinantes para o documentário da actualidade?
R. Conheço-os a todos bastante bem, sou amiga de Al Maysles e falei muitas vezes com Ricky Leacock. As câmaras de 16mm que eles utilizaram permitiram fazer um cinema muito mais livre. De súbito desapareceram os constrangimentos dos equipamentos pesados, das enormes equipas de rodagem e o resultado foi uma muito maior proximidade dos cineastas face aos seus temas e protagonistas. Ainda hoje a sua influência se faz sentir no documentário, mesmo com a televisão...
P. Que quer dizer com isso?
R. Na América o documentário conhece crises periódicas que são de certo modo devidas ao poder imagético da televisão. Cada vez é mais difícil angariar fundos que nos permitam fazer os filmes que queremos fazer. Por necessidade, muitos realizadores acabam por trabalhar para o cabo com orçamentos que raramente ultrapassam os 80 mil dólares. Para se perceber o que quero dizer basta recordar que Liberators, o filme que fiz sobre a participação de negros americanos na libertação de prisioneiros dos campos de concentração nazis, custou um milhão e duzentos mil dólares. A televisão faz filmes superficiais de acordo com formatos previsíveis. Recuso-me a chamar-lhes documentários. Tratam de temas da actualidade, mas o estilo é o da lavagem ao cérebro. Os grandes documentários mudam as pessoas! Não se lhes pode ficar indiferente. Pelo contrário, aquilo que é a produção standard da televisão é como música de elevador: adormece, entorpece, acalma, faz-nos pensar que estamos em contacto com a realidade quando, de facto, não estamos. É a antítese do cinema documental.
P. O que acaba de me dizer lembra-me um livro de Rosselini escrito há muitos anos sobre a utopia da televisão e quão longe essa utopia parece estar. Pensa que a televisão pode ter outro valor de uso?
R. Absolutamente. É um medium fantástico. Tão poderoso que todos querem controlá-lo. Foi por isso que reduziram a PBS, o serviço público de televisão americano, a um canal tão parecido com as televisões comerciais, embora de quando em quando ainda guardem uma franja do horário para o documentário. Quando passaram os grandes documentários, como Harlan County, Roger and Me ou os grandes filmes de Fred Wiseman, assustaram-se. Foi demasiado forte!
P. Porque é que os filmes de Wiseman assustaram?
R. Frederick Wiseman é um dos documentaristas mais profundos e abrangentes do nosso tempo. Foi o filme que ele fez sobre os tribunais de menores, juntamente com Hearts and Minds, de Peter Davis, que me levaram a escolher esta profissão. O pathos e a devastadora veracidade com que ele penetrou no coração de sistemas e instituições horrorosos e no impacto aterrador que esses sistemas têm na vida das pessoas estão nos antípodas dos programas que a televisão faz, por exemplo, sobre polícias. Na televisão vemos os agentes a perseguirem traficantes, prendê-los, deitá-los ao chão, dar-lhes pontapés e todos ficamos a pensar: que bom! Wiseman não tem nada a ver com isso.
P. Todos os seus filmes têm a América por cenário e os problemas sociais em primeiro plano. O que é que a faz correr nessa direcção?
R. Acho que nos Estados Unidos criamos uma fachada para dar a ver ao mundo, mas há depois a realidade de uma opressão e pobreza realmente trágica mascarada pela cultura que exportamos através da publicidade e das relações públicas. Nesse sentido, todos nós vivemos uma vida esquizofrénica porque, por muito que tenhamos feito, fizemo-lo à custa de muitas pessoas que estão afundadas em nada. Há mais pessoas presas nos Estados Unidos per capita do que em qualquer outro país do mundo. A nossa maior indústria é a indústria das prisões. Há verdadeiramente duas Américas. Quando eu fiz o filme para a HBO, Lock up: The Prisioners of Rickers Island, chamamos-lhe Uma História de Duas Cidades: por um lado, temos Nova Iorque onde tudo parece perfeito, mas isso não seria possível sem os seus subterrâneos, ou seja, a Ilha de Rickers. Vivemos uma mentira, porque só vemos a superfície sem termos qualquer percepção das suas raízes. Pela minha parte, sinto-me muito próxima das pessoas que foram e são oprimidas. Porquê? Porque produziram uma cultura espantosa, cheia de vigor, que criou o Jazz, e outras formas de música e tantas outras coisas. O facto de haver uma História Americana que os americanos se recusam a ver gera uma cultura demencial.
P. Nessa perspectiva, que devem fazer os documentaristas?
R. Acho que não devemos recear utilizar a mais popular das linguagens do cinema de ficção e aplicá-la na interpretação do que acontece à nossa volta. Quando estava na escola era muito frequente mostrarem-nos os chamados documentários educativos e eu simplesmente odiava-os porque eram pesados e desinteressantes. Por isso, há que encontrar um estilo que chegue às pessoas e as faça querer ver, que lhes torne acessível uma realidade que todos devemos conhecer para nos conhecermos melhor a nós próprios, que nos permita sermos menos esquizofrénicos e cruéis, e mais humanos. Porque eu não tenho dúvidas sobre o que acontece quando alguém nega a humanidade de outra pessoa: enlouquece. E nos Estados Unidos temos muitas pessoas perturbadas. Mas isto não quer dizer que por razões de eficácia se possa aceitar o estilo televisivo dominante. Pelo contrário. Os grandes documentários americanos da actualidade – estou a falar de filmes de pessoas como Michael Moore, Barbara Kopple ou Deborah Shaffer – são filmes que todo o americano médio quer ver, mas nada têm a ver com esse estilo televisivo. Esse é o grande desafio que se põe ao cinema documental independente na América, que existe e está vivo.
P. Pelo que acaba de me dizer, não deve ser fácil fazer passar esses filmes na televisão...
R. É cada vez mais difícil produzi-los e exibi-los.
P. Dê-me o exemplo do seu caso pessoal...
R. No início da minha carreira, em 1980, angariei fundos junto da National Endowment for the Humanities que me atribuiu 350 mil dólares para fazer America & Lewis Hine. Recorri também a diversas fundações e à televisão pública. Após quatro anos de produção e angariação de fundos o filme abriu o Festival de Cinema de Berlim, ganhou o prémio IDA, foi vencedor em Sundance e passou nos principais festivais de todo o mundo. Seguiu-se Through the Wire, para o qual voltei a angariar fundos. Uma pessoa a título individual deu-me 70 mil dólares, consegui outras pequenas contribuições, fizemos uma co-produção com o Channel Four e com a SPS australiana e o filme foi emitido. A partir daí os dinheiros públicos começaram a diminuir. Voltei-me, então, para a HBO para fazer Lock Up: The Prisioners of Rikers Island. Com os dois filmes anteriores tive 99,9% de controle, mas com a HBO fui obrigada a travar uma batalha tremenda porque eles queriam inverter o sentido do filme...
P. Como?!...
R. Queriam omitir a brutalidade da polícia e dos guardas, bem como os problemas sociais e os motivos tantas vezes ligados à pobreza que levam as pessoas à prisão. Por outro lado, entendiam que era necessário dar ênfase à violência dos prisioneiros, ao tipo de armas que utilizavam, no fundo justificando o que acontecia dentro da cadeia. As divergências foram tão grandes que provavelmente nunca mais voltarei a trabalhar com a HBO.
P. Foi a seguir que fez Sly and the Family Stone?
R. Sim, mas antes de Sly fomos trabalhar com a Turner onde até certo ponto tudo correu muito bem. Tínhamos 600 mil dólares, boas condições de trabalho e acho que fizemos um filme maravilhoso, The Black West. Mas, quando estávamos a terminá-lo os advogados da Turner ligaram-nos a dizer que teríamos de mudar toda a parte central que era aquela que nos parecia mais interessante. Andamos a jogar o jogo do gato e do rato, mantivemos essa parte, o filme foi exibido em toda a Europa e ganhou um Emmy nos Estados Unidos. Sly veio a seguir, escrito e co-produzido por Dennis Watlington para o Showtime/NYTimes. Visitamos a família de Sly, fomos até à igreja onde Freddy tocava, a mãe de Sly estava presente, enrevistámos Rose e Billy Preston, enfim foi uma das grandes experiências da minha vida. Era um filme sobre a importância daquele tipo de música, sobre o que tinha acontecido nos anos 60 com as mudanças suscitadas pela guerra no Vietname, Woodstock, o fim de Woodstock e depois o início da era Reagan que pôs fim a todas as ilusões de acabar com o sexismo, o racismo e de substituir a competição pela solidariedade. Infelizmente, o Showtime/NYTimes não estavam interessados nessa mensagem. Queriam que Sly Stone fosse retratado como um palerma drogado, recusaram qualquer espécie de contexto social e acabaram por remontar o filme retirando-lhe grande parte da sua autenticidade.
P. Como reage a todas essas dificuldades?
R. Procuro sempre manter o controlo sobre a produção, por muito pouco que ganhe, ou muitas dívidas que tenha, porque de facto me endividei muito e o meu pai que já teve um ataque cardíaco e não quer voltar a ter outro (risos). Ele é um pai que viveu a Grande Depressão e por isso está sempre preocupado com a nossa sobrevivência. Ver-me investir tanto dinheiro pessoal aborrece-o muito, mas não há outra maneira. As forças dominantes da televisão dos dias de hoje são tão limitadas e tão institucionais – falo de propaganda institucional – que, para eu poder dizer as coisas que quero dizer, tenho de proceder deste modo. É assim para mim, para William Klein e para muitos outros. Quando nos envolvemos com as televisões comerciais, os filmes são deles, o controlo é deles, somos forçados a lutar, mas nunca se consegue vencer...
DOCUMENTÁRIO:
SUBSÍDIOS PARA UM CINEMA DO REAL
por Jorge Campos
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